Não é preciso ter ONISCIÊNCIA.
Você nunca se perguntou como os anjos e demônios atuam no nosso mundo? Como ajudam tantos no primeiro caso, ou como prejudicam no segundo? Seria o diabo onisciente? Suas ações nesse mundo dependem de ele possuir tal atributo da Divindade? Como ele pode tentar tantas pessoas não sendo onisciente? E quanto aos anjos? Sua assistência depende dessa característica? Claro que não. Sobre nenhum desses seres ouvimos a objeção de que Somente Deus é onisciente, e que, portanto, eles não deveriam atuar como fazem, mas sobre os santos sim. Por que será? Talvez porque temos dificuldade para aceitar o fato de que as coisas na eternidade possam funcionar de um jeito diferente de como geralmente funcionam em nosso mundo. Obviamente, o homem por si só e em qualquer condição não possui atributos divinos, por isso não deveria conhecer nada para além daquilo que a força da sua condição permite.
No entanto, temos dois pontos a considerar nesse caso:
1) A Eternidade muda as coisas: O tempo e o espaço só são grandezas que limitam nossa existência porque estamos restritos a elas nesse mundo. Nenhum santo no céu, anjo ou demônio se encontra nessa situação, pois estão na eternidade. Eles não precisam ser oniscientes para romper com o espaço e o tempo, já que essas coisas já foram superadas. De fato, vemos Moisés e Elias aparecendo a Jesus no Monte Tabor e desaparecer diante dos olhos dos discípulos.
2) A Theosis torna os homens participantes da Divindade: há relatos bíblicos de homens tendo visões, fazendo profecias e prescrevendo fatos passados, presentes e futuros, ou coisas que estão fora do seu conhecimento e capacidade pelo poder de Deus, ainda que tais atributos sejam exclusivos dEle. A explicação para isso é que eles são assim permitidos por Deus, que lhes concede uma participação em seus atributos. Por exemplo, Moisés escreveu o livro de Gênesis sobre coisas que ele não poderia ter visto, já que não era nascido na época em que ocorreram; e João escreveu o livro de Apocalipse sobre coisas que lhe eram impossíveis de ter acesso, pois tratavam-se dos tempos futuros e do fim do mundo. E mesmo homens fiéis enquanto ainda vivos tiveram ciência de acontecimentos em lugares onde não se encontravam, o que vemos registrado na Escritura. Isso aconteceu com Moisés, que pela graça de Deus soube enquanto estava no Monte com Deus que Israel tinha caído em idolatria; e com Eliseu, que diz a Geazi sobre a simonia que havia praticado às ocultas na colina, pedindo a Naamã dinheiro: “Não estava, porventura, presente o meu espírito, quando um homem saltou de seu carro ao teu encontro? É este o momento de aceitar dinheiro, adquirir vestes, oliveiras e vinhas, ovelhas e bois, servos e servas?” (2 Reis 5) Nenhum deles é onisciente, mas Deus lhes concedeu tais dons para sua glória.
Esse é, inclusive, o argumento de São Jerônimo acerca dos santos no céu!
Seríamos nós, portanto, culpados de sacrilégio quando entramos nas basílicas dos Apóstolos? Seria o imperador Constâncio I culpado de sacrilégio quando transferiu as sagradas relíquias de André, Lucas e Timóteo para Constantinopla? Na presença destas os demônios se perturbam e os diabos que habitam em Vigilâncio confessam que sentem a influência dos santos. E nos presentes dias, seria o imperador Arcádio culpado de sacrilégio por, depois de tanto tempo, ter transportado os ossos do bem-aventurado Samuel da Judéia para a Trácia? Deveríamos considerar todos os bispos não apenas sacrílegos mas tolos porque eles carregam “coisas mais inúteis” – poeiras e cinzas – envoltas em sedas douradas? Seriam tolos os fiéis de todas as igrejas porque foram se encontrar com as sagradas relíquias e deram boas vindas a elas com tanta alegria como se estivessem recebendo um profeta vivo em seu meio, de forma que um grande número de pessoas as seguiram da Palestina até a Calcedônia em uma só voz recitando as orações de Cristo? Seriam loucos se adorassem a Samuel e não a Cristo, já que Samuel era um mero levita e profeta. Você demonstra desconfiança porque pensa apenas em corpos sem vidas e em razão disso blasfema. Leia o Evangelho (Mt 22,32): “O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó: Ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos”. Ora, se então eles estão vivos, não são “mantidos em um confinamento honorável”, para usarmos aqui as suas palavras.
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Ora, se o Cordeiro está presente em todo lugar, o mesmo devemos acreditar acerca destes que estão com o Cordeiro. E embora o diabo e os demônios vagueiem por todo o mundo e com tamanha velocidade eles mesmos se movem por todo lugar, estariam os mártires, após derramarem o seu sangue, sendo mantidos confinados em algum lugar de onde não poderiam escapar? Você afirma, em seu panfleto, que enquanto estamos vivos podemos orar uns pelos outros, mas que, quando morremos, a oração de uma pessoa não poderá favorecer outra qualquer; e isto em razão dos mártires, embora eles possam pedir pela vingança de seu sangue, o que, porém, nunca lhes será atendido (Apocalipse 6,10). Se os Apóstolos e mártires, enquanto estão no corpo, podem orar pelos outros, ainda quando se encontram inquietos por si mesmos, quanto mais deverão fazer após terem recebido suas coroas, vencido e triunfado? Um simples homem, Moisés, obteve o perdão de Deus para seiscentos mil homens armados; e Estêvão, seguidor de seu Senhor e o primeiro mártir cristão, implorou o perdão para seus perseguidores; e quando eles entraram na Vida com Cristo, acabaram tendo menos poder do que antes? O Apóstolo Paulo diz que 272 almas foram entregues a ele no navio (Atos 27,37); e após sua dissolução (=morte), quando ele começou a estar com Cristo, deveria ele calar a sua boca e ser incapaz de dizer uma só palavra em favor daqueles que em todo o mundo creram no seu Evangelho? Para Vigilâncio, seria um cachorro vivo melhor que Paulo, o leão morto? Estaria eu certo em seguir o Eclesiastes se admitisse que Paulo está morto em espírito… Mas a verdade é que os santos não são chamados de “mortos”; acerca deles dizemos que estão dormindo. Por isso, diz-se de Lázaro – que estava para ser ressuscitado – que tinha dormido (João 11,11). E o Apóstolo proíbe os tessalonicenses de se preocuparem com aqueles que dormiram.
São Jerônimo, Contra Vigilâncio, 5 e 6, séc. IV d.C. Tradução: Carlos Martins Nabeto
Só Deus é onisciente, certamente, mas se Ele concedeu a homens uma participação na sua onisciência quando ainda estavam na carne, qual seria a dificuldade em fazer o mesmo agora que esses mesmos homens estão plenamente aperfeiçoados no ceu e livres por completo da mácula do pecado? Na verdade, é isso que vemos na Escritura, que não nos apresenta um céu dorminhoco, mas vívido, no qual Deus comunga com suas criaturas, não somente espíritos de santos, mas de anjos e seres luminosos. A diferença de Deus conceder tais dons é que essa participação é plena e ativa após a morte de seus fiéis, porque eles se encontram constantemente diante de Deus sem as limitações que possuíam antes, não estando sujeitos às influências do pecado e gozando de uma relação mais abundante com o seu Criador.
Foto de Tamara Govedarovic na Unsplash




