A doutrina do purgatório se faz presente na Igreja cristã primitiva como uma herança da escatologia judaica, fonte de onde o próprio Cristianismo surgiu, conforme você pode constatar aqui. Os cristãos não abandonaram o purgatório porque ele confirma a doutrina da imortalidade da alma e da vida eterna, além do fato de que eles não entendiam seu movimento como um rompimento com a fé antiga, mas como um cumprimento/aperfeiçoamento dela, que traria plenitude à revelação anterior dada aos profetas e grandes homens de Deus do Velho Testamento. Veja a presença da doutrina nos primórdios da Igreja:
OS ATOS DE PAULO E TECLA
“E depois da exposição, Tryfaena novamente a recebeu [Tecla]. Pois sua filha Falconilla havia morrido e disse a ela em sonho: ‘Mãe, você deve receber esta estrangeira Tecla em meu lugar, de modo que ela possa orar por mim e eu seja transferida para o lugar dos justos’ ”
Atos de Paulo e Tecla, ano 160 d.C.
ABÉRCIO
“Cidadão de uma cidade proeminente, ergui isto enquanto vivia, para que pudesse ter um local de descanso para o meu corpo. Abércio é o meu nome, discípulo do casto Pastor que apascenta suas ovelhas nas montanhas e nos campos, que tem grandes olhos a perscrutar todas as coisas, o qual me ensinou os fiéis escritos da vida. De pé, eu, Abércio, mandei que fosse escrito isto: Verdadeiramente, eu estava no meu septuagésimo segundo ano. Que todo aquele que esteja de acordo com isso e que o entenda ore por Abércio”.
Epitáfio de Abércio, ano 190 d.C.
O MARTÍRIO DE PERPÉTUA E FELICITAS
“Naquela mesma noite, isso me foi revelado em uma visão: eu [Perpétua] vi Dinócrates saindo de um lugar sombrio, onde também havia vários outros, e ele estava ressecado e com muita sede, com um semblante imundo e cor pálida, e a ferida em seu rosto que ele tinha quando morreu. Este Dinócrates tinha sido meu irmão segundo a carne, de sete anos de idade, o qual morreu miseravelmente com uma doença… Por ele eu havia feito minha oração, e entre ele e eu havia um grande abismo, de modo que nenhum de nós poderia se aproximar do outro… e eu sabia que meu irmão estava sofrendo. Mas confiei que minha oração traria alívio ao seu sofrimento… Orei por meu irmão dia e noite, gemendo e chorando para que ele me fosse concedido. Então, no dia em que permanecíamos acorrentadas, isso me foi revelado: vi que o lugar que antes eu tinha observado ser uma escuridão, agora estava claro; e Dinócrates, com um corpo limpo e bem vestido, estava recebendo refrigério… E ele saiu da água para brincar alegremente, tal como as crianças, e então eu acordei. Dessa forma, compreendi que ele havia sido transportado do lugar de punição”.
O Martírio de Perpétua e Felicity 2:3–4, ano 202 d.C.
ORÍGENES
Se um homem sai desta vida com faltas mais leves, ele está condenado ao fogo que queima os materiais mais leves e prepara a alma para o reino de Deus, onde nada contaminado pode entrar. Pois se sobre o fundamento de Cristo construístes não só ouro, prata e pedras preciosas (1 Cor., 3); mas também madeira, feno e restolho, o que você espera quando a alma for separada do corpo? Você entraria no céu com sua madeira, feno e restolho e assim contaminaria o reino de Deus? Ou por causa desses obstáculos você permaneceria sem galardão e não receberia nenhuma recompensa por seu ouro, prata e pedras preciosas? Tampouco seraia isso justo. Resta então concluirmos que você será entregue ao fogo que queimará os materiais leves; pois nosso Deus, para aqueles que são capazes de compreender as coisas celestiais, é chamado de fogo purificador [Hebreus 12: 29]. Mas este fogo não consome a criatura, mas o que a própria criatura construiu, isto é, madeira, feno e restolho. É manifesto que o fogo destrói a lenha das nossas transgressões e então nos devolve a recompensa das nossas grandes obras.
