Por que a Igreja Católica diz que Pedro é a rocha?

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Os católicos compreendem essa doutrina a partir de uma série de textos e de uma tradição longa que remonta a era apostólica. O Papa é o sucessor de Pedro, que recebeu sua autoridade especial do próprio Cristo, que disse: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” – Mateus 16:18. A Igreja, por sua vez, é o fundamento da verdade, sendo dada a ela a vocação para o testemunho da Verdade: “A igreja do Deus vivo, pilar e fundamento da verdade” – 1 Timóteo 3:15. Isso significa que ela é chamada a dizer a Verdade ao mundo de uma forma certa e sem mistura de erro, o que necessariamente implica infalibilidade em sua interpretação da revelação. Se as decisões da Igreja induzissem ao erro os seus filhos, ela não poderia ser chamada de pilar e fundamento da verdade, pois seria uma coluna e um sustentáculo vacilante e suspeito, todavia, a Escritura não mentiu. Disso surge a ideia da rocha, que impede que o terreno sobre o qual se constrói uma casa desmorone. Essa concepção não se encontra ligada à noção de impecabilidade, ou de que o Papa jamais fala nenhuma mentira ou se engana. É carisma decorrente do exercício oficial e em vigor apenas em específicas situações. Leia sobre isso aqui: De onde vem o dogma da Infalibilidade Papal?

 

O CHAMADO ESPECIAL DE PEDRO

 

Sabemos que Cristo é a Rocha eterna e o fundamento perpétuo da Igreja (1 Co 3: 11), todavia, a escritura também chama cada um dos apóstolos de cooperadores dessa construção que é a Igreja, se tornando, eles próprios também parte da estrutura da Igreja. Isso ocorre porque eles têm a Cristo como rocha angular. Pedro, ao falar pelo Espírito Santo, é escolhido por Cristo e chamado de rocha da Igreja. Além disso, ainda a Bíblia ensina que cada cristão é individualmente uma rocha viva (1 Pe 2: 4-6), que ajuda a sustentar todo o edifício da fé. Qual interpretação é a correta? Será preciso escolher? Ora, todas elas são. Cristo é a Rocha, mas Pedro também é. Os apóstolos e demais cristãos também são rochas vivas, mas nunca em oposição a Cristo, porém cooperando com Ele, e ajustados à sua pessoa. Isso suscita a questão: podemos negar o chamado especial de Cristo no evangelho de Mateus se dirigindo a Pedro especificamente como pedra da Igreja? Não. Deus o escolheu entre os apóstolos para confirmar seus irmãos na fé e para manter a unidade da doutrina, ensinando que as portas do inferno não prevaleceriam contra a Igreja. Um detalhe que devemos notar também é aquilo que foi apontado pelo apologista e escritor norte americano Dave Armstrong sobre a exegese do texto de Mateus: “Algo surpreendentemente, o consenso entre os comentaristas protestantes da atualidade (incluindo eminentes estudiosos como R. T. France, D. A. Carson, William Hendriksen, Gerhard Maier e Craig L. Bloomberg), é que a pedra, na verdade, refere-se ao próprio Pedro, não à sua fé” [ARMSTRONG, Dave. Está Escrito: Os Versículos Católicos, p. 47]

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Dito isso, quais as aplicações práticas desses dois ensinos revelados na Escritura [de que Pedro é a rocha e de que a Igreja deve necessariamente ter um ensino correto e verdadeiro]? Se Pedro morreu antes que a Igreja estivesse plenamente consolidada no mundo, ainda quando esta se encontrava perseguida e era apenas um pequeno partido nazareno, como a vocação de Jesus se cumpriria? Sabemos que o Senhor rogou por Pedro e, de modo direto, ordenou-lhe que ele confirmasse seus irmãos, os demais apóstolos, sendo que seus irmãos não tinham negado o Senhor, permanecendo sem se desviar, mas Pedro sim, provando que a vocação de Deus é sem arrependimento. (Lucas 22,31,32 e Romanos 11, 29). Jesus também repete três vezes a Pedro o comando de apascentar seu rebanho, que é a Igreja.

