Esse é o SACRIFÍCIO do qual o Senhor disse: “Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro porque sou um grande Rei – diz o Senhor – e o meu nome é admirável entre as nações”.
– Didaquê, cap. XIV, 3, ano 70 – 80 d. C

O Didaquê é uma das confissões mais antigas da Cristandade, remontada à época em que os apóstolos ainda estavam vivos e andavam entre as comunidades apregoando o evangelho. Tal documento da Igreja Primitiva revela para nós o caráter e a natureza do culto cristão nos primórdios da Era Comum. Nós temos, então, não somente uma pista, mas uma prova muito contundente da liturgia do culto primitivo cristão, que é complementada pelo testemunho tanto da bíblia quanto de fontes patrísticas. A razão para tal evento se dar em torno da Eucaristia também é bastante clara, sobretudo a partir dos escritos de epístolas aos hebreus, aos coríntios e provenientes de alguns padres, como Santo Inácio de Antioquia, São Justino Mártir, Santo Irineu de Lyon, Santo Agostinho e outros. Além disso, a Igreja percebia a si mesma como uma continuidade do Judaísmo antigo, com os sacrifícios do Templo e suas cerimônias de oferta de manjares, contudo, aperfeiçoadas pela revelação de Cristo e de seu sacrifício. Agora se estabelecia uma Nova Aliança, fundada na entrega da carne e do sangue do Unigênito do Pai em favor do mundo, celebrada na figura da Eucaristia.
A Diferença entre o Sacrifício dos Pagãos e dos Cristãos
Uma vez que Jesus instituiu em sua última Ceia a Eucaristia, ordenando aos apóstolos que eles mantivessem perpetuamente aquele ritual, eles logo perceberam a importância do acontecimento ali celebrado, conectando de maneira muito íntima o pão ao Corpo do Senhor e o vinho ao seu Sangue pelas Palavras proferidas por Cristo. Então esse paralelo entre o Corpo/Carne de Cristo e o Pão da Eucaristia é algo que esteve vivo nas comunidades cristãs já no princípio, com Cristo recomendando-lhes aquela prática e relacionando-a consigo mesmo, isto é, com seu Corpo. Veja:
Antes da vinda de Cristo, a carne e o sangue deste sacrifício foram prefigurados nos animais mortos; na paixão de Cristo os tipos foram cumpridos pelo VERDADEIRO SACRIFÍCIO; depois da ascensão de Cristo, este sacrifício é comemorado no SACRAMENTO (A EUCARISTIA). Entre os sacrifícios dos pagãos e dos hebreus há toda a diferença que existe entre uma falsa imitação e uma antecipação típica. Não desprezamos nem denunciamos a virgindade das mulheres sagradas pelo fato de que havia virgens vestais. E, da mesma forma, não é uma reprovação para os sacrifícios de nossos pais que os gentios também tivessem sacrifícios. A diferença entre a virgindade cristã e a virgindade vestal é grande, mas consiste inteiramente no Ser para quem o voto é feito e pago; e dessa forma a diferença no Ser a quem os sacrifícios dos pagãos e os sacrifícios dos hebreus são feitos e oferecidos faz uma grande diferença entre eles. Em um caso, eles são oferecidos aos demônios, que presunçosamente fazem essa reivindicação para serem considerados deuses, já que o sacrifício é uma honra divina. No outro caso, eles são oferecidos ao único Deus verdadeiro, como um tipo do VERDADEIRO SACRIFÍCIO, que também deveria ser oferecido a Ele na paixão do corpo e sangue de Cristo.
– Santo Agostinho, Contra Faustum, Livro XX, 21, 397 d. C.
Alimento Espiritual
O fato de o Corpo de Cristo ser identificado com o pão já estava presente em muitas de suas mensagens, bem como na própria profecia de Miquéias, a qual situa o seu nascimento em Belém, que significa “Casa do Pão”. Pelo Didaquê constatamos que a Eucaristia, uma vez que relacionada ao corpo do Senhor, não era vista pelo cristãos como um alimento qualquer, mas julgavam se tratar de uma comida espiritual e santa:
Que ninguém coma nem beba da Eucaristia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor pois sobre isso o Senhor disse: “Não deem as coisas santas aos cães“.
Tu, Senhor onipotente, criaste todas as coisas por causa do teu nome e deste aos homens o prazer do alimento e da bebida, para que te agradeçam. A nós, porém, deste uma comida e uma bebida espirituais e uma vida eterna através do teu servo.
