Historiadores, há muito, confirmam a prática dos primeiros seguidores de Cristo de pedir a Intercessão de Mártires falecidos. A oração aos santos consiste em uma doutrina amplamente difundida na Igreja cristã primitiva, estando presente em todas as camadas sociais de fiéis, de maneira que tal dado forma um testemunho de peso considerável em favor dessa prática desde as mais remotas e antigas manifestações da Cristandade. Vejamos a palavra de alguns especialistas:
A ANTIGUIDADE E O TESTEMUNHO DOS FIÉIS
Diante de tão notória realidade, alguns sugeriram ignorar a presença de tal doutrina no Cristianismo Primitivo, explicando-a à luz da teoria da adulteração romana. Leia mais sobre isso aqui. Estes desejam apagar da história qualquer rastro da intermediação de santos e anjos na Igreja, com o argumento de que aquilo se tratava de um sincretismo religioso. Todavia, diante de tão grande nuvem de testemunhas a proclamá-la, e de vultos de renome como São João Crisóstomo, Santo Agostinho, São Jerônimo e outros a levantar a voz em defesa de tal prática como ortodoxa e cristã, muitos tendo sido mártires da causa de Cristo, atribuir simplesmente a tais homens o adjetivo pejorativo de “pagãos” não parece consistente com a verdade. Isso se torna ainda mais difícil à medida que nos aventuramos na arqueologia e percebemos a prática como uma doutrina confessada em larga escala e de forma contundente não somente por vozes solitárias aqui e ali, mas pelos teólogos da Patrística, pelo clero e pelo povo em geral, já que a intercessão dos santos está presente no testemunho das catacumbas e cemitérios cristãos dos primeiros 4 séculos, continuando a fazer parte da vida cristã no decorrer de toda a história. Seja qual for a posição que você, leitor, assume em torno do tema, uma coisa é certa: quando algum Pai da Igreja menciona a prática, o faz como um testemunho sempre vívido da fé dos cristãos na VIDA ETERNA. E isso não pode ser negado.
Afinal de contas, por que os cristãos
rezavam aos Mártires?

Santos Mártires de Melitene (Domínio Público)
Mestre do Menologion de Basílio II
A BÍBLIA NÃO PROÍBE?
Se a primeira coisa que é apresentada em oposição à prática são os versículos condenando a Necromancia, e tais versículos eram de conhecimento dos Pais da Igreja e cristãos perseguidos da época, como poderiam eles negligenciá-los?! Se tais mártires estavam dispostos a serem devorados pelas feras e sofrerem os piores castigos por Cristo, por que NÃO OBEDECER A BÍBLIA? O que é dito em oposição à prática?
Quando, pois, vos disserem: Consultai os que têm espíritos familiares e os adivinhos, que chilreiam e murmuram: Porventura não consultará o povo a seu Deus? A favor dos vivos consultar-se-á aos mortos? À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles.
Isaías 8:19,20
A proibição de buscar a consulta do futuro ou métodos de adivinhação por meio de mortos permanece para os cristãos como um mandamento perpétuo, mas algumas coisas mudaram com a vinda de Cristo no que diz respeito àqueles que são mortos na fé. Todos concordam que há diferenças evidentes entre a Antiga e a Nova Aliança, ou que estas se devam às ações de Cristo, todavia, nem todos refletem acerca da extensão de seu Triunfo sobre a Morte para além das eferas terrenas dos vivos. A Igreja Primitiva refletia. Na verdade, ela percebia claramente as implicações do que a Vitória de Jesus na cruz causou em todos os âmbitos da existência humana, em suas mais diversas facetas, tanto na realidade material quanto na realidade espiritual. E esta diferença é apresentada nos próprios textos bíblicos. Leia:

Quando lemos a parábola do rico e do Lázaro (Lucas 16, 19-31), por exemplo, o mendigo é retratado no “seio de Abraão”, separado por um abismo do rico, que queima “em tormento nas chamas” numa outra parte do Sheol (ou Região dos Mortos), mas essa condição não se assemelha à dos mártires após o Advento de Cristo e que clamam por Justiça na visão de S. João no Apocalipse, que não se encontram mais no “Seio de Abraão”, mas debaixo do Altar de Deus (Apocalipse 6,9-10). São sutis diferenças, mas muito significativas. Enquanto Lázaro se encontra consolado por Abraão, os mártires são consolados pelo próprio Deus.
UMA ORDENANÇA PARA ALÉM DOS LIMITES FÍSICOS: “ORAI SEM CESSAR”
Talvez uma citação de um santo piedoso do século III possa esclarecer o motivo de os primeiros cristãos entenderem tão claramente a diferença, para os mortos, entre a Antiga e a Nova Aliança.