Patres Groeci. XIII, col. 445, 448, ano 185-232 d.C.
Assim como João permaneceu perto do Jordão entre aqueles que vieram para ser batizados, rejeitando alguns, aos chamava de “raça de víboras”, mas aceitando aqueles que confessavam seus vícios e pecados… assim também o Senhor Jesus Cristo estará em um rio de fogo ao lado de uma espada flamejante e batizará todos aqueles que devem entrar no Paraíso depois de morrerem, mas que precisam de purgação […] Contudo, aqueles que não levam a marca do primeiro Batismo não serão batizados no banho de fogo. É preciso primeiro ser batizado na água e no Espírito, para que, quando o rio de fogo for alcançado, as marcas dos banhos da água e do Espírito permaneçam como sinais de que alguém é digno de receber o Batismo de fogo em Jesus Cristo.
Comentário sobre Lucas, 24ª Homilia, antes de 253 d.C.
TERTULIANO DE CARTAGO
“Oferecemos sacrifícios pelos mortos em seus aniversários de nascimento
[a data da morte—nascimento para a vida eterna]”.
De Corona 3:3, ano 211 d. C.
“Uma mulher, após a morte de seu marido reza por sua alma e pede que, enquanto espera, ele encontre descanso; e que possa participar da primeira ressurreição. E a cada ano, no aniversário de sua morte, ela oferece o sacrifício [ uma missa é rezada por sua alma]”.
Monogamia 10:1–2, ano 216 d.C.
Essa alegoria do Senhor [Mat. 5:25-26] é extremamente clara e simples em seu significado… [Tome cuidado para que não seja] um transgressor da sua Aliança, diante de Deus, o juiz… e para que este juiz não te entregue ao anjo que irá executar a sentença, e ele o entregue à prisão do inferno, da qual não te despedirá até que a menor de suas delinquências seja paga no período anterior à ressurreição. Que sentido pode ser mais adequado do que este? Que interpretação mais verdadeira?
A Alma 35, ano 210 d.C.
SÃO CIPRIANO DE CARTAGO
Uma coisa é defender o perdão, outra coisa é alcançar a glória; uma coisa é, quando lançado na prisão, não sair dali antes de pagar o último centavo; outra coisa é receber imediatamente o salário da fé e da coragem. Uma coisa é ser torturado por um longo sofrimento em razão dos pecados, ser limpo e purificado pelo fogo; outra é ter purificados todos os pecados pelo sofrimento. Em suma, uma coisa é ficar em suspense até a sentença de Deus no Dia do julgamento; outro é ser imediatamente coroado pelo Senhor.
Cartas 51[55]:20, ano 253 d.C.
Se morrerem antes de serem absolvidos, serão purificados pelo fogo durante certo tempo.
Carta 55, PL 4, 358, ano 253-260 d.C.
LACTÂNIO
Mas, quando julgar os justos, também OS PROVARÁ COM FOGO. Então aqueles cujos pecados excederem em peso ou em número serão queimados pelo fogo e incendiados. Mas AQUELES que foram imbuídos de plena justiça e maturidade de virtude não verão TAL FOGO; pois eles têm algo de Deus em si mesmos que repele e rejeita a violência da chama. Tão grande é a força da inocência que a chama se afasta dela sem causar dano; ela recebeu esse poder de Deus, de maneira que queima os ímpios e se encontra sob o comando dos justos.
– Lactânio, Institutas Divinas 7:21, ano 307 d.C.
SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
“Em seguida, mencionamos também aqueles que já adormeceram: primeiro os patriarcas, profetas, apóstolos e mártires, para que por meio de suas orações e súplicas, Deus receba a nossa petição; em seguida, mencionamos também os santos padres e bispos que adormeceram e, para simplificar, todos aqueles dentre nós que já dormiram, pois acreditamos que será de grande benefício para as almas daqueles por quem a petição é feita, enquanto este santo e solene sacrifício [a missa] é apresentado”.