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[…] disse Jesus a Simão Pedro: Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes? E ele respondeu: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe: Apascenta os meus cordeiros. Tornou a dizer-lhe segunda vez: Simão, filho de Jonas, amas-me? Disse-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas. Disse-lhe terceira vez: Simão, filho de Jonas, amas-me? Simão entristeceu-se por lhe ter dito terceira vez: Amas-me? E disse-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo. Jesus disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas.

João 21:15-17

 

Os católicos veem como implicação direta dessas verdades o papado e creem que essa vocação é para além da pessoa de Pedro: quer dizer que Jesus falava para além de sua vida terrena. Também o Senhor disse que daria a Simão as chaves do reino dos céus, que figurativamente indica autoridade nas Escrituras. Ele fez isso após chamar Simão de petros (pedra) como recompensa por ele  ter sido o único dos apóstolos que respondeu de forma correta qual é a verdadeira indentidade do Senhor. Jesus claramente estava recompensando Simão Pedro, e ainda afirma que o discípulo fez isso porque, naquele momento, o Espírito Santo o havia escolhido e revelado de forma interna e sobrenatural a verdade que seus irmãos desconheciam. Isso demonstra como tal dom provém da graça divina.

 

E, chegando Jesus às partes de Cesaréia de Filipe, interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do homem? E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou um dos profetas. Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela; E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.

 

Mateus 16:13-19

 

Muitos argumentos lidando com tais textos possuem um viés moderno, com teorias girando em torno da Chave do Reino dos Céus funcionando como uma “alegoria” geral para a autoridade que todos os cristãos em todo o tempo possuem ou tratando como uma ideia de pensamento positivo e palavra de ordem, interpretações geralmente suscitadas em palestras onde os pregadores usam muito a expressão “eu determino isso em minha vida” ou “Pela fé eu declaro que receberei isso”. Em suma, argumentam que se alguém ligar algo com seu pensamento firme e positivo à sua vida, tal coisa acontecerá no céu, já que Deus moverá os anjos ao seu favor para aquilo acontecer, conforme a palavra positiva. Todavia, essas alegações não satisfazem o contexto das passagens, que possuem ligação clara com o mistério da Igreja e sua manifestação e manutenção no mundo.

 

A MORDOMIA DE ELIAQUIM CITADA POR JESUS PARA FALAR DO PAPEL DE PEDRO

 

Um judeu do primeiro século, como era o caso dos apóstolos, cuja mentalidade era treinada pela leitura da Torá e dos profetas, por exemplo, ouvindo falar da chave que Jesus daria a Pedro, pensaria logo em Eliaquim, a quem o Senhor constituiu mordomo sobre a casa de Judá. Isso é descrito pelo profeta Isaías. Deus lhe incumbe de uma autoridade para decisão no meio do seu povo e diz: “você será como pai para os moradores de Jerusalém”. Em geral, as pessoas que se irritam com o título Papa deveriam gostar ainda menos dessa nomenclatura usada por Deus ao se referir a Eliaquim, constiuindo-o “pai” do seu povo, moradores de Jerusalém. Deus também aparece prometendo-lhe estabelecê-lo em um lugar firme (de tal maneira a não cair ou “falir”): “fixá-lo-ei como um prego num lugar firme”. O Senhor assim substituiu Sebna por Eliaquim, arrancando o assento de autoridade daquele mordomo e dando a este, por causa da infidelidade do primeiro (v. 15 e 19). Isso é bastante parecido com a fala de Cristo aos escribas e fariseus, quando diz-lhes: “o Reino de Deus será retirado de vós para ser entregue a um povo que produza frutos dignos do Reino. Todo aquele que cair sobre esta pedra se arrebentará em pedaços; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó!” (Mt 21: 43-44).

 

E será naquele dia que chamarei a meu servo Eliaquim, filho de Hilquias; E vesti-lo-ei da tua túnica, e cingi-lo-ei com o teu cinto, e entregarei nas suas mãos o teu domínio, e será como pai para os moradores de Jerusalém, e para a casa de Judá. E porei a chave da casa de Davi sobre o seu ombro, e abrirá, e ninguém fechará; e fechará, e ninguém abrirá. E fixá-lo-ei como a um prego num lugar firme, e será como um trono de honra para a casa de seu pai.

