Assisti a um vídeo recentemente cujo título é Benedict XVI: Was He A Real Pope? (Traduzido como: “Bento XVI: Teria sido ele um verdadeiro Papa?”)e decidi escrever alguns esclarecimentos acerca das citações feitas no vídeo criticando textos e falas de Bento XVI. O autor do vídeo alega que tais trechos evidenciam sem sombra de dúvida que o Papa era herege e não poderia ser o Pontífice romano de forma alguma. Estamos em 2023 e o último dia do ano passado se iniciou com a notícia trágica da morte do Papa Emérito. Entre homenagens e luto dos fiéis, os dias subsequentes também foram recheados por críticas ferrenhas e ataques brutais advindos dos desafetos do antes Cardeal Ratzinger. Que ele deixou um legado robusto, disso não há dúvidas, mas a pergunta que é feita por milhares é se sua passagem por Roma e o pequeno período de tempo em que ocupou a Cátedra de São Pedro tiveram uma repercussão positiva ou negativa para a Igreja Católica?
Nesse artigo, tratarei das críticas apresentadas no vídeo que apontam para uma acusação muito séria: [segundo o autor do vídeo] Bento XVI não passava de um herege.
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HERESIA
A APARENTE CONDESCENDÊNCIA DE BENTO XVI COM A IDEIA DE IGREJA FEITA POR LUTERO, UMA COMUNIDADE INVISÍVEL INDEPENDENTE DA INSTITUCIONAL, E A APARENTE CONSIDERAÇÃO DA IGREJA GREGA COMO VERDADEIRA IGREJA SEM PAPA.
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A primeira citação é de um livro chamado Principles of Catholic Church, p. 257:
“Até Lutero olhou para a Igreja grega, que havia permanecido uma verdadeira igreja sem estar sujeita ao Papa, e também concluiu que o importante não era a comunhão concreta e estruturada, mas sim a comunidade por trás da institucional”.
Será que Bento XVI concordava de fato com a visão eclesiológica de Lutero? E como ele avaliava os gregos?
A primeira coisa que deve ser dita é que o texto em questão é uma descrição feita por Bento XVI com o fim de explicar a postura e o desenvolvimento da doutrina de Lutero com respeito à natureza da Igreja. O nome do capítulo onde esse trecho se encontra é “TRADITION AND SUCCESSIO APOSTOLICA” (TRADIÇÃO E SUCESSÃO APOSTÓLICA). É conveniente apresentar, portanto, o contexto e o caminho percorrido pelo autor para chegar àquele ponto, destacando sempre o ensino perpétuo da Igreja Católica, isto é, aquilo que ela sustentou, historicamente, como uma verdade revelada acerca da Igreja de Cristo desde o começo. Em seguida devemos passar para as ideias de Bento XVI, exteriorizadas em outras obras, revelando dessa maneira, aquilo que de fato ele quis dizer.
Sobre Lutero e a Igreja Invisível
Para chegarmos na declaração de Bento XVI feita acima, devemos perceber a argumentação construída no decorrer das páginas, montando um todo lógico explicativo dos fenômenos que acometeram a Igreja no decorrer daqueles séculos, e que marcaram a concepção eclesiológica de Lutero e de seus seguidores. Como os protestantes chegaram ao entendimento de “Igreja” que possuem hoje? Bento XVI explica: A ideia de Igreja nascida com o protestantismo surgiu como um desapontamento frente à fragilidade da Igreja Visível em razão da divisão e do cisma:
“[…] Por quase meio século, a Igreja esteve dividida em duas ou três obediências que se excomungaram, de modo que todo católico vivia sob excomunhão por um papa ou outro e, em última análise, ninguém poderia dizer com certeza qual dos oponentes tinha direito ao seu lado. A Igreja não oferecia mais certeza de salvação; ela havia se tornado questionável em toda a sua forma objetiva – a verdadeira Igreja, o verdadeiro penhor da salvação, tinha que ser buscado fora da instituição. É neste contexto de uma consciência eclesial profundamente abalada que devemos compreender que Lutero, no conflito entre a sua busca por salvação e a tradição da Igreja, acabou por ter a experiência de ver a Igreja, não como fiadora, mas como adversária da salvação.” (p. 194).
