De onde vem o dogma da Infalibilidade Papal?

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Muitos acreditam que a Igreja Católica seja muito extravagante em seu ensino de que o Bispo de Roma seja infalível quando tratar de matéria de fé e moral ex cathedra, isto é, na cadeira, incumbência ou autoridade de Pedro (petrina). Mas afinal, de onde surgiu tal ideia? Bom, não é uma coisa nova, e se observarmos o cerne da questão, podemos compreender suas fundações evangelísticas. De fato, a própria noção de infalibilidade chama a atenção de forma negativa, contudo, as pessoas ficariam surpresas ao constatar que, embora na formulação do dogma ela esteja ligada ao adjetivo papal, ela tem muito mais a ver com a Igreja e com a promessa de Deus para ela. Os católicos entendem que isso diz respeito a um dom de Cristo para sustentar a infalibilidade da Igreja. Vamos por partes: Se nos determos na história, veremos que a ideia de que a Igreja não pode ensinar erro ou falir (é daí que vem a palavra “infalível”), indicando que ela não será mal sucedida ou derrotada, é algo que está plantado no seio do Evangelho. Na verdade, até mesmo os orientais ortodoxos sustentam essa prerrogativa da igreja. No Sínodo de Jerusalém (1672), os seus artigos apresentam uma reivindicação muito direta da infalibilidade da Igreja. A Igreja Ortodoxa, portanto, sustenta claramente que a Igreja nunca poderá ensinar o erro aos seus filhos.

 

Art. II. As Sagradas Escrituras devem ser interpretadas, não por julgamento privado, mas de acordo com a tradição da Igreja Católica, que não pode errar, nem enganar, nem ser enganada…

Art. XII. Cremos que a Igreja Católica é ensinada pelo Espírito Santo através de profetas, apóstolos, santos padres e sínodos e, portanto, não pode errar, ou ser enganada, ou escolher uma mentira ao invés da verdade.

Art. X. A santa Igreja Católica e Apostólica […] é governada por Cristo, o único cabeça, através de bispos devidamente ordenados em sucessão ininterrupta.

Sínodo  Ortodoxo de Jerusalém

 

Segundo eles, a Igreja recebe o ensinamento do Espírito Santo, contudo, Ele não ilumina plenamente a Igreja de forma imediata, nem por meio de julgamentos privados e interpretações particulares, eivadas de erro, senão através dos santos Padres e Líderes da Igreja Católica, bem como por meio dos concílios… É evidente que há certas verdades que são claras e podem ser apreendidas por todo fiel que de forma simples se entrega à ação do Espírito e medita na Palavra de Deus, mas nos chamados “pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição” (2 Pe 3: 16), e naqueles em que os mais simples são levados a exclamar “como poderei compreender, a não ser que alguém me explique” (Atos 8: 31), a Igreja é ensinada pelo Espírito através dos santos Padres e Doutores, e seu ensino ou tradição são reconhecidos pelos Santos e Ecumênicos Sínodos e Concílios históricos da Igreja. Eles também confessam como verdadeiro e indubitavelmente certo, que é impossível à Igreja Católica cometer algum erro, ser enganada, ou enganar as pessoas, sendo abominável a ideia de que alguma vez ela poderia escolher a falsidade em vez da verdade. Pois o Espírito Santo a preserva como um vigia sempre ativo e vivificante, operando presente e continuamente através dos santos Concílios, santos Padres e Líderes que ministram fielmente a verdade em razão da promessa divina. Isso, isto é, o Espírito Santo, livra a Igreja de todo tipo de erro.

 

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A Infalibilidade da Igreja

Cristo estabelece seu Tribunal na Terra

Os católicos [as] creem, juntamente com eles, que esta é uma verdade contida de forma clara na Escritura Sagrada.
1 Coríntios 6: 1-10

 

CRISTO PROMETE QUE O ESPÍRITO SANTO GUIARIA OS SEUS SEGUIDORES À VERDADE APÓS SUA PARTIDA PARA O PAI

 

¹² Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora.
¹³ Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir.
¹⁴ Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar.

João 16:12-14

 

OS CRISTÃOS RECEBEM O MANDAMENTO DE MANTEREM A COMUNHÃO, ENSINAREM A MESMA E ÚNICA DOUTRINA E GUARDAREM A UNIDADE DA FÉ. CRISTO ORA POR ISSO.

