Alguns sustentam o argumento de que pelo fato de o uso de velas ser comum no antigo culto pagão, os cristãos estariam aderindo a uma prática corrupta por utilizar-se delas. Contudo, desde muito cedo, estes sempre valorizaram o simbolismo das velas em suas próprias comunidades, além de ser a própria luz irradiada dela um elemento teológico presente muito cedo, além de prático e significativo à doutrina, posto ser indispensável ao exercício do cuto em uma época em que não havia eletricidade. Bom, o fato de elas serem usadas também no paganismo só aponta para a natureza intrínseca das velas, como objetos místicos e de forte significado para nós, seres humanos, exercendo um fascínio único sobre cada cultura. Elas – as velas – estão presentes em praticamente todas as religiões por alguma razão!
A Vela e o Espírito
A vela constitui uma expressão vívida de algo misterioso, e por conta disso logo foi vista pelos cristãos como fazendo referência à chama da divindade dentro do homem>> imago dei (imagem de Deus). É a alma da criatura que evoca a imagem do Criador em busca da eternidade. A vela representa a Presença divina. E essa presença está conosco. Ora, Deus é luz (2 Sm 22: 29), seu Filho é a luz do mundo (João 8,12), bem como sua Palavra e Mandamento também são luz para nós (Sl 119: 105), e toda alma que segue essa luz também é iluminada por ela, sendo essa a razão de Jesus ter chamado os cristãos de luz do mundo também (Mt 5: 14). No Cristianismo, quando há o rito do batismo, uma vela é acesa e colocada na mão do catecúmeno ou do padrinho que o representa. Algumas pessoas acendem uma vela por almas de entes queridos falecidos e outras as acendem diante de uma estátua ou ícone de algum santo como um símbolo de devoção e como um pedido de intercessão. A vela assim possui também a natureza de uma prece não verbal. Durante a Vigília Pascal no Sábado Santo, acende-se o Círio Pascal [1], representando Cristo, e a Igreja assim o honra nessa crimônia, como se caminhasse com Ele para fora da sepultura com as almas que Ele leva da mansão dos mortos em sua subida para seu Reino. Os cristãos assim se juntam num único espírito para louvar ao Deus ressuscitado. E embora muitos ataquem a prática sob a alegação de ser ela uma ação supersticiosa, os cristãos herdaram essa devoção dos judeus, que é a religião de onde se origina o Cristianismo. Eles sempre fizeram uso abundante das velas, sendo isso documentado inclusive nas Escrituras. Vejam o que diz a página judaica Chabad sobre elas:
Esta tradição não é exclusividade dos judeus hassídicos, sendo um hábito do Yahzeit comum nas vésperas do Yon Kipur ou quando um ente querido falece: Por que no judaísmo costuma-se acender uma vela por um ente querido falecido? Isto é relevante para a alma, ou é somente um ato simbólico? O rei Salomão comparou a alma do homem a uma vela, como consta em seu livro (Provérbios cap. 20): “A vela de D’us é a alma do homem”. O motivo para isto é explicado nos livros chassídicos, pois da mesma forma que a chama de uma vela está sempre subindo, e querendo se elevar, voltar a sua origem e desprender-se do pavio que a mantém acesa, a alma judaica, que é uma partícula Divina (vide Tanya cap. 2), deseja constantemente voltar a seu Criador, e se desvincular de seu corpo que a segura neste mundo inferior. Este também é o motivo do costume judaico de se balançar nas orações para despertar a intenção, pois imitamos involuntariamente a chama da vela nesta sua ascensão. Um dos objetos importantes que havia no Santuário do deserto e, posteriormente, no Templo Sagrado de Jerusalém, era a Menorá. Esta consistia em um candelabro de sete braços que deveria ser acesa diariamente antes do pôr-do-sol. Durante a noite brilhavam todas as sete velas. Estas apagavam-se ao amanhecer, e apenas uma vela permanecia acesa, que milagrosamente ardia o dia todo.