SANTO AGOSTINHO E OS DONATISTAS
Bento XVI apresentou em seu livro o contexto e o desenrolar de alguns eventos que contribuíram para a situação caótica estrutural que fez com que Lutero visse a Igreja como inimiga. Veja que Bento explica a realidade da crise, apresentando sua fonte: a divisão e a disputa de poder entre as autoridades eclesiásticas. O problema foi assim se arrastando, até chegar ao estopim. Com a crise institucional e a falta de fé na Igreja visível, uma fundamentação oportuna e apropriada para o cisma parecia ser a solução à comunidade nascente. Eles ainda estavam presos a um corpo instutucional que se afirmava de forma sólida na história. Sendo assim, uma reformulação da natureza da Igreja parecia inevitável, e os reformadores encontraram sustentação para tal no pensamento expresso por Agostinho sobre a natureza espiritual da Igreja, pouco explorado na sua época, mas que recebeu toda a atenção dos reformadores na sua versão própria daquilo que seriam os parâmertros da verdadeira “igreja”. Isso permitiu aos protestantes a fuga pela qual anseavam: uma justificativa com origem na patrística para se desligarem da Igreja Visível. Assim, uma nova divisão, mais profunda do que aquela que ocorrera com os gregos no Cisma do Oriente, se deu.
“Com Lutero, outro tipo de divisão que teve suas raízes em Agostinho apareceu na Igreja. A cisão entre donatistas e católicos que alugam a Igreja da sua pátria africana levou o grande doutor da Igreja a fazer distinção com uma nitidez até então desconhecida entre a grandeza teológica da Igreja como realidade salvífica e a sua existência empírica: muitos que parecem estar na Igreja estão fora dela; muitos que parecem estar fora dela estão nela. A verdadeira Igreja é o número dos predestinados que, por um lado, transcende a Igreja visível enquanto, por outro lado, no seu próprio meio há a presença dos réprobos” (p. 196).
“É preciso admitir”, no entanto, continua Bento XVI, que embora as raízes da visão transcendental da Igreja enfatizadas por Hus e depois pelos reformadores remonte a Santo Agostinho, isto é, foi ele o primeiro a pensar na Igreja em termos espirituais e invisíveis, como realidade além da estrutura física, o autor esclarece que embora tenha sido assim, Agostinho NÃO opôs tal doutrina à instituição visível como uma forma de negá-la, TAMPOUCO pregou contra a sucessão apostólica, método de continuidade ininterrupta da Igreja fundada por Cristo, ou enfatizou o ensino da igreja invisível com a mentalidade radical que se propagou com a reforma. Ele não atribuiu a ele uma noção de ruptura ou substituição da estrutura sacramental e apostólica da Igreja visível, historicamente consolidada no tempo, e muito menos negou a tradição eclesiástica.
Para Agostinho, é preciso admitir, esse conceito não teve repercussões adversas no que diz respeito ao valor da estrutura sacramental e apostólica da Igreja e sua tradição (ibid).
Devemos então considerar duas coisas:
1. Santo Agostinho sustentou uma ideia bastante consistente e legítima de Igreja como comunidade Invisível;
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- 2. Os reformadores fizeram uso dessa ideia de maneira a expandi-la além dos limites traçados pelo próprio Santo Agostinho, aplicando-a às comunidades protestantes do século XVI.