 

 

⁹ Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor.
¹⁰ Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós divisões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer.

1 Coríntios 1:9,10

 

¹¹ Já não estou no mundo, mas eles estão ainda no mundo; eu, porém, vou para junto de ti. Pai santo, guarda-os em teu nome, que me encarregaste de fazer conhecer, a fim de que sejam um como nós.

João 17: 11

 

CRISTO DIZ AOS SEUS DISCÍPULOS QUE AS CONTROVÉRSIAS, QUANDO NÃO SOLUCIONADAS DE FORMA PACÍFICA ENTRE SI, DEVERIAM SER LEVADAS PARA SEREM JULGADAS NA IGREJA, CUJO PARECER TERIA STATUS DE UMA DECISÃO VINCULANTE PARA OS FIÉIS, AUTORIDADE INFALÍVEL PARA LIGAR E DESLIGAR

 

15.“Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão.

16. Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas.

17. Se recusa ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano.

18.Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligar­des sobre a terra será também desligado no céu.”

Mateus 18: 15-18

 

AS CONTROVÉRSIAS RELATIVAS ÀS DOUTRINAS TAMBÉM DEVERIAM SER RESOLVIDAS NA IGREJA, SURGINDO ASSIM A FIGURA DOS CONCÍLIOS E SÍNODOS.  A ESCRITURA REGISTRA O ESPÍRITO SANTO INSPIRANDO A DECISÃO JUNTO COM OS ANCIÃOS E DISCÍPULOS, MEMBROS DO 1º CONCÍLIO EM ATOS

 

Congregaram-se, pois, os apóstolos e os anciãos para considerar este assunto.
⁷ E, havendo grande contenda, levantou-se Pedro e disse-lhes: Homens irmãos, bem sabeis que já há muito tempo Deus me elegeu dentre nós, para que os gentios ouvissem da minha boca a palavra do evangelho, e cressem.

[…]

¹² Então toda a multidão se calou e escutava a Barnabé e a Paulo, que contavam quão grandes sinais e prodígios Deus havia feito por meio deles entre os gentios.
¹³ E, havendo-se eles calado, tomou Tiago a palavra, dizendo: Homens irmãos, ouvi-me:
¹⁴ Simão relatou como primeiramente Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o seu nome.

[…]

²⁸ Na verdade pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…

Atos 15:6,7, 12 -14, 28

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A Infalibilidade dada a Homens

 

Mas a pergunta que surge diante de tais textos é a seguinte: Como Deus concede essa infalibilidade à Igreja?

 

Primeiro devemos saber que o carisma da infalibilidade não se trata de um dom fundamentalmente acessível aos homens por sua própria natureza ou condição. Quando o apóstolo Paulo escreveu as cartas às igrejas, ele naquele momento era infalível enquanto escrevia, pois Deus o dotou de uma participação na sua própria infalibilidade divina, de modo que ele pudesse instruir as Igrejas com as cartas que futuramente comporiam a Bíblia. O mesmo ocorreu com Davi, Moisés, os profetas e demais apóstolos. Por isso cremos que a Bíblia é inerrante: porque Deus concedeu uma participação em sua infalibilidade a homens para que eles a escrevessem. O fato de aquilo ter sido dado a eles em determinado momento e circunstância de suas vidas para um propósito específico, contudo, não significava que eles foram infalíveis por toda a vida e em tudo que fizessem. Deus em determinado momento, para determinado intuito, os inspirou para agirem e falarem de maneira inerrante para que assim a Igreja fosse encorajada e devidamente educada e edificada de forma sobrenatural por Deus. As pessoas não duvidam da Infalibilidade das Escrituras, todavia, esse argumento é basicamente o mesmo que há por trás da Infalibilidade da Igreja: Conforme os textos bíblicos acima, a Igreja deveria continuar a ensinar seus filhos após a morte dos apóstolos, e para isso ela deveria fornecer-lhes um parecer fiel e verdadeiro, não confuso ou incerto. Por isso, o Espírito Santo deveria continuar a inspirar-lhe, não para trazer uma nova revelação, mas para levar a compreender de forma perfeita e esclarecer mais profundamente aquela que foi anteriormente dada. Pense bem: se a Igreja for uma confusão, um amontoado de doutrinas misturadas que conduz à anarquia e ao caos teológico, como ela pode servir de instrumento para salvar as almas dos homens? Não é, portanto, do interesse de Deus que a igreja se divida em inúmeras verdades e credos privados e seja um tropeço para o mundo. Assim, ela seria uma testemunha confusa e errante na sociedade, sem estabilidade e credibilidade, pois não apresenta uma verdade objetiva, função que lhe é confiada segundo a própria escritura.