Isaías 22:20-23

 

Os cristãos ouviam tal coisa e julgavam que havia ali um sentido importante, que não deveria ser ignorado. Quando Pedro e os demais apóstolos morreram, a Igreja já possuía uma estrutura formada por eles, à qual seus sucessores deram continuidade. Leia mais aqui. Irineu de Lyon, ao descrever a lista de sucessão de bispos, argumenta que as demais igrejas deveriam concordar com a Igreja alicerçada sobre os dois maiores e mais ilustres apóstolos, Pedro e Paulo por sua fundação excelente. Alguns dizem que pelo fato de Pedro ter fundado outras igrejas além da romana, isso indica que não é possível haver primazia. Todavia, isso não é um argumento levado em conta nem se tratando de questões seculares. Imagine que alguém datém um ofício de liderança em uma comarca A, a qual PRESIDE apenas por um tempo mas sai para ocupar outra Cadeira de comando em outra comarca B, onde fica até sua morte. Quem é considerado de fato como ocupante de seu cargo posteriormente? Aquele que ocupa o lugar onde ele esteve apenas momentaneamente, isto é, na comarca A, enquanto fundava a repartição e de onde logo se ausentou, ou aquela cadeira e função a qual ocupava quando morreu, a comarca B? Isso é evidente até mesmo nas relações comuns mundanas que é a segunda opção, pois qualquer homem tem como seu sucessor genuíno aquele que lhe sucede enquanto estava no exercício da função e cargo, e isso ajuda a explicar por que se entendia Roma como herdeira da autoridade de Pedro, e não Antioquia (também fundada por ele), pois Pedro, conforme Jerônimo e outros, ocupou a Cátedra Apostólica Romana por 25 anos até sua morte.

 

Meditação de São Jrônimo, de Benvenuto Tisi – Domínio Público (wikimedia commons)

 

Por isso a conclusão a qual chegaram os cristãos, que historicamente alegam a primazia de Roma, não é arbitrária. Veja que fica claro que a autoridade de Roma é ligada a Pedro até mesmo através de sínodos e concílios como o de Sardica (342), por exemplo, que pela defesa de apelação ao Papa Júlio I realizada pelo Bispo Ósio de Córdova, menciona sua cátedra como sendo aquela por meio da qual se honraria a memória de Pedro. Este bispo, inclusive, foi o que liderou o primeiro Concílio Ecumênico da Igreja, Niceia I (325), o qual definiu a Trindade (e alguns eruditos defendem a tese de que ele era um legado papal, representando o Bispo de Roma, o que indicaria que o Papa chefiou o primeiro Concílio da Igreja Cristã). Mas isso é um tema controverso e ainda disputado. Leia suas palavras:

 

SÍNODO DE SÁRDICA

 

Se algum bispo perder o julgamento em algum caso [decidido por seus colegas bispos] e ainda acreditar que não tenha um caso infundado, mas um bom, para que o caso possa ser julgado novamente… honremos a memória do apóstolo Pedro, mandando àqueles que julgaram escrever a Júlio, bispo de Roma, para que, se parecer conveniente, ele mesmo envie árbitros e o julgamento seja refeito pelos bispos de uma província vizinha.

 

Cânon 3, ano 342 d.C.

