Limbo e Bebês Não Batizados: Bento XVI era Herege? PARTE IV

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

INTRODUÇÃO

 

Assisti a um vídeo recentemente cujo título é Benedict XVI: Was He A Real Pope? (Traduzido como: “Bento XVI: Teria sido ele um verdadeiro Papa?”) e decidi escrever alguns esclarecimentos acerca das citações feitas no vídeo criticando textos e falas de Bento XVI. O autor do vídeo alega que tais trechos evidenciam sem sombra de dúvida que o Papa era herege e não poderia ser o Pontífice romano de forma alguma. Estamos em 2023 e o último dia do ano passado se iniciou com a notícia trágica da morte do Papa Emérito. Entre homenagens e luto dos fiéis, os dias subsequentes também foram recheados por críticas ferrenhas e ataques brutais advindos dos desafetos do antes Cardeal Ratzinger. Que ele deixou um legado robusto, disso não há dúvidas, mas a pergunta que é feita por milhares é se sua passagem por Roma e o pequeno período de tempo em que ocupou a Cátedra de São Pedro tiveram uma repercussão positiva ou negativa para a Igreja Católica.

Nessa série de artigos, tratarei de algumas críticas apresentadas no vídeo que apontam para uma acusação muito séria: [segundo o autor do vídeo] Bento XVI não passava de um herege. 

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HERESIA 

A APARENTE NEGAÇÃO DO BATISMO COMO NECESSÁRIO À SALVAÇÃO.

A NEGAÇÃO DO LIMBO.

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Em sua obra God and the World, p. 317 Bento XVI escreve sobre a prescrição canônica acerca do Batismo:

 

No cânone 849 do direito canônico da Igreja está escrito: “O Batismo. . . é necessário de fato ou pelo menos em desejo [intenção] para a salvação ”. Mas o que acontece quando um homem morre sem ser batizado? E o que acontece com as milhões de crianças que são mortas no ventre de suas mães?

 

A questão do que significa dizer que o batismo é necessário para a salvação tornou-se cada vez mais debatida nos tempos modernos. O Concílio Vaticano II disse com respeito a este ponto que os homens que estão buscando a Deus e que estão se esforçando interiormente para aquilo que constitui o batismo também receberão a salvação. Isso quer dizer que a busca por Deus já representa uma participação interior no batismo, na Igreja, em Cristo. Nesse sentido, a questão sobre a necessidade do batismo para a salvação parece ter sido respondida, mas a questão com respeito às crianças que não puderam ser batizadas pelo fato de terem sido abortadas nos pressiona com muito mais urgência. Eras anteriores criaram um ensinamento que me parece pouco iluminado. Eles disseram que o batismo nos faz dotados, por meio da graça santificante, da capacidade de olhar para Deus. Ora, certamente, o estado de pecado original, do qual somos libertos por meio do batismo, consiste na falta da graça santificante. As crianças que morrem dessa maneira [abortadas] não têm nenhum pecado pessoal, portanto não podem ser enviadas para o inferno, mas, por outro lado, carecem da graça santificante e, portanto, do potencial para contemplar a Deus que ela concede. Elas simplesmente desfrutarão de um estado de bem-aventurança natural, no qual serão felizes. Esse estado as pessoas chamam de limbo. No curso de nosso século, isso gradualmente passou a nos parecer problemático. Essa foi uma maneira pela qual as pessoas procuraram justificar a necessidade de batizar bebês o mais cedo possível, mas a solução em si é questionável.

Por fim, o Papa deu uma virada decisiva na encíclica Evangelium Vitae, mudança já antecipada pelo Catecismo da Igreja Católica, ao expressar a simples esperança de que Deus é suficientemente poderoso para atrair a si todos aqueles que não puderam receber o sacramento [batismo].

 

A POLÊMICA DA ACUSAÇÃO DE HERESIA

 

Para muitos, a fala de Bento XVI com respeito à noção de Limbo, dizendo que a maneira como alguns homens o defenderam no passado seria uma posição pouco iluminada, somado ao fato de ele demonstrar ter esperança de que Deus trará tais almas ao céu sem o batismo, constitui uma evidência de que ele abandonou completamente a doutrina católica. Dizem que isso incentivaria a ideia de que a Igreja não deve se esforçar para batizar e pregar o evangelho às almas, já que o batismo não é uma ordenança necessária para a salvação do mundo.

 

O LIMBO É ENSINO OFICIAL DA IGREJA?