 

¹⁵ Todavia, se eu tardar, quero que saibas como deves portar-te na casa de Deus, que é a Igreja de Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade.

1 Timóteo 3:15

 

As palavras usadas por Paulo para definir a Igreja são στῦλος (stylos) e ἑδραίωμα (hedraiōma), respectivamente, pilar fundamento da verdade. Tais substantivos indicam uma base forte e um suporte fiel para a verdade, não algo vacilante e instável. É evidente que a verdade de Deus que é sustentada pela Igreja a mantém, contudo, ao mesmo tempo essa verdade é sustentada pela Igreja, e é justamente esse o motivo de a Igreja ser infalível. Porque Deus a preserva do erro para que ela seja testemunha da verdade. A interpretação da Escritura também, portanto, assim como a própria escritura e composição dela, dependem de uma orientação certa e infalível, para o bem das almas.

 

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A Infalibilidade do Papa

 

Se a Igreja é protegida pelo Espírito Santo de ensinar a seus filhos o erro, então o que acontece quando ela passa por disputas no seu próprio seio?

 

É aqui que nós chegamos ao ponto mais complexo da questão. E é conveniente que entendamos que todos os bispos do mundo, ordenados de maneira legítima e em comunhão, ao ensinar sobre questão de fé e moral reunidos em concílio e sob a incumbência da Igreja, estando de acordo uns com os outros sobre a doutrina, são protegidos pelo Espírito Santo de ensinar o erro. São, portanto, nessas situações específicas, infalíveis. Contudo, nem sempre os bispos concordam entre si. E este é justamente o cerne da questão e o que motiva a existência do Papado. Isso não é tão complicado de entender. Quando olhamos para o ordenamento jurídico brasileiro, para a estrutura do poder Judiciário, por exemplo, sabemos que o responsável pela decisão final e definitiva quando os juízes da vara não o faziam É O TRIBUNAL. Há os tribunais de segunda instância e há ainda os tribunais superiores, que são os órgãos chamados de convergência, como o STM (Superior Tribunal Militar), TST (Tribunal Superior do Trabalho) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Contudo, além deles, há os denominados órgãos de superposição, o STF e o STJ, cujas decisões se sobrepõem às decisões tomadas pelos órgãos da justiça inferior. E no nosso país é o Supremo Tribunal Federal (STF) que POSSUI O STATUS DE MAIOR PROEMINÊNCIA, sendo o guardião da legítima interpretação da Constituição Federal. É parecido (e eu não disse “igual”) com a Igreja. Mas óbvio que, historicamente, assim como o STF é convocado para questões específicas, o Papa e seu Magistério também sempre exerceram o poder das chaves em situações muito específicas. No primeiro milênio da Igreja, por exemplo, os patriarcas, arcebispos e outras autoridades eclesiásticas em geral solucionavam as controvérsias com sucesso, recebendo o apoio do Bispo de Roma e estando em comunhão com ele. Contudo, no caso de não ser possível, havia o Papado como garantia da manutenção da unidade na Igreja. O Papa Bento XVI chegou a mencionar essa questão da necessidade de uma decisão irrecorrível e definitiva quando os diversos poderes e autoridades dentro da Igreja não se entendiam:

 

Jornalista Peter Seewald – O papa é realmente “infalível” no sentido em que a mídia às vezes propaga? Um soberano absoluto, cujo pensamento e vontade são uma ordem?

 

Bento XVI – Isso está incorreto. O conceito de infalibilidade se desenvolveu no decorrer dos séculos. Ele surgiu face à questão de haver, em algum lugar, uma última instância que tomasse decisões. O Concílio Vaticano I, seguindo uma longa tradição que remete aos tempos dos primeiros cristãos, finalmente determinou: há uma decisão derradeira! Nem tudo fica em aberto. O papa, em determinadas circunstâncias e sob determinadas condições, pode tomar decisões vinculantes, através das quais fica claro o que é a fé da Igreja e o que não é. O que não quer dizer que o papa possa constantemente criar pronunciamentos “infalíveis”. Usualmente, o bispo de Roma age como qualquer outro bispo que professa a sua fé, que a anuncia, que é fiel à Igreja. Só quando se fazem presentes determinadas circunstâncias, quando a Tradição foi estabelecida e ele sabe que não está agindo arbitrariamente, é que o papa pode dizer: esta é a fé da Igreja – e negar isso não é a fé da Igreja. Neste sentido, o Concílio Vaticano I definiu a capacidade para a última palavra, para que a fé mantenha seu caráter vinculativo.