 

A BÍBLIA, OS CONCÍLIOS E O PRIMEIRO LUGAR DE PEDRO

 

Antes de passarmos aos concílios gerais e de maior extensão, a Bíblia apresenta a nós o primeiro Concílio da Igreja em Jerusalém, com Simão Pedro levantando-se e tomando a frente da reunião: “Congregaram-se, pois, os apóstolos e os anciãos para considerar este assunto. E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-lhes: Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem (Atos 15,6,7). Também os 3 evangelhos sinóticos enumeram os apóstolos em ordem de importância, sendo São Pedro o primeiro citado, sempre e invariavelmente, em todas as listas que mencionam a vocação dos apóstolos (Mateus 10: 2-4; Marcos 3: 16-17; Lucas 6: 14-16). Isso tem significado quanto à ordem de importância, pois Judas, o Iscariotes, é sempre e invariavelmente elencado em último lugar. A tradição apostólica também coloca desde cedo Roma como a fonte do episcopado eclesiástico e da hierarquia. O motivo? O fato de Pedro ter exercido o episcopado ali, bem como o seu martírio. Os cristãos antigos atribuíam isso a Pedro e à declaração do Senhor dirigida a ele. Antioquia também tem a prerrogativa de ter sido fundada por Pedro, mas a fonte do Episcopado foi aquela Igreja que tem a marca do martírio do apóstolo, e na qual Pedro, ao se assentar antes de ser levado à morte, deixou seus sucessores, que seriam a partir dali considerados como tendo participação em seu trono e autoridade como chefe dos apóstolos. Isso vemos estabelecido nos concílios antigos:

 

CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA I (ANO 381)

 

O bispo de Constantinopla terá o PRIMADO de honra DEPOIS do bispo de Roma, porque sua cidade é a Nova Roma”

cânon 3, ano 381 d.C.

 

CONCÍLIO DE ÉFESO (ANO 431)

 

Filipe, presbítero e legado [do Papa Celestino I] disse: ‘Oferecemos nossos agradecimentos ao santo e venerável sínodo, que quando os escritos de nosso santo e bendito papa foram lidos a vocês, os membros sagrados por meio de nossas santas vozes, vos unistes à santa cabeça também por meio de vossas santas aclamações. Pois a vossa bem-aventurança não ignora que a cabeça de toda a fé, a CABEÇA dos apóstolos, é o bem-aventurado Pedro, o apóstolo. E uma vez que agora, depois de termos sido sacudidos pela tempestade e muito vexados, nossa mediocridade se apresentou, pedimos que vocês ordenem que seja apresentado diante de nós quais coisas foram feitas neste santo sínodo antes de nossa chegada; para que, de acordo com a opinião de nosso abençoado papa e desta presente santa assembleia, também possamos ratificar sua determinação’.

Atos do Concílio, sessão 2, ano 431 d.C.

 

CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA (ANO 451)

 

“O Bispo Paschasinus, guardião da Sé Apostólica, colocou-se no meio [dos Padres do Concílio] e disse: ‘Recebemos instruções das mãos do mais abençoado e apostólico bispo da cidade romana [Papa Leão I], que é o CHEFE de todas as igrejas, cujas instruções afirmam que Dióscoro não deve se assentar na presente assembleia, mas que caso ele tente tomar seu assento, deve ser expulso. Devemos cumprir esta instrução. se agora sua santidade assim ordena, que ele seja expulso ou então vamos embora.

Atos do Concílio, sessão 1, ano 451 d.C.

 

PEDRO CONFIRMA OS IRMÃOS SÓ ATÉ SUA MORTE EM 65 A.D.?

 