 

https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_con_cfaith_doc_20070419_un-baptised-infants_po.html

Não. De fato, o Limbo foi um posicionamento teológico bastante difundido, adotado por muitos fiéis e por muito tempo, mas não foi oficializado de maneira categórica. Trata-se de um lugar ou estado, como o Papa muito bem explicou acima, de bem-aventurança natural, para onde as pessoas não batizadas deveriam ir após a morte. Elas não iriam para o inferno, porque não cometeram pecado mortal, mas também não iriam para o céu, pois não possuem a graça santificante que lhes seria concedida pelo Batismo, o qual abre as portas para que o homem alcance o seu fim sobrenatural e participe da natureza divina. Isso ocorre quando se apaga o pecado original na alma, isto é, a privação que todo ser humano herda de Adão. Ainda assim, a doutrina mais difunfida e aceita afirma que ninguém sofre no Limbo qualquer dano, pois diz respeito a um estado de gozo natural. Como foi dito, não se trata de um ensinamento oficial da Igreja, justamente em razão dos inúmeros questionamentos e debates com respeito a ele. Dessa maneira, a Igreja nunca chegou a um consenso de forma vinculante e oficial.

Logo, Bento XVI não estaria obrigado a sustentá-lo, estando livre para dar a sua opinião pessoal.

 

CAMINHOS DE ESPERANÇA

 

O fato de manter um posicionamento diferente quanto ao Limbo não constitui uma negação do batismo.

Embora apresente sua opinião pessoal acerca do tema, ao declarar que para ele trata-se de um pensamento “pouco iluminado”, reforça (caso exista) a completa felicidade de tais almas destinadas ao Limbo, num estado natural perfeito, confortando aqueles que temem ou mesmo consideram injusto o destino final dessas almas. Ou seja, mesmo sendo o Limbo real, ele não seria a imagem terrível que alguns tentam criar, pois podemos ter certeza de uma existência natural destituída de pena para essas crianças. Talvez por isso Jó exclame enfaticamente: “Ah, se eu tivesse morrido enquanto ainda estava no ventre de minha mãe, sem nunca ter visto a luz do sol!” (Jó 3: 16) Isso anula a necessidade de batismo? Não, absolutamente! Pois é óbvio, no entanto, que apesar de tudo isso, o paraíso e a visão beatífica, uma possibilidade aberta para nós mas não para eles, é infinitamente superior a esse estado, por isso é melhor viver com essa possibilidade (céu) do que sem ela, ainda que não seja caso para o desespero. A Igreja ainda deve se esforçar por batizar todas as almas!

Veja que a definição do estado Limbo nunca foi uma unanimidade entre os católicos:

 

São Gregório de Nazianzo: 

 

Vai acontecer, creio eu… que esses últimos mencionados [as crianças que morrem sem batismo] não serão admitidos pelo Justo Juiz na glória do Céu, tampouco serão condenados a sofrer punição, uma vez que, embora não estejam selados [pelo batismo],  não são maus [não têm pecado pessoal e mortal]… Pois pelo fato de alguém não merecer a punição, não significa tambem que o tal seja digno de ser honrado, assim como também não implica dizer que aquele que não é digno de certa honra mereça em razão disso ser punido.

Oração 40, n. 23

 

Com Santo Agostinho, tivemos uma mudança na compreensão do estado das almas, por ele estimular a noção de que as crianças não batizadas compartilham da miséria positiva comum dos condenados, ainda que o máximo que Santo Agostinho concedia com respeito à sua condição era que a punição imputada a elas em razão do pecado original constitui a mais branda de todas.

 

Veja que o tema continuou sendo discutido:

 

