INTRODUÇÃO
Eu hesitei bastante em escrever esse texto. Não somente por ter dúvidas quanto à minha capacidade de cumprir a missão a que me propus e apresentar uma reflexão razoável e convincente acerca da polêmica do Papa Francisco envolvendo Amoris Laetitia, mas também porque esse tema me toca sensivelmente em minha experiência pessoal. Ainda assim, pondero também se serei capaz de apresentar uma conclusão otimista para a posição do Papa, que eu compreendo como devendo ser interpretada de determinada maneira para se evitar problemas, mas que não tenho certeza de quais efeitos trarão à Igreja de Cristo a longo prazo.
AMORIS LAETITIA ENCORAJA O DIVÓRCIO?
A exortação apostólica do Papa Francisco, Amoris Laetitia (em latim, “A Alegria do Amor”) goza de bastante atenção dos críticos especialmente em razão do seu capítulo 8, e da “nota de rodapé nº 351”, que diz o seguinte:
Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, «aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de 2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que a Eucaristia «não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos» [ Ibid., 47: o. c., 1039].
A polêmica inteira gira em torno do fato de tal nota tratar daqueles que vivem em novo casamento, tendo se divorciado. E o Papa afirma que tais pessoas têm a possibilidade [em casos específicos] não somente receber a Eucaristia, mas também serem ajudadas por ela. Muitos criticam tal nota por afirmarem se tratar de uma inovação decorrente da flexibilização feita pelo Papa da proibição absoluta de católicos divorciados e recasados fora da Igreja receberem o Corpo de Cristo.Vejamos os argumentos do Papa:
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CASOS PARTICULARES E ATENUANTES
O Papa diz não ter mudado o ensinamento da Igreja e cita logo nas primeiras linhas o entendimento do magistério quanto a algumas situações peculiares nas quais, em razão de todo um complexo contexto relacional, uma situação que seria de pecado grave se analisada objetivamente, torna, em razão de vários elementos próprios, a pessoa subjetivamente não culpável, ou pelo menos não plenamente. Sendo assim, essa pessoa não incorreria num pecado mortal, sendo-lhe perfeitamente possível comungar. O Papa inclui alguns casos de pessoas divorciadas nessa categoria. Atenção, ele diz: “Em certos casos”. Isso significa que, segundo ele, não são todos os casos em que tal situação de atenuância se aplica, mas constitui apenas uma possibilidade remota, em contextos muito críticos, com vários fatores envolvidos. PORTANTO, NÃO SE TRATA DE REGRA GERAL, MAS DE UMA SITUAÇÃO EXCEPCIONAL JAMAIS ENCORAJADA. Leia de novo a nota:
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Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos…
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Para tanto, faz uso de Santo Tomás de Aquino:
Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral:Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta não é igualmente conhecida por todos. (…) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação.
Summa theologiae I-II, q. 94, art. 4.
305. […] Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio duma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja. O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades.
A argumentação gira em torno da complexidade das relações e de possíveis atenuantes envolvendo cada caso particular, os quais podem efetivamente reduzir a culpa de algumas pessoas em condições particulares. De alguma forma, Francisco assume que essas atenuantes sejam capazes de tornar um indivíduo envolvido em pecado objetivo, de alguma forma, subjetivamente inocente, isto é, no seu interior e na sua consciência, em razão de fatores que reduzem sua culpa. Convém, no entanto, destacar que essa excessiva ênfase nos fatores internos e psicológicos individuais não podem se tornar uma regra e contribuir para o entorpecimento da consciência das pessoas quanto à gravidade do pecado, como muito bem disse o Santo Papa João Paulo II em sua RECONCILIATIO et PAENITENTIA:
17. (…) Mas da consideração da esfera psicológica não se pode passar para a constituição de uma categoria teológica, como é precisamente a da «opção fundamental», entendendo-a de tal modo que, no plano objetivo, mudasse ou pusesse em dúvida a concepção tradicional do pecado mortal. Se bem que sejam de apreciar todas as tentativas sinceras e prudentes de esclarecer o mistério psicológico e teológico do pecado, a Igreja tem no entanto o dever de recordar a todos os estudiosos desta matéria: a necessidade, por um lado, de serem fiéis à Palavra de Deus, que nos elucida também sobre o pecado; e, por outro, o risco que se corre de contribuir para atenuar ainda mais, no mundo contemporâneo, o sentido do pecado.
O ensino da Igreja é para que o fiel mantenha-se vigilante, preservando a atitude de cautela quanto ao pecado. Isso torna a base argumentativa de Francisco falsa? Não, tanto Santo Tomás de Aquino como o Papa João Paulo II concordam com essa verdade, mas o conselho do Papa JP II permanece como um aviso: não abuse confiando nessa possibilidade. Basta-nos saber que tais situações existem e que podem de fato reduzir a culpa pelo pecado. Todavia, não é recomendável apostar nelas, tampouco constituir “uma categoria teológica” com base nelas, pondo em dúvida a concepção de pecado mortal e se fundando excessivamente em tão escassa garantia. Por conta disso, o mandamento da Igreja continua sendo o mesmo, de perseverar no amor até o fim, recriando-o no meio das crises e cruzes, na saúde e na doença, aguardando até o fim o prêmio dos pacientes, conforme o dito do apóstolo com respeito à natureza do dom sublime do amor:
O amor é paciente, o amor é bondoso.