 

Papa Bento XVI, Luz do Mundo, ed. Ecclesiae, p. 16

 

Sra. Laura Bush, filha Barbara Bush e Francis Rooney, Embaixador dos EUA no Vaticano em 9 de fevereiro de 2006. Foto da Casa Branca por Shealah Craighead (Domínio Público – Wikimedia Commons)

 

É precisamente este o ponto que muitos ignoram. Como disse em seguida, “o papa pode ter opiniões privadas errôneas. Mas quando fala […] enquanto pastor supremo da Igreja, consciente de sua responsabilidade, então não diz mais uma coisa própria, algo que lhe ocorreu […]”, mas fala “sob a proteção do Senhor, e sabe que não conduzirá a Igreja ao erro”(Ibidem, p. 17). Isso decorre do fato de ele deter a primazia de Pedro e, portanto, ter o papel muito importante da manutenção da unidade da fé na Igreja, o que é algo que está enraizado na crença da Igreja há muito tempo:

 

¹⁵ Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou?
¹⁶ E Simão Pedro, respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.
¹⁷ E Jesus, respondendo, disse-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque to não revelou a carne e o sangue, mas meu Pai, que está nos céus.
¹⁸ Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela;
¹⁹ E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.

Mateus 16:15-19

 

Em razão da promessa de Cristo ter sido dirigida a Pedro após este ter sido o único entre seus irmãos a responder a pergunta de forma correta com respeito à identidade do Senhor, por ter sido ele guiado pelo Espírito, a Igreja entende que a missão especial de liderança proveniente da eleição do Espírito que concedeu a Cefas (pedra) a firmeza do testemunho fiel constitui a fonte de onde brota a infalibilidade que assim confirma os demais irmãos na fé. A ligação entre Pedro e a Igreja fundada em Roma durante a perseguição aos cristãos (leia aqui), tradicionalmente confirma essa preeminência e o Catecismo a menciona: “Cristo… colocou à frente Pedro, escolhido de entre eles (os demais apóstolos)” CIC 880. Santo Agostinho chega a declarar: “A sucessão de sacerdotes me mantém, começando desde a própria sé do Apóstolo Pedro, a quem o Senhor após sua ressurreição deu a responsabilidade de apascentar as suas ovelhas, até o presente episcopado” (Contra a Epístola dos Maniqueus 4, ano 397 d. C). Leia mais aqui. Veja o que diz o bispo sírio oriental Theodore Abu Qurrah, defensor do Sétimo Concílio no século VIII d.C.:

 