Salomão diz: “O espírito do homem é uma lâmpada (candeia) do Senhor”. A palavra “candeia” vem de candela, e em inglês é assim que a palavra vela é chamada: candle. Ora, tanto os cristãos como os judeus ligam a vela ao espírito humano (bem como também à instrução que provém do alto e à própria divindade fonte), isso porque a alma possui a chama da divindade em si, como lemos acima: “partícula divina”. Jesus de fato chegou a mencionar que João Batista era uma candeia que ardia e iluminava, de modo que muitos vieram se alegrar com sua luz (João 5: 35). Tanto em Êxodo 25:37, em que Deus diz a Moisés para acender um candelabro (candeeiro) de ouro (que é um castiçal com vários braços, cada um contendo uma vela) no Tabernáculo, como em Levítico 24:3-4, em que ordena que as velas fossem acesas diante da Divindade continuamente, a Bíblia está repleta de referências às velas como parte do culto de adoração.
Tu, pois, ordenarás aos filhos de Israel que te tragam azeite puro de oliveiras, batido, para o candeeiro, para fazer arder as lâmpadas continuamente.
Êxodo 27:20
O Novo Testamento não carece delas (Apocalipse 1):
Voltei-me para saber que voz falava comigo. Tendo-me voltado, vi sete candelabros de ouro. E, no meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do Homem, vestindo longa túnica até os pés, cingido o peito por um cinto de ouro. Tinha ele cabeça e cabelos brancos como lã cor de neve. Seus olhos eram como chamas de fogo. Seus pés se pareciam ao bronze fino incandescido na fornalha. Sua voz era como o ruído de muitas águas. Segurava na mão direita sete estrelas. De sua boca saía uma espada afiada, de dois gumes. O seu rosto se assemelhava ao sol, quando brilha com toda a força. Ao vê-lo, caí como morto aos seus pés. Ele, porém, pôs sobre mim sua mão direita e disse: “Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, e o que vive. Pois estive morto, e eis-me de novo vivo pelos séculos dos séculos; tenho as chaves da morte e da região dos mortos. Escreve, pois, o que viste, tanto as coisas atuais como as futuras. Eis o simbolismo das sete estrelas que viste na minha mão direita e dos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros, as sete igrejas”.
Na página, o autor cita Rabenu Bachyê, (1263-1340), um comentarista da Torá, que diz: “Por isso o Rei Salomão, de bendita memória, comparou a alma à luz da vela, dizendo: ‘a vela de D’us é a alma do homem’. Este também é o motivo pelo qual na hora em que uma pessoa se encontra num estado terminal, deve-se acender uma vela para acompanhar a saída da alma”.
A Vela como Oração Não Verbal
De fato, os judeus consideram tanto o uso de velas, que eles possuem uma tradição de acender uma vela no aniversário da morte de um ente querido, e essa prática tem um significado cerimonial de prece, como um auxílio para a alma: Trata-se da Candeia Yahrzeit, que para muitos ajuda a “iluminar o caminho da alma do falecido, proporcionando conforto espiritual”. Leia mais sobre isso na Enciclopédia Judaica.
Ainda no site Chabad, lemos que:
Por este motivo a Menorá era acesa no Templo Sagrado, pelas almas do povo judeu que faleceram […] Entendemos desta explanação que acender uma vela pelo falecido nos dias citados, além de causar um grande prazer para a alma, ajuda em seu julgamento e ascensão espiritual. Por este motivo também, além dos 7 dias de Shivá, costuma-se manter uma vela acesa na casa do falecido, ou na sinagoga, durante os 11 meses da recitação do Kadish (oração pelos morto), ou até o primeiro Yahrzeit, acompanhando a elevação da alma deste período. Acendemos também uma vela de 24 horas na véspera de Yom Kipur pelo falecido, para auxiliar em seu julgamento, já que também as almas são julgadas neste dia sagrado.
Os judeus também têm a prática de acender uma vela toda sexta-feira, como forma de preparação para o Shabat (Sábado). Os cristãos mantêm muitas similaridades com essas tradições, sobretudo no valor litúrgico dado às velas, embora não tantas se considerarmos vários aspectos e crenças, mas é evidente que a prática não tem origem pagã.
Notas
[1] ‘Círio vem do latim cerĕu-, «de cera». Os seus significados são: «vela grande de cera’
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