INTRODUÇÃO
Alguns dizem que é preciso ler a bíblia sem nenhum direcionamento extra, tendo somente o texto e nada mais como sua base de apoio, para só então decidir qual religião seguir ou o que é a verdade. Dizem isso para que a pessoa fique livre de ideias pré-concebidas ou noções que inevitavelmente prejudicarão sua neutralidade. Outro dia ouvi alguém dizer: Uma pessoa só alcança o propósito para o qual Deus a criou lendo a Bíblia e discernindo por si só qual é o caminho. Parece lindo, mas quem disse isso não percebe as dificuldades práticas de tal ideia. Talvez você ficaria surpreso ao constatar que esse não foi um critério possível de ser adotado pelos cristãos no começo para se saber qual caminho seguir. Mas vamos por partes.
UMA MÃE ZELOSA
Consideremos o seguinte: A razão é parte do que nos torna devidamente humanos, sendo a busca pela verdade própria da experiência de ser uma criatura racional. É, portanto, importante que você se esforce para buscar a verdade, e a Bíblia é um presente de Deus para nós sabermos a Verdade. Isso não será discutido aqui. A Bíblia é importante e nós concordamos nisso. Todavia, será que Deus nos deu a Bíblia sem um auxílio eficaz para lê-la? Você pode até concordar que não seria lógico Deus nos dar a Bíblia e não nos presentear com algum intérprete, sem o qual estamos como o Eunuco, que disse: Como poderei compreender, a não ser que alguém me explique? (At 8: 31). Mas você se questiona: quem seria confiável para me dizer como interpretá-la? Volte ao começo: de onde, afinal, veio a Bíblia? Você confiou suficientemente na autoridade que te deu a Bíblia para aceitá-la dela como um livro confiável. Talvez você possa partir daí. Lembra do que eu disse no primeiro parágrafo, que durante os primeiros séculos da era cristã, as pessoas não usavam o critério do “tá aí o livro, interprete-o quem puder!”? Pois bem. Vamos às origens apostólicas.
O Batismo do Eunuco, de Abraham Bloemaert
Domínio Público

O Cristianismo era bombardeado por muitas heresias em seu princípio, e isso significa que os cristãos deveriam criar um bom método de validação da doutrina, o que levou os bispos a defenderem a fé formulando critérios bem sérios e rígidos de admissibilidade. Naquela época, era muito suspeito qualquer um chegar e se propor a interpretar o que a bíblia diz, pois apenas quem havia convivido com os apóstolos eram considerados confiáveis para tal tarefa. Isso ocorria porque se entendia a Bíblia como tendo uma mensagem objetivamente definida pelos apóstolos. Não se entendia que era preciso considerar as infindáveis possibilidades de interpretação que seu texto escrito poderia inspirar. Além disso, se não era seguro interpretar o velho testamento sem a visão apostólica que via em Cristo o cumprimento dos profetas, tampouco o novo, que ainda estava sendo escrito! Havia a interpretação apostólica, e só ela era aceitável. Para orientação das ovelhas, as comunidades perseguidas buscavam se agarrar à doutrina e regra de fé apostólica do texto do antigo testamento e das cartas e evangelhos (ainda em processo de escrita sobre a vida de Jesus – o que se tornaria o novo testamento). A essa regra de fé ou interpretação apostólica eles chamavam de tradição. Não demorou para que se formulassem catecismos e confissões, tais como o Didaquê. Isso por si só demonstra que a ideia de que somente pelo estudo individual de toda a Escritura alguém é capaz de alcançar o que a vontade divina estabeleceu, sem um auxílio extra para poder decidir, não era viável naquela época, tampouco lógico. Os cristãos entendiam que a Igreja era necessária para instruir os fiéis, já que ela detinha aquela tradição viva oral e a própria bíblia saindo do forno. Ela era como uma verdadeira mãe zelosa, que ensina corretamente o caminho ao filho pequeno.