Leituras Catequéticas 23:5:9, ano 350 d.C.
SÃO GREGÓRIO DE NYSSA
“Se um homem distinguir em si aquilo que é peculiarmente humano daquilo que é irracional, e se ele estiver atento a uma vida de maior civilidade para consigo mesmo, nesta vida presente ele se purificará de qualquer mal contraído, vencendo o irracional pela razão. Se ele se inclinou à pressão irracional das paixões, fazendo uso, pelas paixões, da coberta que coopera com as coisas irracionais, ele pode posteriormente, de uma forma bem diferente, ficar muito interessado naquilo que é superior, quando, após deixar seu corpo, ele obtém conhecimento da diferença entre a virtude e o vício e descobre que não é capaz de participar da divindade até que tenha sido expurgado do contágio imundo em sua alma por meio do fogo purificador”.
Sermão sobre os Mortos, ano 382 d.C.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
“Vamos ajudá-los e celebrá-los (sobre os fiéis defuntos). Se os filhos de Jó foram purificados pelo sacrifício de seu pai [Jó 1:5], por que duvidaríamos de que nossas ofertas pelos mortos lhes trouxessem algum consolo? Não hesitemos, pois, em ajudar aqueles que já morreram e em oferecer nossas orações por eles”.
Homilias sobre Primeiro Coríntios 41:5, ano 392 d.C.
“Chorem por aqueles que morrem em suas riquezas e que com todas as suas riquezas não prepararam um consolo para suas próprias almas, que tiveram o poder de lavar seus pecados e não quiseram fazê-lo. Vamos chorar por eles, vamos ajudá-los conforme a nossa capacidade, vamos pensar em alguma ajuda para eles, por menor que seja, mas vamos ajudá-los de alguma forma. Mas como e de que maneira faremos isso? Rezando por eles e pedindo a outros que rezem por eles, constantemente dando esmolas aos pobres em seu nome. Não foi em vão que os apóstolos decretaram que, nos maravilhosos mistérios, deveria ser feita lembrança daqueles que partiram. Eles sabiam que havia aqui muito proveito para eles, muitos benefícios. Quando todo o povo se levanta com as mãos erguidas, uma assembléia sacerdotal, e aquela impressionante Vítima sacrificial é apresentada [a Eucaristia], como não teríamos sucesso, no momento em que invocamos a Deus, em defesa deles? Mas isso é realizado por aqueles que partiram na fé, enquanto que até mesmo os catecúmenos não são considerados dignos desse consolo, mas são privados de todos os meios de assistência, com exceção de um único. E qual seria? É possível dar esmolas aos pobres em seu nome”.
Homilias sobre Filipenses 3:9–10, ano 402 d.C.
SANTO AMBRÓSIO DE MILÃO
Quem é que batiza nesse fogo? Não é um presbítero, não é um bispo, não é João, que diz: “Eu vos batizo para a penitência” (Mt 3, 11); não é um anjo, não é um arcanjo, não são as dominações, não são as potestades, mas aquele sobre o qual João diz: “Quem vem após mim é mais forte que eu. Não sou digno de carregar as suas sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Ele tem a pá na sua mão e limpará a sua eira. Ajuntará o trigo no seu celeiro, mas queimará a palha com o fogo inextinguível” (Mt 3, 2,12). O Senhor não testifica o dito sobre esse batismo, que se dá pelos sacerdotes da Igreja (Mt 13, 49-50). Depois da consumação do século, certamente se dará esse batismo pelos anjos que serão enviados, que separarão os bons e os maus: quando a iniquidade será queimada pelo caminho do fogo, para os justos refulgirem no reino de Deus como o próprio sol no reino de seu Pai. E se alguém for santo como Pedro, como João, é batizado nesse fogo. Portanto, virá o grande Batista – assim o chamo, como Gabriel chamou dizendo: “Esse será grande” (Lc 1, 15) –, verá muitos em pé diante do vestíbulo do paraíso, moverá a espada versátil, dirá aos que estão à direita, que não têm pecados graves: Entrai, vós que ousais, que não temeis o fogo. Pois eu vos predissera: “Eis que venho como fogo” (Is 66,15); e dissera através de Ezequiel: “Eis que entrarei em Jerusalém e soprarei em vós, no fogo da minha ira, para que escorregueis do chumbo e do ferro” (Ez 22, 20).
