O Ladrão na Cruz não poderia refutar o Purgatório

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Frequentemente ouvimos que o caso do ladrão da cruz constitui uma evidência imbatível contra a doutrina do purgatório. Uma vez que Cristo dissera claramente que o ladrão, a quem a Tradição chama Dimas, fora ao paraíso, parece claro que o purgatório não existe, já que um homem pecador como ele certamente precisaria ser purgado de remanescentes pecados antes de adentrar os portões celestiais, coisa que Jesus nega: “hoje estarás comigo no paraíso”. Trata-se de uma dúvida decorrente da falta de compreensão da doutrina. Vamos a ela:

Já no Antigo Testamento, os indivíduos culpados de vários tipos de pecados – os pecados cometidos deliberadamente, (75) as diversas formas de impureza, (76) a idolatria,(77) o culto a falsos deuses (78) – eram ordenados a serem “levados longe do povo”, o que também poderia significar ser condenado à morte. (79) Em contraste com estes havia outros pecados, especialmente pecados cometidos por ignorância, que foram perdoados por meio de uma oferta de sacrifício (Lv 4:2; 5:1; Nm 15:22-29). Referindo-se também a estes textos, a Igreja tem falado durante séculos do pecado mortal e do pecado venial. Mas é sobretudo o Novo Testamento que esclarece esta distinção e estes termos. Aqui há muitas passagens que enumeram e reprovam fortemente pecados que são particularmente merecedores de condenação. ( Mt 5:28; 6:23; 12:31; 15:19; Mc 3:28-30; Rom 1:29-31; 13:13; Jas 4.) Há também a confirmação do Decálogo pelo próprio Jesus ( Mt 5:17; 15:1-10; Mc 10:19; Lc 18:20.) Aqui desejo dar especial atenção a duas passagens que são significativas e impressionantes.  

 

Numa passagem da sua primeira Carta, São João fala de um pecado que leva à morte (pròs thánaton) em contraposição a outro pecado que não leva à morte (mè pròs thánaton). (Jn 5:16) No conceito de morte, aqui, como é óbvio, subentende-se espiritual: trata-se da perda da verdadeira vida ou «vida eterna», que, para São João, é o conhecimento do Pai e do Filho e a comunhão e a intimidade com eles. O pecado que leva à morte parece ser, nesta passagem, a negação do Filho, (1 Jn 2:22) ou o culto de falsas divindades. (1 Jn 5:21) Seja como for, com essa distinção de conceitos, São João parece querer acentuar a incomensurável gravidade daquilo que é a essência do pecado, a recusa de Deus, atuada sobretudo na apostasia e na idolatria; ou seja, no repúdio da fé na verdade revelada e na equiparação a Deus de certas realidades criadas, erigindo-as em ídolos ou falsos deuses. Mas o Apóstolo, nessa mesma página, quer também pôr em evidência a certeza que provém para o cristão do fato de ser «nascido de Deus» pela vinda do Filho: há nele uma força que o preserva da queda no pecado; Deus guarda-o «e o Maligno não o toca».

 

 

No caso de pecar por fraqueza ou ignorância, subsiste nele a esperança da remissão, também pelo apoio que lhe advém da oração feita em conjunto pelos irmãos. Noutra página do Novo Testamento, no Evangelho de São Mateus, (Mt 12:31) o próprio Jesus fala duma «blasfémia contra o Espírito Santo», que é «irremissível», porque, nas suas manifestações, ela aparece como uma obstinada recusa de conversão ao amor do Pai das misericórdias. Trata-se, é claro, de expressões extremas e radicais: rejeição de Deus, rejeição da sua graça e, portanto, oposição ao próprio princípio da salvação, (Thomas Aquinas, Summa Theologiae II-II, q. 14, aa. 1-8.) pela qual o homem parece fechar voluntariamente a si mesmo o caminho da remissão.