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OBJEÇÃO:
Muitos questionam:
O Espírito Santo é o Intérprete. Só precisamos d’Ele para nos ajudar a interpretar a Bíblia.
RESPOSTA:
É verdade. É Ele que a Bíblia diz guiar a Igreja a toda verdade até o fim.
É claro que se você pertencer à Igreja de Cristo, o Espírito te guiará a ela. Mas… sua interpretação particular não é a base da ortodoxia cristã histórica. Qualquer um pode alegar ter o Espírito Santo e nem por isso deixará de interpretar errado a Bíblia algumas vezes, como ocorria com os hereges. Isso porque, caso não se mantenha na promessa, não há certeza de que uma pessoa está isenta de erro em todo o seu ensino. A promessa da Bíblia é de que o Espírito instrui em toda verdade a instituição que os apóstolos estavam levantando naquele momento, isto é, a Igreja. Quantas pessoas você conhece que dizem ter o Espírito Santo ao interpretar a bíblia e mesmo assim discordam de outras pessoas que também dizem ter o Espírito Santo ao interpretar? Por acaso todas elas acreditam na mesma coisa e confessam a mesma religião? Todas têm o Espírito? Ou o Espírito escolheu um e rejeitou o outro, por ser menos inteligente? O critério é, então, a inteligência, e não a promessa? Ou seja, o Espírito escolhe alguém pelas suas habilidades e por suas obras? Não. É possível alguém dizer ter o Espírito Santo e apresentar uma interpretação completamente nova e herética da Bíblia, mesmo sendo inteligente. Era precisamente isso que os hereges faziam, e eles eram condenados pela Igreja, o corpo institucional que detinha a promessa divina. A Igreja mantém por isso a Tradição e a promessa de ser guiada pelo Espírito Santo infalivelmente em seu ensino e ofício magisterial, além das Escrituras.
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SÓ O TEXTO (Sola Scriptura)
Esta compreensão de que você não deve considerar nenhuma autoridade exterior ou além do texto para ajudá-lo na sua interpretação da Bíblia é derivada do Sola Scriptura, que possui uma definição multiforme dependendo da denominação protestante, e por isso eu decidi dizer que “deriva” e não que constitui o próprio princípio. Trent Horn, em seu The Case for Catholicism, escreve que embora os protestantes se esforcem por diferenciar o sola scriptura a partir de termos distintivos como “nuda scriptura”, “solo scriptura”, etc, eles acabam apresentando o mesmo resultado prático de um jeito ou de outro:
Protestantes como Mathison podem citar os primeiros concílios ecumênicos, mas eles só o fazem para apoiar sua própria interpretação anterior das Escrituras. Assim, por exemplo, é possível que eles citem a defesa realizada pelo Papa Leão em prol da cristologia tradicional em Calcedônia, mas ignoram a invocação da sua autoridade papal em outras cartas suas. Considere também o filósofo protestante William Lane Craig, que acredita que Cristo tem apenas uma vontade. Essa heresia, chamada Monotelismo, foi condenada no Terceiro Concílio de Constantinopla (680-681 d.C.), fato que Craig compreende perfeitamente. No entanto, sua resposta aos críticos demonstra como na prática o “solo scriptura” e o “sola scriptura” são equivalentes. Ele escreve:
Nenhum cristão sincero quer ser considerado um herege. Mas nós, protestantes, reconhecemos somente as Escrituras como nossa última regra de fé (o princípio da reforma sola scriptura). Portanto, trazemos até mesmo as declarações dos Concílios Ecumênicos perante a barra das Escrituras.