– Didaquê, cap. IX, 5 e X, 3, ano 70 – 80 d. C
Alguns julgariam a ideia como superstição, mas a Igreja nunca teve medo de fazer uso de elementos materiais para comunicar dons espirituais, o que tornava tais elementos também espirituais, como demonstrado acima. E no caso da Eucaristia, isso tomou proporções muito maiores, em razão daquilo que ela comunica. Isso é confirmado pela própria Escritura, por meio da qual o apóstolo Paulo, recomendando a Eucaristia à Igreja em Corinto, afirma que quem comesse dela indignamente seria culpado de não discernir que ali se tratava do Corpo do Senhor. E continua: por isso muitos de vocês adoecem ou morrem.
Portanto, qualquer que comer este pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem.
1 Coríntios 11:27-30
O Sacrifício da Nova Aliança
Mas qual o motivo de a Igreja ter compreendido o culto cristão como um Sacrifício Incruento? Imagine que aquela comunidade nascente estivesse desprovida de raízes ou antecedentes, estando diante de uma ordenança desprovida de vínculo com alguma cerimônia que lhe fosse anterior. Ainda que fosse dessa maneira, ela ainda teria todo o arcabouço cultural para guiar os fiéis em sua compreensão da maneira mais adequada de prestar esse culto a Deus. Agora imagine o caso dos apóstolos e das primeiras comunidades cristãs, nas quais vigorava uma intenção consciente de continuidade daquelas cerimônias antigas ligadas à ideia de oblação e sacrifício que já existiam no Judaísmo, e que eram tidas por aquelas pessoas como sagradas, uma vez que foram instituídas por Deus. É evidente que eles tinham uma ideia de superioridade desse novo culto cristão frente às sombras do Antigo Testamento, mas ainda assim ele permanecia como um prolongamento, um cumprimento, e por que não dizer, como um APERFEIÇOAMENTO de algo que já existia e que não deveria deixar de existir. Leia o que a Bíblia nos mostra acerca das cerimônias realizadas por Israel em seu serviço a Deus, que tinha o pão consagrado no coração do Templo judaico. Em hebraico, o Pão da Proposição é chamado de Lechem Ha-panim, que se traduz literalmente como “Pão em Face de” YHWH ou “Pão da Presença” (לֶחֶם הַפָּנִים), o qual deveria ser comido apenas por sacerdotes (Levítico 24:9 e Êxodo 29:32–33). A expressão aparece nas fontes sacerdotais da Torá (Êx 25:30, 35:13, 39:36), sendo uma prática antiquíssima:
Fez também Salomão todos os objetos que eram para a casa de Deus, como também o altar de ouro, e as mesas, sobre as quais estavam os pães da proposição (Ou os “Pães da Face” lechem ha-panim).
2 Crônicas 4:19
E sobre cada fileira porás incenso puro, para que seja, para o pão, por oferta memorial; oferta queimada é ao Senhor. Em cada dia de sábado, isto se porá em ordem perante o Senhor continuamente, pelos filhos de Israel, por aliança perpétua.
Levítico 24:7,8
Unir, portanto, o conceito de sacrifício judaico com a partilha do pão na eucaristia feita pelos fiéis, como elemento de identificação com o CORPO de Cristo entregue pelo mundo inteiro, não foi difícil. E o que se seguiu foi o caminho natural daquela comunidade que se via como os verdadeiros filhos do Pacto. Lechem hapanim, ou o “Pão da Presença” era tido no antigo Israel como uma refeição ritualística, a qual era compartilhada na presença de YHWH pelos israelitas como celebração de uma Aliança.
“Oferecei Isto”
JESUS DISSE: “Fazei isto em memória de mim”, que em grego é “Touto poieite eis tan eman anamnesin”, traduzido tanto como FAÇA ISSO como OFEREÇA ISSO. No Antigo Testamento, Deus ordena aos israelitas a oferta dos manjares, que como já vimos incluíam um conjunto de cerimônias nas quais o pão era um elemento de destaque e relevância. Tratava-se de uma oferta memorial perpétua, a qual com a identificação feita pelo Senhor com o seu Corpo, foi assumindo mais e mais a ideia de um sacrifício memorial no centro da liturgia critã primitiva, sobretudo após o que ocorreria no Calvário. Malaquias 1:7 inclusive chega a trazer a ideia da mesa do Senhor como sendo sinônimo de um altar de sacrifício, e este verso é constantemente citado não somente no Didaquê, mas pela pena dos pais da Igreja, o que reforça e confirma o Sacrifício da Nova Aliança como celebrado na Eucaristia. Veja o que diz o Catecismo acerca da EUCARISTIA:
»1130. Santo Sacrifício, porque atualiza o único sacrifício de Cristo Salvador e inclui a oferenda da Igreja; ou ainda santo Sacrifício da Missa, «Sacrifício de louvor» (Heb 13, 15) (158), Sacrifício espiritual (159) Sacrifício puro (160) e santo, pois completa e ultrapassa todos os sacrifícios da Antiga Aliança.