A doutrina da vida eterna, da intercessão dos santos e da veneração das relíquias também consolidou a noção de que o reino da morte havia encontrado sua derrota para os cristãos, no que diz respeito à antiga prisão do sheol judaico. Assim, patronos e padroeiros específicos em cada lugar na Igreja Primitiva eram invocados para serem intercessores de causas nos céus. Leia mais sobre isso aqui. A ligação entre o mundo natural e o paraíso (mundo vindouro) que as relíquias forneciam, confirmadas por milagres realizados por Deus através delas, seja pelos méritos dos próprios cristãos vivos (Atos 19,12) ou pelos de seus espíritos no céu (2 Reis 13,21), tinha enorme peso. Na compreensão espiritual das tumbas dos mártires como ligadas a seus espíritos intercessores, Pedro e Paulo, que morreram em Roma, dão a essa Igreja uma honra dupla, conferida pelo sangue dos dois apóstolos considerados mais ilustres (Cf. Irineu de Lyon, Contra as Heresias III, 3:3:2-3 ano 180-189 d. C.), o qual, tal como o sangue de Abel, clama [não mais da terra e do vale dos mortos, porém agora do céu]. Isso dá vigor à fé primitiva cristã, que vê nisso a confirmação da promessa. Pode não parecer nada para muitos, mas para um cristão fiel da Igreja antiga, era muito significativo. Isso nos leva à pergunta: Quando Jesus diz “eu roguei por ti, para que a tua confiança não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos” (Lc 22), aquela tarefa dada a Pedro só duraria três décadas? A Igreja celebra a memória dos mártires por acreditar na vida eterna: que pela presença de suas relíquias e pela certeza de sua intercessão, a Igreja é confirmada na fé. Eles, os dois santos Pedro e Paulo, são considerados desde cedo patronos protetores/intercessores da Igreja de Roma e do trono petrino, herança da autoridade do primeiro. Veja o trecho em que Inácio de Antioquia ( 35 – 110 d.C ), discípulo direto do Próprio Apostólico João, narra no século I essa devoção antiquíssima das relíquias milagrosas dos mártires:

 

INÁCIO DE ANTIOQUIA

 

“Apenas as partes mais duras de suas relíquias sagradas foram deixadas, as quais foram transportadas para Antioquia e envoltas em linho, como um tesouro inestimável deixado para a santa Igreja, pela graça que estava no mártir.

(Martírio de Santo Inácio de Antioquia – Capítulo VI).

 

São João Crisóstomo também menciona inúmeras peregrinações dos fiéis às tumbas dos mártires, com o intuito de buscar a intercessão de ambos, Pedro e Paulo, na cidade de Roma em sua época:

 

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

 

E quanto à tumba de Alexandre, nem mesmo seu próprio povo conhece, mas tal homem [Cristo] é aquele que os próprios bárbaros conhecem. E os túmulos dos servos do Crucificado são mais esplêndidos que os palácios dos reis; não pelo tamanho e pela beleza dos edifícios (e ainda assim os superam), mas, me refiro àquilo que é muito superior, pelo zelo dos que os frequentam. Pois aquele que usa púrpura vai abraçar aqueles túmulos e, deixando de lado seu orgulho, implora aos santos que sejam seus advogados junto a Deus, e aquele que tem o diadema implora ao fabricante de tendas [São Paulo] e ao pescador [São Pedro], embora mortos, para que sejam seus patronos. Você ousará então, diga-me, chamar o Senhor desses mortos; cujos servos, mesmo após sua morte, são os patronos dos reis do mundo? E isso pode acontecer não apenas em Roma, mas também em Constantinopla.

 

(São João Crisóstomo, Homilias sobre Segunda Coríntios 26:2:5, ano 392 d.C.)

 

Sendo chamado por Cristo de pedra de confirmação da Igreja contra as portas do infernos, isto é, contra as heresias, as relíquias de Pedro se tornam um ponto crucial na Hierarquia. Veja a carta de São Zósimo (ano 418) a Aurélio, o Arcebispo de Cartago e Primaz da África, que presidiu um Concílio em Cartago falando da ligação entre Pedro e a Igreja de Roma. O detalhe é que ele trata da autoridade principal dessa igreja como algo indubtável e aceito por todos os cristãos no mundo inteiro (o que é confirmado pelos concílios citados acima), bem como também menciona a assistência espiritual de Pedro, mesmo após sua morte, a sua cátedra:

 