William Lane Craig (Winkimedia Commons)
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O fato é que o princípio defendido pelos protestantes de modo geral tende a solapar a autoridade de qualquer consenso cristão exterior à bíblia, mesmo que tenha sido a autoridade do consenso cristão que autorizou e compilou os próprios livros da bíblia. Segundo esse princípio, uma pessoa só pode estar plenamente confiante de que sua crença é fundamentada na verdade caso tenha investigado a Bíblia de maneira neutra. Assim, toda pessoa deve gastar bastante tempo estudando e lendo antes de tomar qualquer decisão por alguma Igreja em particular. O problema é que tal critério é moderno, não podendo ter sido adotado até meados dos anos 1400 e 1500. A experiência comum da maior parte da história com relação ao Cristianismo é a de uma grande maioria de leigos recebendo confiantemente a instrução catequética básica da Igreja Católica e de seu clero, que sempre foi considerada a Mãe dos fiéis.
A CULPA É DE DEUS ?
De fato, para que isso fosse viável antes do período citado, seria necessário que todo cristão tivesse uma Bíblia. Mas isso não foi possível até a invenção da imprensa. As Bíblias até então eram constituídas de grandes e numerosos pergaminhos, que ficavam guardados em mosteiros, devendo ser copiadas à mão. Se o sola scriptura fosse o modelo que Deus estabeleceu para a Igreja desde o começo, por que ele não foi aplicado desde o começo? Na verdade, entramos aqui na esfera da soberania divina, porque muitos protestantes aparentemente sustentam que embora a providência tivesse determinado que por 1500 anos seria impossível que cada cristão do mundo lesse a bíblia por si só e decidisse o que estava de acordo com ela sem o auxílio da Mãe Igreja, ainda assim é precisamente esse o modelo de perfeição cristã. Mas então como ele não pôde ser aplicado senão após a invenção da imprensa? Se uma única bíblia era composta de centenas de manuscritos extremamente caros por mais de mil anos, como poderiam ser fornecidas ao povo milhares delas, se de fato é necessário que cada cristão tenha uma bíblia nas mãos para lê-la(sem a ajuda da Igreja)? Ainda temos que lidar com outro desafio ao critério protestante, além da distribuição universal de bíblia, que é o fato de que os destinatários devem saber ler em outras línguas como grego e hebraico e ter o mínimo de conhecimento para interpretar o que leem. Se há pontos difíceis de compreender na Escritura (2 Pedro 3: 16) para pessoas devidamente educadas, quanto mais para pessoas que não possuem os mínimos rudimentos da instrução escolar, o que corresponde à situação populacional durante a maior parte da história. Deus então nos deu um sistema perfeito, mas que chegou atrasado mais de mil anos! Já vi muitos alegarem que por não se adotar o sola scriptura é que a Igreja foi paganizada. Logo, ela foi paganizada por algo completamente alheio aos poderes humanos, já que só seria possível evitar a consequência lógica da não aplicação desse princípio (que é a paganização), caso o homem pudesse ser Deus, e tivesse suprido a Igreja de todos os elementos e fatores que tornaram possível o sola scriptura ter sido aplicado antes da invenção da imprensa. Logo, a conclusão de tal pensamento é que seria então culpa de Deus a paganização da Igreja.
UM SISTEMA HIERÁRQUICO DESDE O PRINCÍPIO
Ao lermos Atos 15, no entanto, vemos que Deus nunca intentou um modelo diferente daquele que foi mantido e adotado desde o começo, e Cristo chega a afirmar a autoridade da Igreja como a solucionadora das controvérsias até mesmo com respeito a questões de ordem pessoal, quanto mais doutrinária: “E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano” (Mt 18: 17). Por isso, vemos São Paulo citando o episcopado e os diáconos como decorrentes da hierarquia eclesiástica nas cartas a Timóteo. Lembram do que mencionei com respeito às diversas heresias que surgiam quando alguém interpretava um texto de uma maneira diferente da interpretação apostólica repassada oralmente? Esse era um dos motivos da sucessão apostólica. Para não ser considerada herética, uma comunidade deveria provar que ela havia sido fundada por algum apóstolo ou que possuía comunhão com alguma igreja fundada por um apóstolo. E essas Igrejas apostólicas mais antigas detinham certos critérios para aceitar determinada comunidade eclesiástica na sua Communio (Comunhão). Um deles era que ela mantivesse a adequação às doutrinas (tradições) dos apóstolos.

