Respondi a alguns questionamentos instigantes sobre a autoridade da Igreja e decidi compartilhar aqui:
1.Católicos argumentam que a existência histórica da Igreja precede a existência da Escritura, daí que a autoridade da Igreja é maior do que a da Escritura. Ou, talvez de forma mais precisa, que a autoridade da Escritura deriva da autoridade da Igreja.
Na realidade, o argumento que costumeiramente usamos e estamos mais habituamos a recorrer não é ad antiquitatem, como se [supostamente] creditássemos prioridade axiológica à antecedência da Igreja como valor em si mesmo para atestarmos a primazia desta sobre as Escrituras bíblicas. A nossa premissa é muito mais sutil, e tampouco visa a colocar por escanteio a Bíblia Sagrada, como se ela estivesse abaixo da Igreja quanto à sua importância gnosiológica.
2. A Igreja precede historicamente apenas o Novo Testamento; a porção da Escritura conhecida como Antigo Testamento existia séculos antes da igreja, já era reconhecida e gozava de autoridade. Daí que, na melhor das hipóteses, o argumento católico é apenas parcialmente verdadeiro e, na pior, simplesmente falso.
Tem dois problemas neste excerto:
a. Se envolve em um espantalho monumental, porque nenhum católico [que esteja suficientemente inteirado] irá dizer que o Velho Testamento não foi escrito antes da Igreja ser fundada.
b. A “medula espinhal” do nosso argumento, por assim dizer, é quanto ao desenvolvimento do Cânon, cuja sistematização somente se tornou concretizável e perene no Judaísmo Rabínico apenas entre os séculos II a III d.C; quando remanescentes dos Perushim (conhecidos popularmente como os famosos Fariseus), originários das Academias de Pumbedita e Tibiríades (associada aos Mestres Galileus), além da Academia de Jamnia (representada pelo Rabino Yochanan ben Zakai) cifraram definitivamente a Tanakh Judaica como conhecemos hoje, tendo como substrato os textos massoréticos.
Como se ainda não obstasse tudo isso, pendura até os dias atuais divergências convulsionadas por judeus Caraítas, Etíopes e Samaritanos quanto às versões quantitativas da Tanakh em comparação com a dos judeus Rabínicos, ditos “ortodoxos”. A título de exemplificação breve, os judeus Etíopes, também chamados de “Falashas” ou “Beta Israel”, guardam um cânon muito similar à Septuaginta, que serviu como base direta para a catalogação dos Livros do Meqbyan (os quais, hoje, compõem o cânon dos Católicos e Ortodoxos Tewahedo). O cânon dos “Beta Israel” tem incluso até mesmo escritos considerados apócrifos pela tradução deuterocanônica, como os Livro dos Jubileus e o Livro de Enoque. Desde os tempos de Jesus já amarravam essas encrencas, não por menos que os legionários da ramificação Ṣĕḏōq (Saduceus) rivalizaram com o Verbo por conta da crença na Ressurreição, porquanto estes não tinham os livros dos Nevii’im como sagrados; somente depositavam inspiração na Torá.
Em suma, os judeus não fecharam os escritos vetero-testamentários antes do advento da Religião Revelada.
3. Em segundo lugar, o argumento é falacioso. Ora, do fato que X ser mais antigo que Y não se segue que X tenha autoridade sobre Y. Vários cultos do antigo oriente próximo eram mais antigos que a Fé de Abraão, Isaque e Jacó. Dificilmente se segue daí que aquelas religiões fossem mais autoritativas que a religião Hebraica.
Como já havia adiantado ainda no início deste texto, a razão de conferirmos dependência gnosiológica entre o Cânon Sagrado e a Igreja Visível não deve-se por conta de uma premissa ad antiquitatem. O motivo das Escrituras serem nada menos que uma consecução da própria Tradição Apostólica, oriunda de uma institucionalidade sem a qual não seria possível a existência da coletânea de Livros Sagrados que conhecemos como Bíblia, impõe relações bilaterais de necessidade epistêmica e normativa da primeira em detrimento da segunda. Este argumento somente estaria sob suspeita de “falácia do tempo” caso predicássemos que o Cânon Sagrado está sujeito historicamente ao Magistério por conta da precedência temporal da Igreja Visível em si mesma.
