INTRODUÇÃO
A tipologia bíblica refere-se a quando uma pessoa, evento, coisa prenuncia alguém ou algo ou evento no futuro. Por exemplo, no Antigo Testamento, os três dias de Jonas no ventre de uma baleia prefiguram os três dias de Jesus Cristo na tumba (Mt 12:38-42). Além disso, a oferta de pão e vinho de Melquisedeque (Gn 14:17-20) prefigura a oferta de Jesus de seu corpo e sangue, alma e divindade sob as aparências de pão e vinho na Nova Aliança (Mt 26:26-28). ; Heb. 5:7-10). Vemos então que deve existir uma semelhança entre o tipo e o arquétipo, mas este último é sempre maior. Além disso, a destruição de Jerusalém em 70 d.C., que Jesus profetizou, prefigura o fim do mundo. Veja o que o Catecismo da Igreja nos fala:
OS SENTIDOS DA ESCRITURA
115. Segundo uma antiga tradição, podemos distinguir dois sentidos da Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual, subdividindo-se este último em sentido alegórico, moral e anagógico. A concordância profunda dos quatro sentidos assegura a sua riqueza à leitura viva da Escritura na Igreja:
116. O sentido literal. É o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela exegese segundo as regras da reta interpretação. «Omnes sensus (sc. Sacrae Scripturae) fundentur super litteralem» – «Todos os sentidos (da Sagrada Escritura) se fundamentam no literal» (90).
117. O sentido espiritual. Graças à unidade do desígnio de Deus, não só o texto da Escritura, mas também as realidades e acontecimentos de que fala, podem ser sinais.
1. O sentido alegórico. Podemos adquirir uma compreensão mais profunda dos acontecimentos, reconhecendo o seu significado em Cristo: por exemplo, a travessia do Mar Vermelho é um sinal da vitória de Cristo e, assim, do Baptismo (91).
2. O sentido moral. Os acontecimentos referidos na Escritura podem conduzir-nos a um comportamento justo. Foram escritos «para nossa instrução» (1 Cor 10, 11) (92).
3. O sentido anagógico. Podemos ver realidades e acontecimentos no seu significado eterno, o qual nos conduz (em grego: «anagoge») em direcção à nossa Pátria. Assim, a Igreja terrestre é sinal da Jerusalém celeste (93).
118. Um dístico medieval resume a significação dos quatro sentidos:
«Littera gesta docet, quid credas allegoria.
Moralis quid agas, quo tendas anagogia».
«A letra ensina-te os fatos (passados), a alegoria o que deves crer,
a moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender» (94).
128. A Igreja, já nos tempos apostólicos (107), e depois constantemente na sua Tradição, pôs em evidência a unidade, do plano divino nos dois Testamentos, graças à tipologia. Esta descobre nas obras de Deus, na Antiga Aliança, prefigurações do que o mesmo Deus realizou na plenitude dos tempos, na pessoa do seu Filho encarnado.
129. Os cristãos leem, pois, o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. Esta leitura tipológica manifesta o conteúdo inesgotável do Antigo Testamento. Mas não deve fazer-nos esquecer de que ele mantém o seu valor próprio de Revelação, reafirmado pelo próprio Jesus, nosso Senhor (108). Aliás, também o Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo. A catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método (109). Segundo um velho adágio, o Novo Testamento está oculto no Antigo, enquanto o Antigo é desvendado no Novo: « Novum in Vetere latet et in Novo Vetus patet» – «O Novo está oculto no Antigo, e o Antigo está patente no Novo» (110).
130. A tipologia significa o dinamismo em ordem ao cumprimento do plano divino, quando «Deus for tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, a vocação dos patriarcas e o êxodo do Egipto, por exemplo, não perdem o seu valor próprio no plano de Deus pelo facto de, ao mesmo tempo, serem etapas intermédias desse mesmo plano.
Pessoas Tipológicas

E se ao nascer, a virgindade dela tivesse sido prejudicada, ele não teria nascido de uma virgem; e seria mentira – o que Deus proíbe – que “nasceu da Virgem Maria”[1], como é crido e declarado por toda a Igreja, a qual, imitando a mãe do Senhor, diariamente dá à luz os membros de seu corpo, e ainda assim permanece virgem. Leia, por favor, minha carta sobre a virgindade de Maria Santíssima, que enviei àquele ilustre homem, cujo nome menciono com respeito e carinho, Volusianus[2].