Catecismo da Igreja Católica
E a Escritura confirma:
“Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão. Considerai Israel segundo a carne: não entram em comunhão com o altar os que comem as vítimas?”
1 Coríntios 10,17
A ordenança da Santa Ceia, portanto, não se tratava de algo estranho aos apóstolos para quem Jesus falava, os quais tinham ouvido todas as histórias de seu povo desde crianças, inclusive acerca do que fizeram os anciãos de Israel na Aliança do Sinai, depois que subiram a montanha: “mas viram a Deus, e comeram e beberam” (Êxodo 24:11). Foram precisamente tais elementos, a ideia da oblação e oferta sacrificial ligada à noção familiar judaica de refeição ritualística, que compuseram a liturgia que encontramos no Didaquê, a qual teve nas palavras de Jesus “Esse é o sangue da Nova Aliança” seu alicerce.
DIDAQUÊ
Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e para agradecer após ter confessado seus pecados, de modo que o sacrifício seja puro. 2 Aquele que está brigado com seu companheiro não pode juntar-se antes de se reconciliar, para que o SACRIFÍCIO oferecido não seja profanado [A Missa]. 3 Esse é o sacrifício do qual o Senhor disse: “Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro porque sou um grande Rei – diz o Senhor – e o meu nome é admirável entre as nações” (Ml 1, 11).
– Didaquê, cap. XIV, 1-3, ano 70 – 80 d. C.
A Bíblia apresenta a Igreja como um sacerdócio espiritual que deve oferecer sacrifícios perpetuamente em favor da salvação do mundo, o que é confirmado pelo texto acima do Didaquê, pela Bíblia e pelo testemunho dos pais da Igreja logo em seguida:
__________________________________________________________________________________________
Vós também, como pedras vivas, sois edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo.
1 Pedro 2:5
__________________________________________________________________________________________
INÁCIO DE ANTIOQUIA
Certifiquem-se, portanto, de que todos vocês tenham apenas uma única EUCARISTIA comum, pois há somente UM CORPO de nosso Senhor Jesus Cristo, e somente um CÁLICE DE UNIDADE com seu SANGUE, e um único Altar de SACRIFÍCIO – assim como também há apenas um único Bispo, com o seu clero e meus próprios servos, os diáconos. Isso garantirá que todas as suas obras estejam de acordo com a vontade de Deus.
– Carta aos filadélfios 4, ano 110 d. C.
JUSTINO MÁRTIR
Deus fala pela boca de Malaquias, um dos doze [profetas menores], como eu havia dito antes, acerca dos sacrifícios que naquele tempo eram por vós apresentados: ‘Não tenho prazer em vós, diz o Senhor, e não aceitarei os sacrifícios de suas mãos; porque desde o nascer do sol até o poente, meu nome é glorificado entre os gentios, e em todo lugar é oferecido incenso ao meu nome e uma oferta pura, pois meu nome é grande entre os gentios. [Malaquias 1:10–11]. Ele então fala daqueles gentios, isto é, de nós [os cristãos], que em todo lugar oferecemos sacrifícios a Ele, isto é, oferecemos o pão da Eucaristia e também o cálice da Eucaristia.
– Diálogo com Trifão, o Judeu, 41, ano 155 d.C.
IRINEU DE LYON
Ele tomou da criação o pão e deu graças, dizendo: ‘Isto é o meu corpo’. Semelhantemente, tomou o cálice, que é da criação à qual também nós pertencemos, e confessou ser o seu sangue. Ele ensinou o Novo Sacrifício da Nova Aliança, acerca do qual Malaquias, um dos doze profetas [menores], havia de antemão escrito: ‘Vós não fazeis a minha vontade, diz o Senhor Todo-Poderoso, e eu não aceitarei o sacrifício de suas mãos… Pois desde o nascer do sol até o pôr-do-sol, meu nome é glorificado entre os gentios, e em todo lugar é oferecido incenso ao meu nome e um sacrifício puro; porque grande é o meu nome entre os gentios, diz o Senhor Todo-Poderoso’ [Mal. 1:10–11]. Com essas palavras, Ele deixa claro que o povo anterior deixará de fazer ofertas a Deus; mas que em todo lugar o sacrifício será oferecido a Ele, e, de fato, um que seja puro, pois seu nome é glorificado entre os gentios.