O purgatório existe como forma de purificação em razão de penas temporais REMANESCENTES de pecados que não foram sanados em vida por meio de frutos de arrependimento produzidos pela pessoa. Se isso ocorre, o purgatório não é necessário. Tanto os ortodoxos quanto os católicos concordam com o fato de que alguns serão purgados antes da morte, isto é, durante a vida; na hora da morte, isto é, no sofrimento ou espanto diante da morte; e quem receba após a morte.
O SOFRIMENTO DO PURGATÓRIO É UM INSTRUMENTO PARA SALVAÇÃO POR MEIO DA CORREÇÃO, SENDO DISPENSÁVEL SE POR OUTROS MEIOS A ALMA CHEGAR AO ESTADO DE CONTRIÇÃO
Embora muitos citem a contrição perfeita, tecnicamente, considerando a doutrina do purgatório, ela pode muito bem ser resultado das penas temporais que já estavam sobre ele, agindo para a salvação do ladrão da cruz. Ele foi santificado na morte participando do sofrimento do Senhor. O fato é que o ladrão já estava pagando por seus pecados enquanto era torturado no madeiro do lado de Cristo. O objetivo do purgatório é que a alma chegue ao estado de contrição para que seja salva. Deus não tortura o povo por diversão. A dor do purgatório é como extrair um dente, seguindo o exemplo de C.S. Lewis. Se o ladrão chegou àquele estado através daquela experiência, por que ele seria mandado para o purgatório?
HÁ MUITOS PURGATÓRIOS ALÉM DAQUELE APÓS A MORTE
É por isso que hoje, por exemplo, é possível ter certeza de que há indivíduos em situações de vergonha com dívidas financeiras ou mesmo com doenças nos hospitais em razão de seus próprios pecados. Alguns até morrem inclusive, como resultado de penas temporais por seus pecados. Se alguém chega ao estado desejado através desses castigos purgativos em vida, tal pessoa não vai para o purgatório. Há penas temporais q são aplicadas em vida somente. Agostinho já falou sobre isso. Há outras que são aplicadas em vida e TAMBÉM após a vida (no purgatório). Aquelas que não são aplicadas pelos anjos durante a vida das pessoas, é claro, são pagas no purgatório. E há ainda aqueles que recebem bens no mundo mesmo sendo pecadores terríveis. Eu vejo mistério nisso, mas creio q é um mistério da misericórdia para com eles. Deus talvez considere essa a melhor forma de salvá-los ao invés do castigo e do sofrimento, que os tornaria mais ímpios ainda. Não sei… Há também quem apenas entesoura ira sobre sua cabeça para o Dia do Juízo. Temos também penas temporais que Deus reserva para o Estado aplicar aos homens, já que é agente de Deus para aplicação da Justiça, conforme a Palavra de Deus “servo de Deus, agente da ira para punir o malfeitor” (Romanos 13:4). Então quando alguém é preso por furtar, isso é Deus aplicando uma pena temporal a ele através da instrumentalização do ESTADO, que julga aquele cidadão por seu crime. Então são diversos os meios pelos quais Deus purga seus filhos e lhes corrige, seja na vida seja na morte. O purgatório é só mais um. E ele é um caso que devemos buscar evitar, pois ainda que não seja tão terrível quanto o inferno, ainda é terrível. É por isso que convém que nos deixemos moldar pelas diversas correções que o Espírito de Deus e seus anjos nos dispensam no decorrer de nossas vidas, oferecer esmolas e fazer jejuns (meios de indulgência) para glorificar a Deus por nossas obras e ajudar nossos irmãos.
SE AS PENAS TEMPORAIS PODEM SER PAGAS ANTES DA MORTE, ENTÃO O PURGATÓRIO É INÚTIL?
O purgatório não é um fim em si mesmo, mas um instrumento. Se a finalidade foi atingida por outros meios, como por penas temporais purgativas em vida, ele não é uma necessidade. Pois o purgatório existe para aplicação de penas temporais que santificam a alma. Se essa obra é realizada antes da morte e a pessoa chega a esse propósito por meio de um estado de doença por exemplo, essa situação que é como um purgatório para ela lhe permitiu ponderar sobre seus pecados e arrepender-se, por que ela iria passar por isso? No ano 250, por exemplo, Cirilo orienta os cristãos que passavam por perseguição por parte do imperador que se seus sofrimentos não gerassem a purificação perfeita, eles iriam cumpri-la no fogo após a vida. Basta ler a doutrina do purgatório para entender isso. E é possível vc entender ao pensar em coisas seculares, como no direito processual civil por exemplo. Há um princípio chamado Instrumentalidade das formas. Significa que se um fim de alguma formalidade for satisfeito de outro modo, a forma então não deve ser aplicada. Pois ela existe para chegar àquela finalidade que já foi satisfeita. A formalidade da citação, por exemplo, tem por objetivo dar a conhecer a alguém que essa pessoa foi processada. Se acaso a tal pessoa tomar conhecimento do processo e comparecer ao fórum sem a citação, só por ela não ter ocorrido, sendo parte do rito, o processo deve ser anulado por falta dessa formalidade? Não… a finalidade foi cumprida. Santo Agostinho, por exemplo, cita as penas temporais sendo aplicadas antes da morte como sendo o caso de certas pessoas. Todavia, também cita aquelas que deverão sofrer penas temporais após a morte. Há quem sofra ANTES, DURANTE A MORTE, OU DEPOIS:
“Punições temporais são sofridas por alguns apenas nesta vida, por alguns após a morte, por alguns aqui e no futuro, mas todos eles antes desse último e mais estrito julgamento. Contudo, nem todos os que sofrem punições temporais após a morte terão punições eternas, as quais se seguirão a esse julgamento”.
A Cidade de Deus 21:13, ano 419 d.C.

O purgatório é apenas uma das vias purgativas que Deus usa para santificar. Ela não é a melhor, nem a mais recomendável, posto que é um remédio extremo. Por exemplo, os santos devem ser purificados pela mortificação e pela disciplina em suas vidas. Todavia, essa é a regra, buscar ser moldado a Cristo através das múltiplas situações que Deus nos dá para aprendermos, mas a exceção é a salvação de uma pessoa que não aproveitou bem esses meios de graça e correções que Deus providenciou.

 

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Considerando que Deus promete nos purificar e nos amoldar a Cristo, além de deixar claro em sua palavra que sem santidade ninguém verá o Senhor e que no Céu não entra pecado, eu diria que a purificação plena é mais do que necessária (e o purgatório é uma forma de alcançá-la, ainda que não a única). Logo, não há nenhum obstáculo à doutrina católica do purgatório o fato de o ladrão ter sido restaurado sem precisar passar pelo purgatório. Ele próprio já estava sob efeito de penas temporais causadas pela espada da Lei, quando pela tutela estatal em razão de seu crime, ele é castigado na cruz ao lado do Senhor. Em muitos quadros, inclusive, o  ladrão, cujo nome que a Tradição lhe confere é São Dimas, é intitulado também como o Penitent Thief, isto é, o Ladrão Penitente. ✝️

Christ and the Good Thief (Crsto e o Bom Ladrão) por Titian
Domínio Público

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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