Santo Agostinho, Enchiridion 34, ano 420 d. C.
Eventos Tipológicos
No Antigo Testamento, dizia eu, a Eucaristia está presente como “figura”. Todo o Antigo Testamento era uma preparação da ceia do Senhor. Um homem deu um grande banquete. “Quem é esse homem – exclama Santo Agostinho – se não o mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus? Na hora marcada, enviou seu empresário para dizer aos convidados: Venham, já está pronto! (Lc 14,16s.). Quem eram os convidados se não os que foram chamados pelos profetas? Sempre, desde o começo de seu envio, os profetas convidavam para a ceia do Senhor. Foram enviados ao povo de Israel. Muitas vezes foram enviados. Muitas vezes convidaram para que todos viessem à ceia em tempo oportuno” (Sermo 112; PL 38,643). Esta expectativa da ceia, além do que disseram os profetas, apareceu mais claramente nas figuras ou nos “tipos”, isto é, nos sinais ou ritos concretos que foram a preparação e quase um “esboço” da ceia do Senhor. Uma destas figuras foi o maná, lembrada pelo próprio Cristo (cf. Êx 16,4ss.; Jo 6,31ss.). Outra figura foi o sacrifício de Melquisedec, que ofereceu pão e vinho (cf. Gn 14,18; Sl 110,4; Hb 7,1ss.). Uma terceira figura foi o sacrifício de Isaac. Na sequência “Lauda Sion Salvatorem” composta por Santo Tomás de Aquino para a festa do “Corpo de Cristo”, a liturgia canta: “Oculto sob figuras: imolado em Isaac, mostrado no cordeiro pascal, dado aos pais como maná”. Dessas três figuras da Eucaristia, uma é mais do que uma “figura”. É a preparação e quase um ensaio dela: a Páscoa! E da Páscoa que a Eucaristia toma a fisionomia de banquete ou ceia pascal.
Raniero Cantalamessa, O Mistério da Ceia, p. 6.
Deixo aqui o comentário de Orígenes envolvendo o episódio enquanto narrava a Transfiguração do Senhor para que vocês tenham um exemplo de como isso pode ocorrer:
VEJA QUE ORÍGENES CITA A VIA DA SINÉDOQUE
“Mas quando o Filho de Deus em Sua transfiguração for compreendido e contemplado de tal maneira que Seu rosto seja um sol e Suas vestes se tornem brancas como a luz, imediatamente aparecerá a quem contemplar Jesus em tal forma Moisés – a lei – e Elias – este pela via da sinédoque, não apenas um profeta, mas todos os profetas – conversando com Jesus; pois tal é a força das palavras “falando com Ele”; mas, de acordo com Lucas, “Moisés e Elias apareceram em glória”, seguindo até as palavras “em Jerusalém”, tendo entendido a lei espiritual como um discurso em harmonia com Jesus, e a sabedoria dos profetas que se esconde em um mistério, ele vê Moisés e Elias na glória quando os vê com Jesus transfigurado diante deles; pois a Palavra tem formas diferentes, uma vez que Ele aparece a cada um conforme é conveniente ao observador, e não é manifestado a ninguém além da capacidade do observador”.
E ELE CONTINUA CIENTE DA VISÃO INTERPRETATIVA UTILIZADA, POIS POTENCIALIZA O SIMBOLISMO AO SUGERIR QUE O TABERNÁCULO QUE PEDRO SE OFERECEU PARA FAZER PARA JESUS, MOISÉS E ELIAS ERA TAMBÉM UMA IMAGEM METAFÓRICA DA HABITAÇÃO DE DEUS COM OS HOMENS NOS CRENTES, REVELADA NAQUELE MOMENTO DA TRANSFIGURAÇÃO:
Mas como ainda não gastamos nossa energia em interpretar as coisas na passagem figurativamente, mas dissemos essas coisas por meio de uma busca na mera letra, vamos, em conformidade com isso, ponderar se o supracitado Pedro e os filhos do trovão que foram arrebatados ao monte dos dogmas da verdade, e que viram a transfiguração de Jesus e de Moisés e Elias, que apareceram na glória com Ele, queiram fazer em si mesmos tabernáculos para o Verbo de Deus que ia habitar neles, e por meio de sua lei que tinha sido observada em glória, bem como pela profecia que falava da morte de Jesus, que ele estava prestes a cumprir; Pedro […] disse, com a intenção de beneficiar aqueles que assim desejassem: “É bom nós estarmos aqui”.
