CARGOS, HIERARQUIA E OFÍCIOS ECLESIÁSTICOS SÃO INVENÇÃO TARDIA DA IGREJA?

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Não. Em Atos 15: 1 e 2, a existência disso já fica evidente quando uma controvérsia que surge em Antioquia com os cristãos judaizantes, a Igreja convoca o primeiro concílio em Jerusalém, no qual foram decididos os pontos do problema e, de cima para baixo, uma resolução foi acertada e enviada às igrejas em Atos 15, 7 a 11 na forma de cartas. O fato de haver pessoas de autoridade na Igreja tomando decisões que deveriam ser obedecidas pelo povo abaixo já evidencia a investidura de certos indivíduos em funções específicas, isto é, em cargos e ofícios eclesiásticos, o que por si só já atesta e a presença de hierarquia. A própria bíblia confirma isso:

 

E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo;

Efésios 4: 11-12

 

O apóstolo não somente cita a existência de bispos na Igreja em 1 Timóteo 3, mas ainda os diferencia de outro cargo já existente na era apostólica: o diaconato. Também em Atos 6, vemos a razão pela qual essa função foi criada, com a disputa entre os crentes hebreus e gregos. Assim, 7 diáconos são escolhidos e investidos de autoridade pelos apóstolos, que para isso impuseram-lhes as mãos.

 

 

A BÍBLIA SOBRE O EPISCOPADO E O DIACONATO

 

Esta é uma palavra fiel: se alguém deseja o episcopado, excelente obra deseja.

1 Timóteo 3:1

 

Os diáconos sejam maridos de uma só mulher, e governem bem a seus filhos e suas próprias casas. Porque os que servirem bem como diáconos, adquirirão para si uma boa posição e muita confiança na fé que há em Cristo Jesus.

1 Timóteo 3:12,13

 

INSTITUIÇÃO DO OFÍCIO DE DIÁCONO EM ATOS 6

 

Com os discípulos a aumentar tão rapidamente em número, havia no seu meio murmúrios de descontentamento. Os que só falavam grego queixavam-se de que as suas viúvas eram postas à margem e de que não lhes davam tanta comida na distribuição diária como às viúvas que falavam hebraico. Então os doze combinaram uma reunião com a assembleia dos discípulos: “Nós, os apóstolos, devíamos gastar o nosso tempo a pregar e não a distribuir comida”, disseram. “Por isso, irmãos, escolham entre vós mesmos sete homens de quem haja um bom testemunho, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, e encarregá-los-emos deste importante trabalho. Só assim poderemos dedicar tempo à oração, pregação e ensino.” Isto pareceu razoável a toda a assembleia que escolheu as seguintes pessoas: Estêvão, homem de fé extraordinária e cheio do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timom, Parmenas e Nicolau de Antioquia, um gentio que se convertera à fé judaica, e mais tarde ao cristianismo. Estes sete foram apresentados aos apóstolos, que oraram por eles e os abençoaram, pondo sobre eles as mãos.

Atos 6: 1-6

 

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O TESTEMUNHO PATRÍSTICO SOBRE O EPISCOPADO

 

A voz dos Padres também se faz ouvir nessa questão, pois desde cedo, já com Santo Inácio de Antioquia, que fora instuído e ordenado pelo apóstolo João, a Igreja demonstra zelo pela unidade que se consolida em torno da autoridade do Bispo e da Eucaristia administrada por ele:

 

INÁCIO DE ANTIOQUIA

 

Mantenham-se longe daquelas plantas malignas que Jesus Cristo não cuida [hereges], uma vez que elas não foram plantadas pelo Pai. Não que eu tenha encontrado qualquer divisão entre vocês, mas sim uma pureza excessiva. Porque todos os que são de Deus e de Jesus Cristo também estão com o bispo. E todos os que, no exercício do arrependimento, retornarem à unidade da Igreja, estes também pertencerão a Deus, de modo que possam viver de acordo com Jesus Cristo. Não erreis, meus irmãos. Se alguém seguir aquele que comete um cisma na Igreja, não herdará o reino de Deus. Se alguém anda segundo uma opinião estranha, o tal não está em concordância com a paixão [de Cristo]. 