Depois de desfrutar de vários séculos de supremacia indiscutível, o ensinamento de Santo Agostinho sobre o pecado original foi desafiado pela primeira vez com sucesso por Santo Anselmo, que sustentou que não era a concupiscência, mas a privação da justiça original, que constituía a essência do pecado herdado (De conceptu virginali). Sobre a questão em especial, entretanto, da punição do pecado original após a morte, Santo Anselmo concordava com Santo Agostinho ao sustentar que crianças não batizadas compartilham dos sofrimentos positivos dos condenados; e Abelardo foi o primeiro a se rebelar contra a severidade da tradição agostiniana neste ponto. Segundo ele, não havia culpa (culpa), mas apenas punição (poena), na própria noção de pecado original; e embora esta doutrina tenha sido corretamente condenada pelo Concílio de Soissons em 1140, seu ensinamento, que rejeitou o tormento material (poena sensus) e manteve apenas a dor da perda (poena damni) como punição eterna do pecado original (Comm. in Rom.), não só não foi condenado, mas também foi aceito de forma generalizada e inclusive tendo sido aprimorado pelos escolásticos. Peter Lombard, o Mestre das Sentenças, popularizou-o (Sent. II, xxxiii, 5), e adquiriu certo grau de autoridade oficial a partir da carta de Inocêncio III ao Arcebispo de Arles, que logo encontrou seu caminho para o “Corpus Juris”. O ensinamento do Papa Inocêncio é no sentido de que aqueles que morrem apenas com o pecado original em suas almas não sofrerão “nenhuma outra dor, seja do fogo material ou do verme da consciência, exceto a dor de ser privado para sempre da visão de Deus” (Corp . Juris, Decret. l. III, tit. xlii, c. iii — Majores). Deve-se notar, no entanto, que esta poena damni na qual se incorre em razão do pecado original implicava, conforme Abelardo e a maioria dos primeiros escolásticos, num certo grau de tormento espiritual, e São Tomás foi o primeiro grande mestre que rompeu completamente com a tradição dos agostinianos acerca deste assunto, e fundamentado no princípio derivado do Pseudo-Dionísio dos Padres Gregos, que diz que a natureza humana como tal, com todos os seus poderes e direitos, não foi afetada pela Queda (quod naturalia manent integra), manteve, pelo menos na prática, aquilo que a grande maioria dos teólogos católicos posteriores ensinou expressamente, que o limbus infantium é um lugar ou estado de perfeita felicidade natural.

 

Enciclopédia Católica

 

Ao citar a noção embasada na tradição mais difundida, contrária à agostiniana, a qual tem sido mantida pela Igreja desde São Tomás, e que apenas retoma a tradição anterior a Agostinho, como ficou expresso na fala de São Gregório Nazienzo, ele demonstra infundados os temores das pessoas quanto ao Limbo. Todavia, cita a sua própria opinião pessoal, de que talvez o destino dessas almas infantes seja mais glorioso do que pensamos. Ao fazer isso, ele não vai contra nenhum tipo de norma dogmática, o que está inclusive de acordo com o Catecismo. O Papa Emérito apenas nos fornece a esperança como caminho de paz para nossos corações, estimulando a confiança que devemos ter em Deus com respeito aos bebês não batizados, pois os tais pertencem à esfera da providência divina. Ele declara que se for a vontade divina, eles estarão com Deus, quaisquer que sejam os meios empregados: “Deus é suficientemente poderoso para atrair a si todos aqueles que não puderam receber o sacramento”.

 

CONCLUSÃO

 

Não há nenhuma heresia no que foi dito com respeito aos bebês não batizados. O Limbo não é ensino oficial da Igreja e o batismo como porta pela qual se alcança a salvação, isto é, o fim sobrenatural humano (o céu) ao apagar o pecado original, é mantido firmemente na teologia de Bento XVI e ninguém em sã consciência poderia ver nas palavras dele uma desculpa para a acomodação evangelical, só pelo fato de ele nutrir uma esperança de reencontro. Disso tudo podemos obter o seguinte: (1) o limbo não é uma doutrina oficial da Igreja Católica, e jamais sua natureza foi consenso unânime; (2) ele não seria um destino proporcional ao céu caso exista, mesmo se consistisse em felicidade natural, devendo a Igreja se esforçar para dar a eles (bebês não batizados) o que Cristo nos concedeu, isto é, o batismo como porta de salvação; e (3) caso o limbo não exista, isso também não invalidaria a necessidade do Batismo, uma vez que continua pesando sobre a Igreja a grande comissão. E mesmo quando paira no ar o mistério acerca do destino de alguns, a Igreja não é proibida de nutrir a esperança do reencontro. Deus não está limitado em suas ações divinas com respeito a todas as almas criadas só pelo fato de ter dado instrumentos de salvação oridinários à Igreja. Isso não anula seu poder e liberdade para fazer uso de meios extrordinários para salvar.

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Se Deus, em sua soberania divina e propósito livre, desejar criar um caminho até essas almas, ainda que excepcional, estejamos certos de que Ele tem o direito de fazê-lo, sendo perfeitíssimo Salvador, além de ser também poderoso para tal. Não é pecado ou heresia fomentar tal esperança!

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Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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