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Bento XVI reconhece a legitimidade da ideia de Agostinho (trataremos disso aqui), mas apresenta o resultado da aplicação prática de tal conceito, pelo menos conforme o modelo que assumiu nos escritos dos reformadores com o fim de abarcar as comunidades protestantes. Para o Papa emérito, isso levou à diminuição do papel da Igreja como âncora e portadora de uma doutrina estável e significativa e fez com que essas comunidades necessitassem da validação política para afirmar sua autoridade. A autoridade da nova fé agora era obscura, mesmo quando buscava sancionar credos antigos, era sustentada por acordos pouco confiáveis em razão dos ataques à credibilidade e autoridade da igreja visível antes estabelecida:
O conceito de Igreja limitou-se, por um lado, à comunidade local; por outro lado, abarcou a comunidade dos fiéis de todos os tempos, conhecidos apenas por Deus. Mas a comunidade de toda a Igreja como tal não é mais portadora de um conteúdo teológico positivamente significativo. A organização eclesial agora é emprestada da esfera política posto que, de outra forma, não existe como uma entidade espiritualmente significativa. Assim, é verdade que existe uma importante comunidade de crença com a Igreja antiga onde quer que os textos credais sejam levados a sério, todavia, a sua âncora eclesial e, portanto, a autoridade vinculante que sustenta os seus acordos ou desacordos permanecem obscuros, embora, no desenvolvimento eclesiológico da comunidade protestante, muito foi restaurado por uma questão de necessidade real que, a princípio, perdeu sua razão de ser… (p. 197)
BENTO XVI ADMITE A IDEIA DE IGREJA INVISÍVEL FORMULADA POR SANTO AGOSTINHO, MAS NEGA SUA VERSÃO MODIFICADA PELOS REFORMADORES
Pergunta: Diante de tudo que foi apresentado, podemos compreender que Bento XVI concordava com Lutero acerca da Igreja Invisível?
Resposta: Ele foi bastante caridoso com Lutero, evitando toda e qualquer ofensa em seu livro, se colocando a todo momento, no lugar dele, percebendo inclusive a legitimidade de alguns protestos, reconhecendo os erros e corrupção do clero da época, e conciliando o debate, MAS… BENTO XVI NÃO CONCORDOU COM LUTERO. Não concordou da maneira como os protestantes gostariam, e certamente não da maneira como os reformadores sugeriam que a Igreja deveria existir e se afirmar. De fato podemos aceitar que Bento XVI recepcionou uma noção de Igreja Invisível, mas não foi a de Lutero, e sim a que Agostinho apresentou. Se para o autor do vídeo, o sedevacantista Peter Dimond, isso é o equivalente a heresia, devemos aceitar o fato de que Santo Agostinho também era herege. Mas, ao contrário do gosto protestante, Bento XVI argumenta sempre enfatizando a doutrina católica, embora compreenda a natureza espiritual da Igreja de maneira invisível. Ao falar da sucessão apostólica, mencionando o sacerdócio, por exemplo, ele declara que tal dom é um sacramento, recebido por imposição de mãos de Deus pelos apóstolos e passado adiante de geração em geração:
[…] expressa o fato de que a Igreja não confere a plenitude do poder por direito próprio, como as instituições seculares, mas é, ao contrário, a criação do Espírito Santo, por cujos dons ela vive continuamente. Ela deve implorar-Lhe que permita que os seres humanos o sirvam, pois só Ele pode fazê-lo. Sendo o ministério concedido somente pelo Espírito Santo na oração da Igreja, o sacerdócio é um sacramento. A inter-relação da imposição das mãos e da oração é uma expressão significativa do que a Igreja entende por “sacramento”. Este pensamento torna-se mais forte e mais claro quando percebemos que a Igreja não deriva de si mesma este gesto de oração sacramental: ela entra assim na forma apostólica, na tradição dos apóstolos; e é precisamente isto que constitui o sacramento: o qual se trata, não daquilo que a Igreja concebeu para si mesma, mas daquilo que ela recebeu – e que, precisamente pelo fato de ter recebido, é o ponto certo de contato com o poder do Espírito Santo que vem do Senhor (p. 239- 240).