– Inácio de Antioquia, Epístola aos Filadélfios 3, ano 108 d

 

Alguns argumentam que a hierarquia se tornou uma necessidade com a heresia do Montanismo, todavia, esses registros de Inácio, antes dessa vertente de Montano se tornar muito popular já provam por si só que havia na Igreja o elemento hierárquico muito antes disso, como algo que estava intrinsecamente ligado ao governo eclesiológico cristão desde o começo. É evidente [e ninguém nega] que o Episcopado se fortaleceu bastante com as investidas dos hereges, dentre os quais, Montano e Priscila da Nova Profecia, cujos adeptos afirmavam possuir eles mesmos a personificação do Espírito Santo para interpretar e chegar ao pleno conhecimento da Bíblia, e os bispos, em contraste, tiveram de reforçar que a verdadeira autoridade e a sucessão apostólica da Igreja tinham sua gênese nos cargos ordenados pelo próprio Cristo e Seus apóstolos através da imposição de mãos em linha de sucessão contínua, todavia, antes disso, tais elementos já estavam presentes na Igreja, como vemos nas orientações de Inácio acerca da autoridade do bispo. Tal compreensão provém da ideia de delegação de autoridade (Mateus 21: 23-27; Lucas 10: 19; Mateus 28: 18-20; João 20: 21). Cristo foi enviado pelo Pai, de cuja autoridade provém a Sua, e Ele envia os apóstolos, que por sua vez enviam outras pessoas de confiança, seus sucessores, que novamente confiam o seu cargo a outros que acharem fiéis. Abaixo, Pelikan fala da fórmula de ordenação de Hipólito de Roma, citada em seguida nesse teto:

 

A fórmula mais antiga de ordenação a sobreviver, preservada na Tradição apostólica de Hipólito, orava que Deus derramaria sobre o bispo a força do Espírito Santo, que Cristo tinha concedido aos apóstolos e também o favoreceria com a autoridade para interceder em favor das pessoas e de absolvê-las de seus pecados (Hip. Trad. ap. 3 [SC 11:27-30]). A informação litúrgica e a legislação canônica sobreviventes também reforçam a impressão da grande variedade de uso, bem como da nomenclatura, na relação entre os cargos de sacerdote (ou presbítero) e de bispo, que parecem ter sido intercambiáveis em alguns lugares, mas não em outros; mas essas fontes também documentam a concordância doutrinal geral e profunda em relação ao entendimento sacramental do sacerdócio como ministrador dos meios da graça, sua continuidade com os apóstolos e sua função como a garantia de unidade.

Pelikan, A Tradição Cristã: Vol. 1, Pg.174

 

Veja como essa questão da unidade em torno do bispo fica evidente em outro trecho da obra de Inácio:

 

O Senhor garante o seu perdão a todos os que se arrependerem, SE, ATRAVÉS DA penitência [que é dada após a confissão], retornarem à unidade de Deus e à comunhão com o BISPO.

– Inácio de Antioquia, Epístola aos Filadélfios 8, 1, ano 108 d

HIPÓLITO DE ROMA

 

[O bispo que conduz a ordenação do novo bispo deve orar:] Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. . . derrama agora o poder que vem de Ti, do teu Espírito Real, … e concede a este teu servo, que escolheste para o episcopado … o sumo sacerdócio de modo a TER AUTORIDADE PARA PERDOAR PECADOS, de acordo com seu comando.

– Hipólito de Roma, Tradição Apostólica, ano 215 d.C.

ORÍGENES

Embora, reconhecidamente, seja difícil e penosa [a Penitência], quando o pecador lava seu leito em lágrimas, e elas se tornam seu pão dia e noite, quando ele não tem vergonha de fazer conhecido o seu pecado AO SACERDOTE DO SENHOR e busca a cura segundo quem diz: “Confessarei ao Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade de meu pecado” (Sl 32: 5). Aquilo que o apóstolo Tiago disse se cumpre com isso: “Há alguém entre vós doente? CHAME OS PRESBÍTEROS DA IGREJA, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor. E a oração da fé salvará o enfermo, e o Senhor o levantará. E SE HOUVER COMETIDO PECADOS, ESTES LHE SERÃO PERDOADOS (Tg 5: 13-15)”.