“Embora a tradição dos Padres tenha atribuído uma autoridade tão grande à Sé Apostólica, de modo que ninguém ousará questionar seu julgamento, sendo ele perpetuamente mantido por meio de seus cânones e regras, e através da disciplina eclesiástica, como demonstrado no curso de suas leis, ela presta a reverência que deve ao nome de Pedro, de quem ela mesma também se origina: pois a antiguidade canônica, pelo julgamento de todos, desejou que o poder deste Apóstolo fosse tão grande. Isso se dá pela própria promessa de Cristo nosso Deus, de conceder-lhe poder para desligar o que está ligado e ligar o que está desligado; e um poder igual é dado àqueles que desfrutam, com seu consentimento, da herança de sua Sé; pois ele (Pedro) cuida não somente de todas as Igrejas, mas de modo especial desta Sé, onde ele se assentou: não permitindo que nenhum sopro abale, seja um privilégio ou uma sentença, para a qual ele mesmo deu a forma e o fundamento imutável de seu nome, e que, sem perigo para si, ninguém pode atacar precipitadamente. Pedro, sendo um chefe com tamanha autoridade, e tendo o zelo de todos os nossos ancestrais confirmando ainda mais isso, de modo que a Igreja Romana é estabelecida por todas as leis e disciplinas humanas e divinas – de cujo lugar nós governamos e mantemos o poder, não sendo vós ignorantes com respeito a isso – antes, meus queridos irmãos, tendo ciência disso, e na qualidade de bispos são obrigados a saber; sendo essa a nossa autoridade, ninguém pode questionar a nossa sentença. Portanto, não fizemos nada que não tenhamos, por nossa conta, mencionado em nossas cartas para o vosso conhecimento

Epístola 12; traduzido por: Thomas William Allies. The See of Peter: The Rock of the Church,
the Source of Jurisdiction, and the Center of Unity (Londres: Burns & Lambert, 1850), 90-91.

 

A UNIDADE DA “COMMUNIO” CRISTÃ

 

A história e seu curso também consolidou a liderança dessa cátedra, pois logo que a Igreja se via assaltada pela ameaça dos erros, a Sé Apostólica assumia um papel de destaque na solução das controvérsias. Assim, o episcopado, que é a estrutura em forma de hierarquia e cujo centro é a autoridade do bispo, foi a defesa do Cristianismo contra as heresias. Um livro de um padre chamado Ludwig Von Hertling, da Companhia de Jesus (Societas Iesu), chamado Communio: Church and Papacy in Early Christianity, originalmente lançado em alemão na Miscellanea Historiae Pontificiae, vol.7, 1943, argumenta que a lógica para o papado se encontra na unidade da comunhão cristã. Por isso, muitos consideram Pedro como o ícone da Unidade, e mesmo cristãos ortodoxos, os quais negam a jurisdição universal do bispo de Roma, ainda assim não negam a sua primazia. De fato, as primeiras citações com respeito a uma sede de apelação com poder definitivo, residindo na igreja romana, surgiram em contextos de debates e controvérsias com hereges. Hertling demonstra em seu livro que a Igreja precisava de uma autoridade final, e uma vez que S. Inácio de Antioquia, defendendo a estrutura estabelecida pelos apóstolos [episcopado], havia advogado que a firmeza da doutrina deveria ser verificada pela antiguidade da prática preservada na unidade estabelecida em torno da Eucaristia, a qual era administrada pelo Bispo que possuía a Tradição dos apóstolos, se houvesse bispos que discordassem entre si, a decisão definitiva não poderia decorrer de todos eles igualmente. Então a pergunta que veio a seguir seria: qual bispo teria o voto de Minerva? 

 

INÁCIO DE ANTIOQUIA

 

“Certifiquem-se, portanto, de que todos vocês tenham apenas uma única Eucaristia, pois há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo, e somente um cálice para [demonstrar] a unidade de seu sangue, e um único Altar de sacrifício – assim como também há apenas um único Bispo… Isso garantirá que todas as suas obras estejam de acordo com a vontade de Deus.”

Inácio de Antioquia, Epístola aos Filadélfios, 4; Traduzido por Alexander Roberts e James Donaldson. De Ante-Nicene Fathers, vol. 1. 

 

Pois todos os que são de Deus e de Jesus Cristo também estão com o bispo. E todos quantos, no exercício do arrependimento, retornam à unidade da Igreja, esses também pertencerão a Deus, para que possam viver de acordo com Jesus Cristo. Não erreis, meus irmãos. Se alguém segue o homem que cria um cisma na Igreja, o tal não herdará o reino de Deus. Se alguém anda segundo uma opinião estranha, não está de acordo com a paixão de Cristo”.

Ibid., 2-3.