Santo Ambrósio de Milão, In psalmum CXVIII expositio, Sermo III, 15 (PL 15, 1227 BCD), séc. IV d.C.
Dá descanso perfeito ao teu servo Teodósio, aquele descanso que preparaste para os teus santos… Eu o amei e, portanto, o seguirei até a terra dos viventes; também não o abandonarei até que, com lágrimas e orações, eu possa conduzi-lo a secar seus méritos com o fim de convocá-lo ao monte santo do Senhor.
Sermão fúnebre de Teodósio 36-37, ano395 d.C.
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA
“Mas pelas orações da santa Igreja, pelo sacrifício salvífico [a Missa], e pelas esmolas que são dadas em favor de seus espíritos, não há dúvida de que os mortos são ajudados, para que o Senhor possa lidar com eles com mais misericórdia do que merecem os seus pecados. Toda a Igreja observa esta prática que foi transmitida pelos Padres: de rezar por aqueles que morreram na comunhão do Corpo e do Sangue de Cristo, quando são comemorados em seu próprio lugar no sacrifício [missa]; e o sacrifício é oferecido também em memória deles, em seu nome. Se, portanto, as obras de misericórdia são celebradas por aqueles que estão sendo lembrados, quem hesitaria em recomendá-las, em nome de quem as orações a Deus não são feitas em vão? Não há dúvida de que tais orações são benéficas aos mortos; todavia, àqueles que viveram antes da morte de tal maneira que tornaram possível que essas coisas lhes fossem úteis após a morte”.
Sermões 172:2
“Punições temporais são sofridas por alguns apenas nesta vida, por alguns após a morte, por alguns aqui e no futuro, mas todos eles antes desse último e mais estrito julgamento. Contudo, nem todos os que sofrem punições temporais após a morte terão punições eternas, as quais se seguirão a esse julgamento”.
A Cidade de Deus 21:13, ano 419 d.C.
“Que haja algum fogo após esta vida, não é algo incrível, e é possível averiguar e descobrir ou mesmo deixar em mistério se alguns dos fiéis serão salvos mais lentamente e outros mais rapidamente, em maior ou menor grau, conforme amaram as coisas boas que perecem, isso por meio de um certo fogo purgatorial”.
Enchridion 18:69, ano 421 d.C.
“O tempo que se interpõe entre a morte de um homem e a ressurreição final mantém as almas em recantos ocultos, conforme cada uma mereça repouso ou sofrimento, tendo em vista o que mereceu quando vivia na carne. Também não se pode negar que as almas dos mortos encontram alívio através da piedade de seus amigos e parentes que ainda estão vivos, quando o Sacrifício do Mediador [a Missa] é oferecido por eles, ou quando são dadas esmolas na Igreja. Mas essas coisas são proveitosas para aqueles que, quando estavam vivos, mereceram que depois pudessem ser ajudados por tais coisas. Há uma certa maneira de viver, nem tão boa de modo que não haja necessidade desses auxílios após a morte, nem tão perversa de modo que não sejam úteis eles após a morte”.
Enchridion 109-110
“Existe uma disciplina eclesiástica, como sabem os fiéis, quando os nomes dos mártires são lidos em voz alta naquele lugar do altar de Deus, onde não se faz oração por eles. A oração, no entanto, é oferecida por outros mortos que são lembrados. É errado orar por um mártir, a cujas orações nós mesmos devemos ser recomendados”.
Sermões 159:1, ano 411 d.C.
Foto de Tolis Dianellos na Unsplash