– Contra as Heresias 4:17:5, ano 189 d. C.
De fato, até mesmo estudiosos protestantes admitem que era essa a ideia que os primeiros cristãos faziam da Eucaristia, isto é, celebrando-a como um Sacrifício desde os primeiros séculos, o que podemos ver, por exemplo em PATRÍSTICA, de Kelly J. N. D.:
[…] a eucaristia era vista como o sacrifício caracteristicamente cristão desde o último decênio do primeiro século, se não antes. A predição de Malaquias (1.10), dizendo que o Senhor rejeitaria os sacrifícios judaicos e, em seu lugar, receberia “ofertas puras” feitas a Ele por gentios de todas as partes foi logo interpretada pelos cristãos como uma profecia da eucaristia. De fato, o Didaquê chega a aplicar o termo thysia, ou sacrifício, à eucaristia, e a ideia é pressuposta por Clemente no paralelo que ele descobre entre os ministros da igreja e os sacerdotes e levitas do Antigo Testamento, bem como em sua descrição da função deles que seria de oferecer dádivas ou dons (cf. tous… prosenegkontas ta dõra). A referência de Inácio a “um só altar, assim como existe um só bispo”, revela que ele também pensava em termos sacrificiais. Justino fala de “todos os sacrifícios que devem ser feitos sob esse nome apontado por Jesus, a saber, na eucaristia do pão e do cálice, e que são celebrados em todos os lugares pelos cristãos”. Não apenas aqui, mas também em outra passagem, ele identifica “o pão da eucaristia e o cálice da eucaristia” com o sacrifício predito por Malaquias. Para Irineu, a eucaristia é “a nova oblação da nova aliança”, que a igreja recebeu dos apóstolos e oferece a Deus em todo o mundo. Para os primeiros cristãos, era natural pensar na eucaristia como sacrifício. O cumprimento da profecia exigia uma oferta cristã solene, e o rito em si estava cercado pela atmosfera sacrificial que nosso Senhor conferiu à última ceia. Para os ouvidos do segundo século, as palavras de instituição, “fazei isto” (touto poieite), deviam estar carregadas de nuanças sacrificiais. De qualquer maneira, Justino entendia que elas tinham o sentido de “oferecei isto”.

Foto de Mateus Campos Felipe via Unsplash
PAPA CLEMENTE ROMANO
A citação feita por Kelly é de São Clemente de Roma, que em defesa da autoridade espiritual do episcopado, proferiu as seguintes palavras de ameaça contra os coríntios que se rebelavam contra os sacerdotes e padres, responsáveis por oferecer o sacrifício, isto é, as missas em favor das almas de toda a Igreja:
Nosso pecado não será pequeno se expulsarmos do episcopado aqueles que inocente e santamente ofereceram os seus sacrifícios. Bem-aventurados os presbíteros que já terminaram sua carreira e obtiveram uma libertação frutífera e perfeita.
– Carta aos Coríntios 44:4–5, ano 80 d.C.
Esse documento é do final do século I, por volta do ano 90, um Bispo de Roma, Papa São Clemente de Roma — sucessor direto de São Pedro, São Lino e São Anacleto, disse com respeito aos sacrifícios e oblações oferecidos pelos bispos na Igreja Católica:
Conclusão
A Missa é a celebração mais importante que há no mundo, uma liturgia espiritual perpétua conferida como ordenança à Igreja no advento da Nova Aliança. A Igreja de Cristo detém no mundo visível esse encargo e missão, constituindo um Sacerdócio perpétuo e intransferível, de modo a oferecer o único Sacrifício de Cristo na figura da Eucaristia continuamente até o fim do mundo. Isso ela faz em favor das almas dos homens, numa contínua recaptulação/atualização daquilo que ocorreu no Calvário, proclamando a morte do Senhor até que Ele venha (1 Co 11: 26). Isso inclui a oferenda da própria Igreja (os fiéis), Corpo místico de Cristo, que é convocada a tomar seu lugar como membro do Senhor e participar/comungar de seus sofrimentos e glória eterna. Se você quiser saber mais sobre o Sacrifício da Missa e a extensão de seus efeitos, sugiro o seguinte texto: Por que a Igreja Primitiva oferecia Missa pelos Mortos?
Foto de Matt Meilner via Unsplash