 

O apologeista americano Erick Ybarra cita esse ponto crucial que serviu como virada de chave para se chegar ao papado: Veja como a unidade do Bispo significa a unidade de Deus e a mesma unidade que, quando violada, criava um cisma. Mas o que se deve fazer quando é um Bispo que causa o cisma? Devemos segui-lo?” (YBARRA, Erick. The Roots of the Papacy: The Patristic Logic, p. 9). A conclusão adequada quando tal situação surgia seria encontrar um ponto de unidade no episcopado, o qual veio a ser aquele a quem as palavras da promessa do Senhor para sua Igreja foram originalmente dirigidas: PEDRO e, por consequência, sua CÁTEDRA.

 

É também para este nobilíssimo objetivo que aponta a presente Encíclica que, na sua índole essencialmente pastoral, quer ser um contributo e apoio para o esforço de todos os que trabalham pela causa da unidade. Este é um preciso compromisso do Bispo de Roma enquanto sucessor do apóstolo Pedro. Desempenho-o com a profunda convicção de obedecer ao Senhor e com a plena consciência da minha fragilidade humana. De facto, quando o próprio Cristo confiou a Pedro esta missão especial na Igreja e lhe recomendou de confirmar os irmãos, deu-lhe ao mesmo tempo a conhecer a sua debilidade humana e uma particular necessidade de conversão: « E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos » (Lc 22, 32). É na própria debilidade humana de Pedro que se manifesta plenamente como o Papa, para cumprir este especial ministério na Igreja, depende totalmente da graça e da oração do Senhor: « Eu roguei por ti, a fim de que a tua fé não desfaleça » (Lc 22, 32) […] a missão do Bispo de Roma visa particularmente lembrar a exigência da plena comunhão dos discípulos de Cristo.

Encíclica Ut Unum Sint

 

Como vimos acima, através das palavras e dos concílios, esse pensamento se tornou cada vez mais difundido e um meio de solucão das controvérsias, e, como S. Jerônimo iria mais tarde relatar, estar com Pedro era estar com a Igreja, bem como também S. Optato de Mileve, e outros:

 

São Jerônimo – Minhas palavras são ao sucessor do pescador, ao discípulo da Cruz. Não sigo nenhum líder, senão Cristo, e então estou em comunhão com vossa bem-aventurança (o Papa), isto é, com a Cátedra de Pedro. Nesta rocha, eu sei que a Igreja é construída. Todo aquele que comer o Cordeiro (Eucaristia) fora dessa casa é profano. (Epístola XV, Ao Papa Dâmaso I)

 

Santo Optato de Mileve – Ele prova pela Cathedra Petri [Cátedra de Pedro] que a Cátedra, a qual é a primeira investidura da Igreja, pertence aos católicos, não aos donatistas. Assim provamos que a Igreja Católica é a Igreja que está espalhada por todo o mundo. (Contra os Donatistas 2:2, ano 360-385)

 

Dessa forma, se solidificou o pensamento de que o mesmo Espírito Santo que inspirou a resposta correta de Pedro em detrimento das de seus irmãos, os demais apóstolos, quanto à identidade de Cristo no capítulo 16 do evangelho de Mateus, continuaria inspirando e [con]firmando a Igreja através do carisma de liderança e solidez conferido a Pedro pelas palavras de Jesus. Isso pode ser verificado em escritos patrísticos e em concílios no decorrer da história, como por exemplo Éfeso em 431 d.C. [anterirmente citado], no qual o Pedro na pessoa do Papa é chamado de o Fundamento [θεμέλιος] da Igreja Católica. Sendo esta uma clara alusão à firmeza inabalável atribuída à Igreja pelo apóstolo Paulo em 1 Tm 3,15, e que teria, na liderança de Pedro, sua confirmação infalível:

 

Não há dúvida, e de fato é sabido em todas as épocas, que o santo e abençoado Pedro, príncipe (ἔξαρχος) e cabeça dos Apóstolos, pilar da fé e fundamento (θεμέλιος) da Igreja Católica recebeu as chaves do reino de nosso Senhor Jesus Cristo.

