O Argumento da Helenização do Judaísmo

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Martírio dos irmãos Macabeus e de S. Salomé em defesa da Fé Judaica contra a Invasão Estrangeira
Giustino Menescardi na Scuola Grande dei Carmini (Veneza)

 

Alguns argumentam, ligados à premissa de uma possível adulteração no Cristianismo, que as doutrinas da Intercessão dos Santos no período inicial de nossa Era Comum são produto de helenização no Judaísmo, e da própria adulteração no Judaísmo, isto é, “uma fonte envenenada”, que envenenou o Cristianismo posteriormente. É verdade que as religiões mantêm contato umas com as outras e, eventualmente, podem reforçar crenças já presentes, estimulando-as, ou até emprestar novas, mas não vou tratar dessas possibilidades. Mas sim da tentativa de deslegitimar algumas doutrinas cristãs sob este argumento. Primeiramente, convém dizer que isso se dá em razão de relatos arqueológicos, artigos acadêmicos, de documentos antigos e até mesmo de livros, como 2 Macabeus, revelarem a presença da crença na Intercessão dos justos homens no céu e da enraizada prática, presente no seio judaico, de se orar pelos mortos (e consequentemente de oferecer o sacrifício por eles) no Judaísmo do segundo Templo. Segundo alguns,  isso tornaria toda a Teologia produzida pelos Padres da Igreja, Doutores e cristãos teólogos em torno desse ponto, a qual foi defendida como ortodoxa nos primeiros quatro séculos de História Cristã, inválida e descartável. Essa ideia, contudo, falha nos seguintes pontos: 1) ela não apresenta provas contundentes de uma flagrante incompatibilidade dessas ideias com o corpo de doutrinas cristãs apresentado posteriormente nos evangelhos e nas cartas, e 2) também fracassa ao insinuar que o Cristianismo puro deveria repudiar tais práticas, pois seu único argumento é a suspeita sobre o discernimento da Igreja Primitiva quanto a esta questão desde um período muito precoce da Cristandade (mostrei como isso é problemático aqui). Em resumo, tata-se do pensamento: “os antigos cristãos não eram capazes de reconhecer uma doutrina evidentemente bíblica, mas eu sou”.

 

O Exército de Deus Aparece nos Céus para ajudar os Judeus (2 Mac 5:2-4 )
Gustave Doré (1832–1883) – Domínio Público

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Aconteceu que em toda a cidade e por mais de quarenta dias, apareceram, correndo pelos ares, cavaleiros com vestes de ouro e armados com lanças, coortes armadas, espadas desembainhadas, esquadrões alinhados para a batalha, perseguições e choques de um lado e de outro; movimentos de escudos, multidões de lanças, tiros de dardos, armaduras de ouro resplandecentes e couraças de todo o gênero. Por isso, todos rezavam para que tais aparições produzissem acontecimentos favoráveis.

2 Mac 5:2-4 

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Tais alegações de helenização não passam de expeculação da pior espécie. Além de ser um desrespeito total com os mártires macabeus, que são considerados santos pela Igreja Primitiva, tendo morrido justamente para impedir que o Judaísmo fosse paganizado, é uma tese completamente ilógica à luz das evidências. A verdade é que seria quase impossível provar que Cristo e os apóstolos julgavam esses ensinos como pagãos, tendo eles mesmos feito uso deles! Em passagens da Bíblia, vemos que os apóstolos não consideravam fenômenos sobrenaturais envolvendo a intercessão dos anjos (Mateus 18, 10 e Apocalipse 8:3-4) e a aparição de santos vindos do além como impossíveis (Mateus 17). Além disso, as semelhanças são extremamente notáveis entre as narrativas acusadas de adulteração e os relatos bíblicos considerados canônicos pelos negacionistas da Ortodoxia da Intercessão dos Santos, de modo que não é estranho à própria Bíblia a imagem que essas tradições nos apresentam. Assim como não é algo novo a visão (imagem acima) em 2 Mcabeus 5, 1-4 dos exércitos de anjos no céu a auxiliar com orações o exército de Israel na terra, semelhantemente, como no livro citado lemos (com Onias aparecendo em 2 Mcabeus 15, 12, sendo que estava morto em 2 Macabeus 4, 32), também a visão de justos intercedendo no além (Hebreus 12, 23 e Apocalipse 5, 6-8) não é. Na verdade, ao invés de fornecer qualquer fundamento para a negação desses eventos, o evangelho parece confirmar a ideia de que aparições do além a pessoas da terra não são, sempre e em qualquer situação, produto de ações demoníacas, já que testemunharam a aparição dos santos Moisés e Elias no monte Tabor a Jesus Cristo e aos apóstolos antes de sua Páscoa (Mateus 17:1-8). E Mateus registrou tal fenômeno na Escritura:

E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele.