– Orígenes, Homilias sobre Levítico, 2: 5, ano 248 d. C.

 

HÁ DIFERENÇA ENTRE BISPO E PRESBÍTERO

 

Veja que Inácio também torna evidente que há uma diferença na função entre o bispo no singular e os presbíteros e diáconos. Ele demonstra isso em duas de suas epístolas, na carta aos Filadélfios e aos Tralianos:

 

Tome cuidado, então, para ter apenas uma Eucaristia. Porque há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice para [mostrar] a unidade do Seu sangue; um altar; como há um só bispo, junto com o presbitério e os diáconos, meus conservos: para que, tudo o que fizerdes, façais segundo [a vontade de] Deus.

– Inácio de Antioquia, Epístola aos Filadélfios 4, ano 108 d. C.

 

Podemos perceber uma clara distinção de poderes e funções, quando Inácio fala do primeiro de maneira separada e indicando sua singularidade, “como há um só bispo”, e então acrescenta em seguida os outros dois, “junto com o presbítero e os diáconos”. Em seguida temos o segundo registro:

 

Pois, uma vez que você está sujeito ao bispo [no singular] como a Jesus Cristo, parece-me que você não vive segundo a maneira dos homens, mas de acordo com Jesus Cristo, que morreu por nós, com o fim de que, crendo em Sua morte, você possa escapar da morte. É necessário, portanto, que, como de fato o fazeis, sem o bispo nada façais, mas também estejais sujeitos ao presbitério, como ao apóstolo de Jesus Cristo, que é a nossa esperança, no qual seremos por fim achados, se Nele vivermos. É apropriado também que os diáconos, como sendo [os ministros] dos mistérios de Jesus Cristo, sejam em todos os aspectos agradáveis a todos.

– Inácio de Antioquia, Epístola aos Tratalianos 2, ano 108 d. C.

 

Aqui temos Inácio distinguindo claramente essas três funções: bispo, presbítero e diácono. Isso demonstra que aquilo que Pelikan viu em seus estudos e chega a mencionar em sua obra Tradição Cristã Vol. 1 sobre os cargos de bispo e presbítero como “intercambiáveis em alguns lugares, mas não em outros”, é na verdade a expressão daquele jargão famoso latino: a maiori, ad minus, ou “o que pode o mais, pode o menos”. Uma vez que o bispo está acima destes dois últimos,  ele abarca suas funções. É muito claro, com esses dois registros, que já na época de Inácio, o bispo possui autoridade superior à do presbítero e à do diácono, e que a Igreja deve ter sua unidade consolidada na autoridade do primeiro, sem a qual nada se faz, porém, ainda assim, o próprio bispo pode exercer a função também de presbítero e diácono, não podendo, contudo, ocorrer o contrário, isto é, nem todo presbítero ou diácono pode ser um bispo. Quando os Papas, por exemplo, são chamados de servos dos servos de Deus, (nas palavras de S. Gregório, servus servorum Dei), eles assim são considerados justamente por demonstrar essa verdade: “O maior entre vocês deverá ser servo” (Mt 23: 11-12). E quando Pedro, mesmo sendo apóstolo, chama a si mesmo de presbítero, ele não está dizendo que os “presbíteros que vivem entre vós [no meio da Igreja]” são todos apóstolos tal como ele era, como se igualasse as funções (Cf. 1 Coríntios 12:29: “Acaso são todos apóstolos?”), mas apenas demonstra essa compreensão maior, bem como também a humildade de identificar-se com os que exercem uma função menor, mas que também é exercida por ele na qualidade de apóstolo e bispo:

 

Aos presbíteros, que estão entre vós, admoesto eu, que sou também presbítero com eles, e testemunha das aflições de Cristo, e participante da glória que se há de revelar (1 Pedro 5: 1).

 

Foto de Mateus Campos Felipe na Unsplash

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Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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