Concílio de Éfeso, Sessão III, ano 431

Pois o Espírito Santo não foi prometido aos sucessores de S. Pedro para que estes, sob a revelação do mesmo, pregassem uma nova doutrina, mas para que, com a sua assistência, conservassem santamente e expusessem fielmente o Depósito da Fé, ou seja, a Revelação herdada dos ApóstolosE esta doutrina dos Apóstolos abraçaram-na todos os veneráveis Santos Padres, veneraram-na e seguiram-na todos os santos doutores ortodoxos, firmemente convencidos de que esta Cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos: “Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” [lat.: Neque enim Petri successoribus Spiritus Sanctus promissus est, ut eo revelante novam doctrinam patefacerent, sed ut eo assistente traditam per Apostolos revelationem seu fidei depositum sancte custodirent et fideliter exponerent. Quorum quidem apostolicam doctrinam omnes venerabiles Patres amplexi et sancti Doctores orthodoxi venerati atque secuti sunt; plenissime scientes, hanc sancti Petri Sedem ab omni semper errore illibatam permanere, secundum Domini Salvatoris nostri divinam pollicitationem discipulorum suorum principi factam: Ego rogavi pro te, ut non deficiat fides tua, et tu aliquando conversus confirma fratres tuos].

CONSTITUTIO DOGMATICA Pastor Aeternus

 

A Interpretação dos Padres das palavras “sobre esta pedra, etc.” é quádrupla, mas todas as quatro interpretações não são mais que quatro aspectos de uma mesma verdade, e todas são necessárias para completar seu sentido pleno. Todas elas, implícita ou explicitamente, contêm a perpétua estabilidade da Fé de Pedro […] Nessas duas promessas (Lc 22: 32; Mt 16: 18), uma assistência divina é prometida a Pedro e aos seus sucessores, e essa assistência divina é prometida para garantir a estabilidade e a indefectibilidade da Fé no Supremo Doutor e Cabeça da da Igreja, para o bem geral da própria Igreja […] Os pontífices são testemunhas, professores e juízes da revelação já dada à Igreja; e guardando, expondo e defendendo essa revelação, seu testemunho, ensino e julgamento são preservados do erro por assistência divina.

 

– Cardeal Edward Manning, The Vatican Council and its definitions, p. 84-85

 

A HUMILDADE DO PRIMEIRO

Albrecht Dürer [Domínio Público]

É importante dizer, evidentemente, que o Papado é um dogma que foi instituído para servir à Igreja. É um instrumento de preservação da ortodoxia e da unidade da fé. Ele não pode jamais ser desvirtuado de modo a se tornar um instrumento de opressão e injustiça. Por quê?  Porque o Filho de Deus se humihou... Preste atenção: O Senhor dos senhores aceitou tornar-se servo. O Maior dos maiores e incomparável se fez o menor de todos. E por quê? Leia as passagens e compreenda: “Naquele momento os discípulos chegaram a Jesus e perguntaram: ‘Quem é o maior no Reino dos céus?’ Chamando uma criança, colocou-a no meio deles,e disse: ‘Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus. Portanto, quem se faz humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos céus’ [Mateus 18,1-5]. Veja que incrível! Agora imagine tal governo que Deus deseja estabelecer na terra, um completamente diferente do que experienciamos. Jesus os chamou e disse: 

 
“Vocês sabem que aqueles que são considerados governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo; e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo de todos. Pois nem mesmo o Filho do homem veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”.
Marcos 10, 42- 45
Repito:
“Devem se tornar humildes como esta criança”

O que Jesus quis dizer com a palavra tornar é algo referente a um processo gradual no mundo e tal progresso é o crescimento. O tornar-se grande é o que se espera, porém Jesus descreveu o sentido inverso para a grandeza. No Reino de Deus progredir não é crescer, como neste mundo. A não ser em amor. Mas no reino, progredir é diminuir. Esta é a palavra e a conduta daquele Amigo do Noivo: “que ele cresça, e eu diminua” [Jo 3, 30].

 

Foto de The Royal Danish Library na Unsplash

Picture of Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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