E Pedro, respondendo, disse a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, façamos aqui três tabernáculos, um para ti, um para Moisés, e um para Elias. E, estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem luminosa os cobriu.

Mateus 17:3-5

Por que Jeremias e Onias aparecendo a Judas seria Mitológico,

mas Moisés e Elias a Jesus não?

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Agora veja o relato de 2 Macabeus 15, 12-14:

 

Eis o que tinha visto: Onias, que foi sumo sacerdote, homem nobre e bom, modesto em seu aspecto, de caráter ameno, distinto em sua linguagem e exercitado desde menino na prática de todas as virtudes, com as mãos levantadas, orava por todo o povo judeu. Em seguida, apareceu do mesmo modo um homem com os cabelos todos brancos, de aparência muito venerável e nimbado por uma admirável e magnífica majestade. Então, tomando a palavra, disse-lhe Onias: “Eis o amigo de seus irmãos, aquele que reza muito pelo povo e pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus”.

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Não há uma significativa diferença temática entre ambos os relatos de 2 Macabeus 15, 12-14 e Mateus 17, 3. Os dois falam de um evento sobrenatural ocorrendo: de fato, somos avisados de que os dois envolvem pessoas que não deveriam pertencer mais a este mundo, mas que estão, de alguma forma, ainda envolvidas diretamente nos acontecimentos envolvendo o mundo. É verdade que temos a notícia de que Judas tivera uma visão, enquanto o aparecimento de Moisés e Elias são descritos como eventos reais nos evangelhos, tendo sido presenciados pelos apóstolos e registrados devidamente. Contudo, é impossível negar que ambos apresentam ocorrências muito similares e decisivas para a história de seu povo e época.

 

A INCONSCIÊNCIA DAS ALMAS

 

Alguns fazem uso de passagens do Velho Testamento acerca de uma pretensa inconsciência das almas e da inatividade completa dos espíritos após deixarem o corpo, sugerindo que esses textos tirados de contexto e interpretados sem grande critério são a prova da falsidade de tais alegações. Para essas pessoas, houve um desvio daquelas ideias iniciais do Judaísmo verdadeiro, que apontava para um sono completo e uma inatividade total envolvendo a consciência das almas, para um Judaísmo pagão e helenizado composto de espíritos no além vívidos e cheios de atividade, produto de ensinos adulterados advindos de povos estrangeiros, sobretudo dos gregos. Curiosamente, contudo, ninguém avisou isso a Jesus, que chegou a apresentar as almas vívidas e ativas dos gregos com muito entusiasmo numa de suas parábolas: O Rico e o Lázaro (“Um dia, o mendigo faleceu e foi levado pelos anjos para junto de Abraão. Também o rico morreu e foi sepultado. Ali, no inferno, viu Lázaro lá longe com Abraão. ‘Pai Abraão’, gritou, ‘tem misericórdia de mim! Manda Lázaro vir ter comigo” – Lucas 16, 22-24).

 

James Tissot – Domínio Público

 

Novamente: Se ao menos eles ficassem calados! O que quero dizer é que, trata-se de uma tarefa bastante difícil provar que Jesus e os apóstolos não acreditavam em tais doutrinas, já que as citavam constantemente! S. João, por exemplo, relata a visão de homens redimidos no céu, tal como Jeremias na visão de Judas em II Macabeus (no Velho Testamento), orando e pedindo a Deus em favor dos habitantes da terra. Esses homens estão cantando (Apocalipse 5:9 e 14:3) e chegam a orar pedindo que o Senhor finalmente traga justiça ao mundo (Ap 6:9-10). Além disso, Mateus também nos traz o relato de um fenômeno extraordinário: a visão de santos ressurgindo dos mortos e entrando na cidade santa após a crucificação de Jesus (Mateus 27:52-54). Isso foi lido por variado número de cristãos como um relato literal.

 

E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos. E o centurião e os que com ele guardavam a Jesus, vendo o terremoto, e as coisas que haviam sucedido, tiveram grande temor, e disseram: Verdadeiramente este era o Filho de Deus.

Mateus 27:52-54

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Obs. O registro apresentado por Mateus com respeito à ressurreição dos santos após a morte de Jesus é ainda um dado cercado de mistérios, entretanto, não convém fingir que algo miraculoso NÃO OCORREU, quando se narravam tremores de terra e outros eventos unidos a este. O teor narrativo do texto se revela nas palavras: “e apareceram a muitos”. (Mateus 27:53) Esse trecho foi registrado e mantido como Escritura Sagrada, sendo crido pelos antigos como um evento sobrenatural. 

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Cristo desce ao Recanto dos Mortos e liberta-lhes da Prisão para seu Reino Celestial
Foto de George E. Koronaios da Igreja de São George Karytsis (winkipedia commons)

 

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Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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