TODAVIA, ISSO NÃO O IMPEDE ORÍGENES DE TRATAR MOISÉS E ELIAS COMO PESSOAS DE FATO, APRESENTANDO AQUELES EVENTOS COMO UMA SITUAÇÃO REAL, QUE ESTAVA OCORRENDO COM PESSOAS REAIS, AINDA QUE ELAS REPRESENTASSEM ALGO MAIOR:
Mas depois destas coisas está escrito que, quando ouviram a voz da nuvem dando testemunho do Filho, os três apóstolos, não podendo suportar a glória da voz e o poder que nela repousava, “caíram sobre os seus rostos”, e imploraram a Deus. Pois ficaram com muito medo da visão sobrenatural e das coisas que foram ditas pela visão. Mas considere se você também pode dizer tal coisa com referência aos detalhes da passagem, que os discípulos, tendo entendido que o Filho de Deus estava conversando com Moisés, que fora Ele quem declarou: “Um homem não verá a minha face e viverá”, e levando adiante o testemunho de Deus acerca dEle, não sendo capazes de suportar o esplendor da Palavra, se humilharam debaixo da poderosa mão de Deus. Contudo, após o toque da Palavra, erguendo os olhos, viram somente Jesus e nenhum outro. Moisés, a lei, e Elias, o profeta, tornaram-se um só com o Evangelho de Jesus; e não como antes eram três, assim permaneceram, mas os três se tornaram um. Mas considere essas coisas comigo em relação a assuntos místicos; pois no que diz respeito ao significado simples da carta, Moisés e Elias, tendo aparecido em glória e falado com Jesus, foram para o lugar de onde eles tinham vindo, talvez para comunicar as palavras ditas por Jesus a eles, àqueles que iriam muito em breve ser beneficiados por Ele, ou seja, no momento da Paixão, quando muitos corpos de santos que haviam adormecido, sendo abertos os seus túmulos entrariam na cidade, que é verdadeiramente cidade santa — não a Jerusalém sobre a qual Jesus chorou — e eles apareceram a muitos (Mateus 27: 51-54).
CONCLUSÃO
Você percebe que embora Orígenes cite o elemento simbológico em torno do acontecimento, que para ele representava a glorificação de Cristo, assim como também dos personagens envolvidos, em nenhum momento, no entanto, ele nega a realidade dos eventos ali descritos? Acerca da tipificação de personagens bíblicos, é frequente nas Escrituras haver pessoas que se agigantaram em seus papéis no plano redentivo de Deus de tal forma que elas se tornaram sinônimo de ideias e de símbolos posteriormente resgatados, tal como Moisés e Elias (A Lei e os Profetas) e a Virgem Maria (A Igreja). Nos dois primeiros casos, a figura de ambos era tão forte no imaginário judaico, que é retomada em Apocalipse 11. Isso apenas nos revela um elemento admirável da Cristandade: a maneira como Deus compõe a narrativa histórica da salvação por meio de pessoas reais cujas vidas e papéis na história redentiva se agigantam, adquirindo um verdadeiro valor transcendente e eterno: Pedras vivas com as quais Deus constrói, guiando a história de vida de cada um deles, de modo que eles deixam de representar apenas seres humanos singulares, para se tornarem símbolos escatológicos em seu reino eterno.
NOTAS
[1] Conforme é recitado no Credo Apostólico, com o verbo estando no passado “natus ex Maria Virgine”, sua mãe é chamada virgem mesmo após o Senhor Jesus vir à luz. “Natus” é o particípio do verbo “nascor” (nascer).
[2] Epístola de Santo Agostinho Nº 137.
Foto de Josh Applegate via Unsplash