Não inveja, não se vangloria, não se orgulha.
Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor.
O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
1 Coríntios 13:4-7
A LUTA PELO CASAMENTO DEVE SER INCENTIVADA
Creio que por isso, temos as recomendações do Papa Francisco de utilizar as crises como uma oportunidade para recriar o amor. De fato, a encíclica papal passa um meior tempo tratando dessa questão do que da nota possibilidade drástica da nota polêmica:
237. […] Há situações próprias da inevitável fragilidade humana, a que se atribui um peso emotivo demasiado grande. Por exemplo, a sensação de não ser completamente correspondido, os ciúmes, as diferenças que podem surgir entre os dois, a atração suscitada por outras pessoas, os novos interesses que tendem a apoderar-se do coração, as mudanças físicas do cônjuge e tantas outras coisas que, mais do que atentados contra o amor, são oportunidades que convidam a recriá-lo uma vez mais.
– Papa Francisco, Amoris Laetitia 237
E mais: a orientação às lideranças religiosas é que empreendam todo o esforço pastoral em favor do matrimônio, como 307 diz:
A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimônios e assim evitar as rupturas.
– Papa Francisco, Amoris Laetitia 307
Ainda assim, o pontífice esclarece: a Igreja não ignora as situações de abusos crônicos nas quais, do rompimento relacional depende muitas vezes a vida das pessoas, do cônjuge ou dos filhos, colocados em perigo, seja em razão de violência doméstica, exploração ou de abusos de muitas naturezas. A encíclica jamais nega a indissolubilidade do matrimônio, no entanto, admite a ocorrência da separação como remédio extremo e drástico em alguns raros casos muito dramáticos, tido como a última opção viável após esgotadas todas as demais.
241. É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença. Mas «deve ser considerado um remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas razoáveis.
Veja que nesse caso, há um risco real para a vida individual e familiar, que estava sob ameaça. Muitos são os casos de violência doméstica, de pessoas que foram levadas ao seu esgotamento psicológico em razão de exposições a situações de terror, agressão, abuso.
CASOS E CASOS
Então o Papa aconselha a não julgar de forma rígida e excessivamente insensível? Sim, é exatamente isso: Não colocar tudo no “mesmo saco”, por assim dizer, pois cada circunstância possui sua própria particularidade. E começa a elencar um amontoado de situações diversas e intrincadas. Ele cita as pessoas que lutaram incansavelmente para salvar seu casamento, mas que sofreram injustiça e seu esforço foi em vão, como lemos em 242. […] Tem-se de acolher e valorizar sobretudo a angústia daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. Por conta disso, o Papa orienta: “Cuidar delas não é, para a comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a indissolubilidade do matrimônio; antes, ela exprime precisamente neste cuidado a sua caridade”.
E então elenca os casos de indivíduos que contraíram novo matrimônio como dividindo em duas categorias:
PRIMEIRA CATEGORIA
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Aqueles que vivem em uma 2ª união consolidada pelo tempo, com novos filhos, fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que cairia em novas culpas;
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Aqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimônio e sofreram um abandono injusto;
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Aqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimônio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido
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SEGUNDA CATEGORIA
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Uma nova união que vem dum divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias inteiras,
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A situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares.
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A primeira categoria é evidentemente menos séria que a segunda. Veja que ambas são categorizadas como “situação de pecado objetivo mortal”, mas uma situação é ainda mais danosa que a outra. Isso ocorre porque as descrições da primeira categoria demonstram atenuantes ao pecado, tais como (respectivamente) a) a consciência do pecado cometido e o arrependimento, ainda que haja impossibilidade de voltar atrás; b) o esforço do cônjuge que tentou manter a santidade do sacramento, mas que foi injustamente abandonado; c) e a ignorância de alguém que julga estar em uma união legítima. Na segunda categoria, de modo diverso, há agravantes explícitos, como a irresponsabilidade e a falta de compromisso deliberada. Nela se enredam os cônjuges em pecados alarmantes, afetando o cônjuge, os filhos e sendo os grandes responsáveis pela dor e ruína familiar. Embora a Igreja seja firme ao declarar que nenhuma das situações/categorias cumprem o plano de Deus, posto irregulares, ela demonstra consciência de uma diferença.
298. […] Deve ficar claro que este não é o ideal que o Evangelho propõe para o matrimônio e a família.