4. Mas o mais importante, o argumento católico simplesmente não se acomoda ao próprio conceito de autoridade. Uma forma muito simples, mas muito poderosa, de entender o que significa dizer que ‘X tem autoridade’ foi formulada pelo grande filósofo Joseph Raz. O conceito raziano de autoridade a concebe como algo que fornece razões para alguém crer em algo ou fazer alguma coisa. Mas as razões que alguém dotado de autoridade concede não são razões de qualquer tipo, mas razões que podemos chamar de razões excludentes. Razões excludentes são razões de segunda ordem que prevalecem sobre razões de primeira ordem. Em termos mais simples, razões excludentes são aquelas que, diante de quaisquer outras razões que alguém possa ter para crer ou fazer alguma coisa, “excluem” ou cancelam estas razões, e prevalecem no final.
Além de ser em vão a tentativa de escrutar o Múnus do Magistério sob um viés filo-racionalista, é inaplicável e anacrônico entender a concepção magisterial de autoridade a partir do positivismo jurídico em Joseph Raz. Em primeiro lugar, exsurge reconhecer o Magistério [Ordinário e Extraordinário] como a autoridade suprema em matérias de fé e moral. Essa autoridade, derivada da Sucessão Apostólica Formal, é investida do Múnus exclusivo para interpretar e ensinar as verdades fundamentais contidas na Revelação divina, a qual engloba integralmente a Bíblia (Papa Pio XII, Encíclica Divino Afflante). Em contrapartida, a Revelação Bíblica é reverenciada como parte elementar do Depósito da Fé, cuja a inspiração [pelo Espírito Santo] a torna uma fonte inconteste de autoridade. Ao abordarmos o conceito de razões excludentes conforme a teoria de Raz, deparamo-nos com muitas complexidades. Embora as razões excludentes emitidas por uma autoridade prevaleçam sobre outras razões, pelo menos na nossa Tradição, guardada e zelada pela Sé Apostólica, a Bíblia Sagrada é percebida como uma autoridade divina que transcende qualquer interpretação humana no que diz respeito ao Kerigma, sendo a principal fonte da qual os Sacramentos e a Encarnação do Verbo são informadas. Nesse contexto, as razões excludentes emitidas pelo Magistério não suplantam ou substituem a autoridade da Bíblia, mas sim a servem.
Ademais, a distinção entre razões de primeira ordem e razões de segunda ordem não se aplica diretamente à relação entre o Magistério e a Revelação Bíblica. Porquanto que Raz argumenta que as razões de segunda ordem prevalecem sobre as razões de primeira ordem, na Igreja, as Escrituras são consignadas como razão de primeira ordem quanto àquilo que é próprio do Conteúdo Revelacional. O Magistério encarga como um instrumento e veículo infalível para interpretar e explicar essa Revelação, ao mesmo tempo que apodera-se da sua dinamicidade legal para ratificar [normativamente] a fonte escriturística ou sagrar Verdades de Fé — dogmatizando doutrinas que, mesmo não sendo antecedidas por precedentes bíblicos, estão em sintonia com as Escrituras e não concorrem com elas.
5. O crítico do sola scriptura não apenas argumentaria que nenhum ensinamento da Igreja contradiz a Escritura; argumentaria que a Igreja sequer poderia contradizer a escritura. Numa hipotética situação em que um ensinamento da Igreja fosse de encontro ao ensinamento da Escritura, caberia à Igreja se retratar e adequar seu ensino ao que é ensinado pela Escritura, não importando as razões que o Papa ou o Patriarca tivessem para pensar que o ensinamento da Igreja que contradiz a Escritura esteja correto. Assim, as razões fornecidas pela Escritura cancelariam e prevaleceriam sobre as razões do Papa ou do Patriarca.
O recurso argumentativo usado pelo irmão protestante, aqui, é uma indiscutível falácia informal da Falsa Dicotomia: a transmissão magisterial dos ensinos doutrinários nunca poderão entrar em conflito com as Escrituras, não porque as razões fornecidas pela Revelação Bíblia são sobressalentes ou superiores às razões das autoridades episcopais, mas em virtude de ambas as fontes [bíblica e magisterial] serem visceralmente as mesmas quanto a sua origem comum. Justamente pelo Magistério da Igreja e as Escrituras estarem interligadas, tanto por fatores históricos como pelos avoengos da sucessão através da Cheirotonia, que as duas portam Razão Excludente de Segunda Ordem. Há uma impossibilidade epistemológica de uma sobreluzir Razão de Primeira Ordem, em sujeição d’outra, visto que as duas têm as mesmas fontes de origem associadas aos Apóstolos e a Cristo, mediante a Sucessão Formal. Daí segue-se o clássico Tripé, em que a transmissibilidade da Tradição resvala como um liame de comunicação, que comunica o Magistério e a Bíblia.
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