Porque a ideia atrelada a essa ordem de Jesus não é a mesma que encontramos em alguns discursos de pessoas que acusam os católicos de desobediência. A bíblia, por exemplo, apresenta a noção de pai natural, antepassado e guia espiritual quando usa a palavra “pai” em diversos contextos. Em Lucas 14,26, Jesus diz a palavra com respeito ao genitor: “Se alguém vem a mim e ama o pai, a mãe, a mulher, os filhos, os irmãos, as irmãs e até a própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo”. Já em Atos 7,2, por exemplo, santo Estêvão diz “nosso pai Abraão”, para se referir ao seu ancestral, o que ocorre também com são Paulo em Romanos 9,10, quando diz “nosso pai Isaque”. Jesus também faz uso do sentido espiritual da palavra, ao afirmar que os judeus, embora tendo Abraão por antepassado segundo a carne, ainda assim não eram seus filhos espirituais, pois não faziam as suas obras:
Responderam e disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus disse-lhes: Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão.40 Mas, agora, procurais matar-me a mim, homem que vos tem dito a verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não fez isso.41 Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe, pois: Nós não somos nascidos de prostituição; temos um Pai, que é Deus. 42 Disse-lhes, pois, Jesus: Se Deus fosse o vosso Pai, certamente, me amaríeis, pois que eu saí e vim de Deus; não vim de mim mesmo, mas ele me enviou.43 Por que não entendeis a minha linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra.44 Vós tendes por pai ao diabo e quereis satisfazer os desejos de vosso pai […]
João 8, 39-44
Veja que diz: “Se fôsseis filhos de Abraão…”, ou seja, seria possível que eles fossem, se imitassem a Abraão. Jesus chega a citar o episódio de um homem que era filho de Abraão segundo a carne, mas não segundo a fé, e, portanto, fora lançado no inferno na parábola do Rico e do Lázaro:
E aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; e morreu também o rico e foi sepultado. 23 E, no Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão e Lázaro, no seu seio. 24 E, clamando, disse: Abraão, meu pai, tem misericórdia de mim e manda a Lázaro que molhe na água a ponta do seu dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. 25 Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, somente males; e, agora, este é consolado, e tu, atormentado. 26 E, além disso, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem tampouco os de lá, passar para cá.
Lucas 16, 22-26
O apóstolo Paulo, seguindo o exemplo de Jesus, separou aqueles que eram filhos de Abraão segundo a carne e natureza daqueles que eram filhos de Abraão pela fé, por terem a mesma fé do patriarca [Gálatas 3 e em Romanos 4]:
Saibam, portanto, que aqueles que têm fé é que são filhos de Abraão. Prevendo a Escritura que Deus justificaria os gentios pela fé, anunciou primeiro o evangelho a Abraão: “Por meio de você todas as nações serão abençoadas”. Assim, os que são da fé são abençoados com Abraão, o homem de fé […] Isso para que, em Cristo Jesus, a bênção de Abraão chegasse também aos gentios, para que recebêssemos a promessa do Espírito por meio da fé.
Gal 3, 7-14
Assim, Abraão é o pai espiritual de todos os que creem e foram declarados justos, mesmo que não sejam circuncidados. 12 Mas é também o pai espiritual dos judeus, os quais são circuncidados. Eles podem ver por este exemplo que não é esse rito que os salva, porque Abraão alcançou a misericórdia de Deus só pela fé, antes de ter sido circuncidado.
Rm 4,11-12
Esse uso da palavra “pai” com uma ideia de paternidade espiritual é altamente difundido nos escritos neotestamentários, com S. Paulo afirmando ter gerado os seus filhos espirituais para Cristo, os fiéis da Igreja, como fruto de seu trabalho missionário: “Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós!” (Gálatas 4,19). Ele chama Timóteo de filho na fé inúmeras vezes (1 Tm 1,2; 2 Tm 1,2; 1 Tm 1,18; 2 Tm 2,1; Fp 2,22); bem como outros sem especificar diretamente (1 Coríntios 4,14-15) ou mesmo especificando, tais como Tito (Tito 1,4) e Onésimo (Fil. 10). Pedro seguiu o mesmo costume, referindo-se a S. Marcos (1 Pedro 5,13). A Igreja também é munida com mestres no ensino, sem os quais seria impossível o comando do Senhor de discipular as nações: “E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas” (1 Co 12,28); e isso se repete em outros textos: “e outros para pastores e mestres” (Ef 4,11). O próprio Jesus reconheceu a autoridade dos mestres da lei de sua época:
¹ Então falou Jesus à multidão, e aos seus discípulos,
² Dizendo: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus.
³ Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras,
porque dizem e não fazem;
⁴ Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com seu dedo querem movê-los;
⁵ E fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens; pois trazem largos filactérios, e alargam as franjas das suas vestes,
⁶ E amam os primeiros lugares nas ceias e as primeiras cadeiras nas sinagogas,
⁷ E as saudações nas praças, e o serem chamados pelos homens; Rabi, Rabi.
Mateus 23:1-7
Veja que a crítica de Jesus não era dirigida ao fato de eles serem mestres de Israel, pois Cristo os reconhecia como tal, mas à sua hipocrisia: dizem e não fazem. Jesus admite que Nicodemus era “mestre de Israel” em Jo 3,10, embora com um leve puxão de orelha, já que Nicodemus não entendia algo básico de sua religião. Cristo também chamou os fariseus de “guias cegos” [Mateus 15,14 e em Mateus 23,24], isto é, mestres que não ensinavam o povo adequadamente, se tornando um empecilho no caminho para a salvação: “Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo” [Mt23,13]. Logo, se ele admitia esses papéis, criticando-os quando não desempenhados apropriamente, como então podemos entender o que Cristo queria dizer com as palavras: “Não chameis a ninguém pai ou mestre/rabi”? Se Ele mesmo fez isso se referindo a genitores, antepassados e até mesmo pais espirituais de forma não condenatória, e os apóstolos mantiveram a mesma postura em seus escritos após isso?

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Aparentemente, Cristo usou essa linguagem no discurso para enfatizar a necessária conduta de humildade que os discípulos deveriam ter. Os mestres da lei queriam “os primeiros lugares nos banquetes, os primeiros assentos nas sinagogas, as saudações nas praças públicas e serem chamados de ‘rabinos’ pelos homens” (Mt 23,6-7). Mas os discípulos não deveriam ser assim: quem quiser ser o primeiro entre vós será servo [Mc 10, 43-45]. Veja que Jesus não afirmou a inexistência de lugares e funções especiais, pois a Igreja teria necessidade de líderes, mestres e doutores, além de “pais espirituais”, mas a condenação era contra a soberba daqueles que desejavam essas coisas. Pois elas só existiam para o cuidado das ovelhas, não para a exaltação dos homens. O próprio conselho apostólico de S. Tiago nos é apropriado quanto a esse aspecto: “Caros irmãos, não vos torneis muitos de vós mestres, porquanto sabeis que nós, os que ensinamos, seremos julgados com maior rigor” [Tg 3,1].
CONCLUSÃO
É importante, portanto, entendermos bem o discurso utilizado em muitos trechos da Bíblia, bem como sua função, buscando perceber a harmonia em cada passagem de modo a não contradizer o todo. Isso é conveniente, pois a Escritura é complexa, ainda que não soframos de falta grave, uma vez que Deus tenha munido a Igreja de muitos mestres e bons professores. Devemos perceber também, além disso, que Jesus muitas vezes repassava de maneira mais profunda seus ensinamentos, com uma visão que transcendia alguns aspectos terrenos, em muitos pontos, inclusive, apontando para a exclusividade divina. Em verdade, e numa perspectiva mais estrita, Deus é o único mestre e o único pai, pois é a fonte de toda sabedoria, vindo dele a verdadeira doutrina, bem como todas as demais coisas [Tg 1,17]. Mas isso não significa que os homens não possam ser instrumentos dessa atividade magisterial divina, algo que ocorre constantemente na Escritura. Se considerarmos nessa perspectiva, cada vez que um professor/mestre fala a verdade, ele fala pela boca de Deus e diz a verdade vinda de Deus. Sendo assim, Jesus chama Abraão de pai daqueles que cumprem suas obras porque Abraão fez as obras de Deus, e S. Paulo convoca os homens a serem seus imitadores porque ele imitava Deus. Contanto que entendamos essas coisas, está tudo bem dizermos juntamente com Jesus e S. Paulo que somos filhos de Abraão pela fé, e chamarmos padre a um sacerdote constituído para apascentar a Igreja de Cristo na terra.
Foto: Manfredonia na Wikipédia italiana
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