CULPABILIDADE REDUZIDA
A necessidade de considerar os casos de forma particular levou à escritura dessa encíclica. Talvez seja mais fácil julgar situações assim quando estamos de fora, mas se observarmos o evangelho, não é difícil encontrar Cristo demonstrando sensibilidade diante de cenários semelhantes, os quais eram de fato moralmente irregulares, mas que em razão de um complexo emaranhado de fatores, ocorreram, infelizmente e para prejuízo de todos, na vida de alguns dos filhos de Deus. É o caso da Mulher Samaritana, com quem Jesus se encontra próximo a um poço em João 4. Ela havia mantido relacionamentos duradouros com cinco homens, não sendo aquele com quem ela atualmente coabitava o seu marido legítimo. Ainda assim, ela possuía verdadeiramente um coração consciente das suas faltas, bem como das consequências de seus pecados em sua vida, estando arrependida e contrita, mas sentindo-se incapaz de voltar atrás e modificar a situação. É nesse momento que ela encontra Jesus e Ele a ama e a acolhe. É possível que ela tenha retornado, após o encontro com Jesus, ao homem com quem ela vivia e rompido o relacionamento irregular? Provavelmente, mas a Bíblia não diz. O fato é que Jesus foi ao seu encontro.
Há pessoas que tiveram suas vidas marcadas por uma ruptura que elas gostariam de consertar, mas que não podem, remoendo decisões tomadas, omissões, dores, feridas abertas que ainda doem. Elas lidam com consequências latejantes, seja de erros seus e alheios, seja de pecados cometidos, das quais desejariam escapar e de fato voltariam no tempo e modificariam tudo se pudessem, mas não podem. Suas vidas seguiram um curso, o tempo tratou de cristalizar as barreiras e as condições para a retratação já se encontram talvez inalcançáveis. Ainda assim, no entanto, seu coração pulsa por Deus, por um retorno à Casa de seu Pai. Será que Cristo as impediria? Lembrem-se que a vida sacramental constitui a vida em comunhão com Deus e a partilha de Cristo.
RELATIVIZAÇÃO A LONGO PRAZO
É evidente que há necessidade de cautela, pois ambos os sacramentos são santos (Mateus 19: 6 e 1 Co 11: 27-32) e a frieza espiritual seria uma tragédia para a Igreja, que peregrina em um mundo já destroçado pela relativização de valores eternos, todavia, a exortação do Papa apenas expôs a existência de tais casos peculiares, pois eles existem, dentre muitos que condicionam a vivência humana. É importante, pois, repetir que o matrimônio permanece indissolúvel, mas Amoris Laetitia está tratando de pessoas que não seguiram o caminho traçado pela Igreja para o matrimônio, mas que ainda assim Deus não fechou completamente a porta da graça para elas. Se essa flexibilização terá algum efeito negativo em pessoas infiéis, que só precisam de um leve aceno para justificar sua falta de caridade e perdão, talvez. E é bem provável que alguns encontrem um meio de burlar as regras e cauterizar a própria consciência. Mas essa foi a decisão do Papa e foi baseada em possibilidades reais.
S. João Paulo, em sua Familiaris Consortio, fornece uma via para esta questão:
84. […] A reconciliação pelo sacramento da penitência – que abriria o caminho ao sacramento eucarístico – pode ser concedida só àqueles que, arrependidos de ter violado o sinal da Aliança e da fidelidade a Cristo, estão sinceramente dispostos a uma forma de vida não mais em contradição com a indissolubilidade do matrimônio. Isto tem como consequência, concretamente, que quando o homem e a mulher, por motivos sérios – quais, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem separar, «assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos atos próprios dos cônjuges.
CONCLUSÃO
Como foi dito, Amoris Laetitia não admite uma condescendência com o pecado, ou mesmo uma postura permissiva e leviana (pelo menos não podemos vê-la assim como católicos), mas abre nossos olhos para a consciência dos variados e complexos fatores que envolvem a experiência moral e espiritual das pessoas na sua relação com Deus e com os outros. A existência de situações excepcionais, as quais se deram por variados motivos, seja por “ignorância, inadvertência, violência, medo, hábito, apegos desordenados e outros fatores psicológicos ou sociais” (O Catecismo Nº1735 enumera os tais como atenuantes da culpa), suscitou no Papa o desejo de adicionar pastoralmente a polêmica Nota 351. Deve ficar claro, contudo, que segundo a doutrina católica, mesmo com tais elementos reduzindo a culpa de uma alma por determinado delito, não há mal sem prejuízo. Sendo assim, há sempre um preço que se paga pelo pecado, ainda mais um decorrente da quebra de um sacramento tão sagrado. A Igreja, no entanto, está aberta a acolher, e reconhece a existência de situações peculiares, dispondo Deus dos meios para tratar aqueles verdadeiramente contritos, que estão cientes da sua responsabilidade e que já padeceram o suficiente com a medida do fardo que a culpa que lhes cabe por sua falta custou. Deus tem caminhos de cura para todos os seus filhos. Ainda assim, o Santo Padre admitiu, apenas em alguns casos, a possibilidade da ajuda dos sacramentos, sempre com a análise da situação por parte de um sacerdote fiel.
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