SÃO CIPRIANO DE CARTAGO EXPLICA POR QUE OS CRISTÃOS ENTENDEM
QUE A ORAÇÃO NÃO CESSA APÓS A MORTE
“Lembremo-nos uns dos outros em concórdia e unanimidade. Vamos em ambos os lados [seja na vida ou na morte] sempre orar uns pelos outros. Aliviemos os fardos e aflições uns dos outros através do amor mútuo, para que se um de nós, pela rapidez da condescendência divina, partir primeiro, nosso amor possa permanecer na presença do Senhor, e assim nossas orações por nossos irmãos e irmãs não cessarão diante da misericórdia do Pai.”
Cipriano de Cartago, Carta 56 [60]: 5, ano 253 d. C.
Os cristãos entendiam que ao serem mortos (comumente martirizados), A MORTE NÃO OS VENCERIA POR CAUSA DE CRISTO, então pelo vínculo do amor no Corpo Místico do Senhor, eles ainda se manteriam orando por seus companheiros que permaneceram na terra. De fato, há muitos exemplos de casos como este de São Cipriano de Cartago, nos quais os cristãos se despediam de seus irmãos dizendo que orariam por eles “do outro lado”, ao adentrar os portões da eternidade. Veja mais um exemplo:

SÃO GREGÓRIO DE NAZIANZO EXPLICA POR QUE A OBRIGAÇÃO DE ORAR
NÃO CESSA APÓS A MORTE, MAS, ANTES, SE APERFEIÇOA
Sim, estou certo de que a intercessão [de meu pai] tem mais valor agora do que a sua instrução nos dias anteriores, uma vez que está mais perto de Deus, agora que se livrou de seus grilhões corporais e libertou sua mente do barro que a obscurecia…”
Gregório Nazienzo, Orações 18: 4, ano 380 d. C.
Perceba então por qual motivo os cristãos entendiam que a proibição de Isaías acerca dos mortos não se aplicava a tais pessoas: pelo fato de que ELAS NÃO ESTÃO MORTAS, mas vivem para Deus em seu Reino. Toda alma que alcança a Vida Verdadeira está viva. S. Gregório Nazienzo chega a citar, no comentário acima, a superioridade da condição de tais pessoas, que agora, libertas da sua antiga condição pecaminosa, podem oferecer uma intercessão mais perfeita no céu do que quando estavam na terra.
A PROIBIÇÃO DE ISAÍAS E OS DOIS TIPOS DE MORTOS NA IGREJA
Como foi dito acima, a proibição de Isaías permanece na Igreja, mas não de modo a impedir o vínculo que liga o Corpo de Cristo, o qual supera a morte. Cristo não está morto, e os que são de Cristo também não. Dessa forma, pelo Espírito, crê-se que o Corpo comunica bens espirituais de membro para membro (CIC 955) através da oração dos fiéis, tanto daqueles que já adormeceram quanto dos que permanecem em peregrinação. S. Agostinho de Hipona chega a citar a diferença entre mortos na Igreja. Alguns já estão na glória do Céu, outros, contudo, aguardam a plena purificação (no Purgatório):

Gerard Seghers (1591–1651)
(Domínio Público)
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA EXPLICA A DIFERENÇA ENTRE OS MORTOS
POR QUEM A IGREJA ORA E AQUELES QUE ORAM POR NÓS
À mesa do Senhor não comemoramos os mártires como fazemos com os que descansam para orar por eles, mas antes para que eles orem por nós, com o fim de que sejamos capazes de seguir seus passos.
Homilia sobre João 84, ano 416
É possível, por exemplo, que nas orações matutinas, orando a Deus por misericórdia, um cristão se dirija a um homem santo no céu dizendo: “peça por mim a Deus isso”. Contudo, esse reforço ocorre porque o crente entende que ambos estão ligados a Deus, e confia no Deus que dá a vida eterna aos seus filhos, conforme Sua promessa. Foi exatamente isso que Santo Agostinho quis dizer, bem como toda a Igreja Cristã das Catacumbas. Isso, evidentemente, não torna ao cristão viável ou lícito a busca mística por rituais ocultistas, visando, com curiosidade excessiva acerca do além ou de outras coisas, oferecer oferendas aos mortos ou consultá-los por informações sobre o futuro e a sorte. Isso é reprovável para Deus, e nunca, em uma atitude de comunhão plena com Deus, alguém faria isso. Mas apenas uma pessoa movida por uma intenção desvirtuada. Consultar espíritos que advinham o futuro ou sussurram informações do além é perigoso e nunca recomendado. Foi em um contexto em que tais coisas eram comuns que Isaías indagou: “Quando, pois, vos disserem: Consultai os que têm espíritos familiares e os adivinhos…não consultará o povo a seu Deus?” E por isso também a Igreja proibiu tal prática, restringindo a interação ao simples ato de pedido de intercessão diante do Trono de Deus: “ore por mim” (CIC 2016 – 2017) Essa compreensão não nasceu com o Cristianismo, mas tem sua origem na religião judaica. E veja que os judeus também eram ensinados na doutrina do profeta Isaías, mas ainda assim não aplicavam tais versos no sentido de uma absoluta separação entre os vivos e os mortos. Leia mais aqui e aqui.
CONCLUSÃO
É indiscutível o poder e a influência que as palavras de Cristo com respeito à vida eterna causaram aos primeiros cristãos, os quais ouviram a mensagem do Evangelho e presenciaram a ressurreição de Cristo. Tal visão de triunfo sobre a morte não permaneceu apenas em suas convicções futuristas, mas em uma atitude de forte convicção da eternidade da Vida trazida por Cristo, não apenas na figura da ressurreição escatológica, mas também no entendimento de que o Senhor é Deus dos vivos e dos mortos. Como está escrito: “todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá”. (João 11:25-26)
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