Tanner Mardis via Unsplash
Veja como toda essa rede de relações ia se espalhando à medida que a Igreja crescia, começando não por um único indivíduo que interpretou sua bíblia sozinho, mas por toda uma comunidade que havia sido testemunha de um acontecimento marcante e a quem tinha sido confiado tal encargo, o de repassar a outras gerações de fiéis a doutrina (tradição) apostólica que lhe fora confiada. A Igreja, como Mãe, apenas levava adiante essa herança. Sempre houve uma dependência dessa riqueza da qual a Igreja institucional era portadora. A ideia individualista do sola scriptura, portanto, era inconcebível, e só possui grande ênfase hoje como reflexo da cultura, que também é individualista. Até mesmo para se saber quais livros os apóstolos de fato escreveram e catalogá-los, as pessoas precisaram da Igreja.
A UNIDADE É UM MANDAMENTO
A Esritura condena a confusão teológica, ordenando a unidade da fé: Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer (1 Coríntios 1:10). Por isso, quando uma controvérsia acerca da maneira de se interpretar a Escritura surgia, a Igreja não orientava cada pessoa a examinar o texto e decidir qual caminho seguir individualmente. Ainda mais porque, como mostrei acima, isso não seria possível. O que ocorria era o contrário: um grupo seleto de pessoas composto somente pelos líderes hierárquicos da comunidade cristã se reunia em um concílio para deliberar, em oração E com a assistência do Espírito Santo (Atos 15:28), qual seria a decisão quanto ao modo de interpretar o preceito, segundo as escrituras, o costume mais antigo aceito e a tradição. Só após a reunião, tendo chegado a um consenso, eles (os líderes/bispos) enviariam a decisão tomada ao povo por meio de cartas, sendo este excluído da participação na reunião. Não era democrático, eu sei…
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OBJEÇÃO 2:
Alguém diz: Isso só passou a ocorrer quando a ganância começou a entrar na Igreja, foi depois da era apostólica
que o povo foi excluído de maneira tão vil e injusta.
RESPOSTA:
Não, meu querido, eu acabei de citar o comportamento padrão dos apóstolos
exatamente como é descrito em Atos 15: 30-31.
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Tendo eles então se despedido, partiram para Antioquia e, ajuntando a multidão, entregaram a carta. E, quando a leram, alegraram-se pela exortação.
Atos 15:30,31
CONCLUSÃO
A Igreja é uma obra do Espírito Santo. Ele é o grande presidente e arquiteto de seu empreendimento. Você pode estar muito preocupado com o destino da Igreja e até mesmo pode ter planos para evitar que ela caia, mas a verdade é que você não tem qualquer poder sobre isso. Se Deus não a impedisse de cair, não seria você quem a impediria. Logo, cremos exatamente naquilo que os apóstolos disseram, porque eles foram guiados pelo Espírito Santo. E esse Espírito não abandonou a Igreja, uma vez que temos a promessa: Eis que estou convosco todos os dias até o fim dos tempos. (Mt 28 20). E diz mais: “Não te deixarei, não te desampararei” (Hb 13: 5). Se Deus habilitou a Igreja para interpretar a Esritura, e se Ele esteve com ela durante os primeiros séculos segundo prometeu, como você pode defender – sem incorrer em incredulidade – que Ele não ficaria até o fim? De fato, foi essa confiança na promessa divina de que Deus conduziria a Igreja à Verdade de uma forma infalível que serviu como base para a força autoritativa dos Concílios (os mesmos que estabeleceram a Trindade, instituíram que o Inferno é eterno, discerniram quais livros pertenciam à Bíblia e quais não pertenciam, etc.).
Todos os demais concílios seguiram esse mesmo modelo apostólico e não o sola scriptura, pois foi o modelo escolhido por Deus para a Igreja.
“Non praevalebunt”
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