Enquanto do modelo formulado por Lutero, no que diz respeito tanto à missa (sacrifício) como ao sacerdócio, ele afirma ter conduzido ao secularismo do culto protestante:
Basta dizer que Lutero viu na ligação entre sacerdos e sacrificium uma negação da graça e um retorno à lei. Visto que ele também via nesse vínculo a razão pela qual a Igreja Católica designava o ordo como sacramento, ele teve de rejeitar essa sacramentalidade, que ele acreditava estar baseada em um erro central e destrutivo. Essa posição, que, com sua preocupação apaixonada pela pureza da doutrina cristã, aponta para o cerne do desejo reformador de Lutero, teve consequências de longo alcance para toda a estrutura da Igreja tradicional. A rejeição da sacramentalidade do ministério sacerdotal levou Lutero, por uma espécie de necessidade interior, a considerar o ministério do sacerdote fortemente concentrado na palavra: ele é o pregador da graça, nada mais; também na celebração da Eucaristia e na confissão ele fala, de modo especial, da graça do perdão; mesmo nessas ações, o padre não transcende seu papel de pregador. A consequente restrição [do ministério sacerdotal] apenas à Palavra teve, como consequência lógica, a pura funcionalidade do sacerdócio: consistia exclusivamente em uma atividade particular; se faltasse aquela atividade, o próprio ministério deixava de existir. Consequentemente, essa funcionalidade, por sua vez, incluía a estrita igualdade dos cristãos. Em princípio, todos os cristãos podem pregar; por razões de ordem, e apenas por tais razões, são impostas restrições a fazê-lo. Essa igualdade levou à secularidade. Não houve propositalmente mais menção ao sacerdócio, mas apenas ao “ofício”; a atribuição deste ofício era, em si, um ato secular; isso, por sua vez, possibilitou, no decorrer do desenvolvimento, uma fusão de longo alcance de formas políticas e eclesiais. O chefe de estado também era chefe da igreja local, que se tornou uma igreja cívica, isto é, uma “igreja do estado” (p. 248).
Diante disso, fica fácil compreender o contexto em que foram ditas as palavras citadas no vídeo, as quais são usadas para acusar o autor como herege. Bento XVI estava apenas tratando da opinião de John Huss e dos cristãos protestantes com respeito à Igreja (citando os gregos que, conforme Lutero, era uma Igreja verdadeira, ainda que sem Papa). Caso contrário, o Papa não teria dito, logo em seguida, que a Igreja teve sua identidade dissolvida, de maneira que houve uma destruição completa do modelo primitivo. Se ele achasse de fato isso, por que seria católico? E como poderia ter falado todas aquelas coisas ditas acima acerca do sacerdócio e da Igreja como guiada continuamente pelo Espírito Santo, passado por imposição de mãos a cada sacerdote em continuidade ininterrupta desde os apóstolos, se acreditasse mesmo que tal modelo havia falido?
“Mesmo os seguidores de Hus apontaram para o fato de que existiam comunidades eclesiais maiores do que a do bispo de Roma, a partir do qual concluíram que o importante não era a organização institucional, mas a participação na comunidade oculta dos verdadeiros cristãos. Até Lutero olhou para a Igreja grega, que havia permanecido uma verdadeira igreja sem ser submissa ao papa, e também concluiu que o importante não era a communio concreta e estruturada, mas a comunidade por trás da institucional. Surgiu assim uma situação problemática que de fato não podia ser resolvida apelando para a communio-structuce da Igreja primitiva, pois o descrédito da communio pela politização da excomunhão tinha conduzido, ao mesmo tempo, à dissolução da identidade de Igreja e da communio e, portanto, à destruição do modelo primitivo. A Igreja concreta tornou-se assim apenas uma instituição e, como tal, mais ou menos uma quantidade negligenciável do ponto de vista espiritual.”
CONCLUSÃO
Devemos ter cautela com respeito aos conteúdos que são transmitidos como verdade e que circulam pelas comunidades ditas católicas. Muitos são utilizados com intuito cismático e com o desejo de gerar confusão e frutos de discórdia no meio da Igreja. Bento XVI foi um Papa que apresentou boas obras e que sempre foi respeitado por seu legado de amor e serviço a Deus e à Igreja.
Créditos:M.Mazur/www.thepapalvisit.org.uk