“Vocês deveriam entender que o cabeça dos apóstolos era São Pedro, aquele a quem Cristo disse: ‘Tu és a pedra; e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não a vencerão.’ Depois da sua ressurreição, ele também lhe disse três vezes, enquanto estava na praia do mar de Tiberíades: ‘Simão, você me ama? Alimente meus cordeiros, carneiros e ovelhas.’ Em outra passagem, ele lhe disse: ‘Simão, Satanás pedirá para vos peneirar como se faz com o trigo, e eu orei por ti, para que você não perca sua fé; mas tu, nessa hora, tenha compaixão de seus irmãos e fortaleça-os’. Você não vê que São Pedro é o fundamento da igreja, escolhido para pastoreá-la, que aqueles que creem em sua fé nunca perderão a fé, e que ele foi ordenado a ter compaixão de seus irmãos e fortalecê-los? Quanto às palavras de Cristo: “Roguei por ti, para que não perca a fé; mas tu, nessa hora, tenha compaixão de seus irmãos, e fortaleça-os”, não achamos que Ele se referisse ao próprio São Pedro. Mas ao invés disso, falou dos detentores da sede de São Pedro, isto é, Roma. Assim como quando disse aos apóstolos: “Estou sempre convosco, até ao fim dos tempos”, Ele não se referiu apenas aos próprios apóstolos, mas também àqueles que estariam encarregados dos seus assentos e dos seus rebanhos; da mesma forma, quando pronunciou as suas últimas palavras a São Pedro: “Tende compaixão, naquela hora, e fortalece os teus irmãos; e a sua fé não será perdida”, Ele quis dizer com isto os titulares do seu assento [os Papas]. Ainda outra indicação disso é o fato de que entre os apóstolos foi somente São Pedro quem perdeu a fé e negou a Cristo, algo que Cristo pode ter permitido que acontecesse com Pedro para que Ele pudesse assim nos ensinar que não foi à pessoa de Pedro a quem Ele se referia com tais palavras. Além disso, não temos conhecimento de nenhum apóstolo que tenha caído e precisasse de São Pedro para fortalecê-lo. Se alguém disser que Cristo queria dizer com estas palavras apenas o próprio São Pedro, essa pessoa faz com que falte à igreja alguém que a fortaleça após a morte de São Pedro. Como isso pôde acontecer, especialmente quando vemos toda a peneiração realizada contra a igreja que veio da parte de Satanás após a morte dos apóstolos? Tudo isso indica que Cristo não quis se referir [a ele] com essas palavras. Na verdade, todos sabem que os hereges atacaram a igreja somente após a morte dos apóstolos – Paulo de Samósata, Ário, Orígenes e outros. Se Ele quisesse se referir com tais palavras no Evangelho apenas a São Pedro, então depois dele a Igreja teria sido privada de conforto e não teria ninguém para livrá-la daqueles hereges, cujas heresias são verdadeiramente “as portas do Inferno”, as quais Cristo disse que não triunfariam sobre a igreja. Consequentemente, não há dúvida de que com essas palavras Ele queria dizer os detentores da sede de São Pedro, que continuamente fortaleceram seus irmãos e não deixarão de fazê-lo enquanto durar a presente era.”

 

C. Bacha. Un traite des Oeuvres Arabes de Theodore Abou-Kurra. Paris, 1905, 34 sq, qtd. em Butler e Collorafi, Keys Over the Christian World, p. 575-576

 

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Posso negar a decisão papal em

prol da minha interpretação?

 

Pode. Mas nesse caso você não é um católico. A decisão do Magistério é posterior ao debate interpretativo das Escrituras, quando o Clero já avaliou tanto a Bíblia quanto a Tradição. Então ele chegou a um veredito irrefutável com a ajuda do Espírito Santo (como vemos em Atos 15) e fazendo uso da razão. A Bíblia não é a única fonte a ser consultada, mas também o costume e a doutrina em voga no decorrer da História do Cristianismo (o que chamamos de Tradição), havendo a necessidade fundamental de preservar as mesmas práticas. Isso sempre num ambiente de disputa e debate. O Papa não toma a decisão sozinho, mas junto dele estão numerosos bispos versados em filosofia, ciências diversas, história da Igreja e Escritura Sagrada, doutores e estudiosos que consagraram suas vidas ao serviço da Igreja. É possível avaliar a disputa do Magistério assim, bem como também especular e opinar, todavia, se você é um leigo, dificilmente poderá mudar a decisão uma vez tomada. Isso ocorre também com as decisões dos tribunais superiores que mencionei acima e com o STF no Brasil. A diferença é que os cristãos possuem a promessa certa de que o Tribunal da Igreja não falhará, posto ser guiado pelo Espírito Santo. É seu dever, contudo, orar e buscar servir sua paróquia de maneira humilde e em santidade. Grandes santos fizeram muito servindo a Igreja local e dedicando sua vida ao progresso do reino com pequenas ações diárias. Sua atuação se tornou notória diante da população, e isso de alguma forma chegou ao Magistério e ao Papa e os influenciou. O Magistério e o Papado são como um tribunal de decisão definitiva. Isso inclusive nos demonstra o motivo de os cristãos não modificarem ou buscar reabrir “casos” e “julgados” do passado. Porque é crido que eles foram inspirados por Deus. O poder das chaves indica um poder que cessa controvérsias. Se alguns Papas e bispos fecharam a controvérsia em torno de um tema, não faz sentido reabrir o julgado do passado e invalidá-lo. Por isso a ideia envolve uma necessária continuidade doutrinária, que em geral é negada quando alguém sugere modificação ou mudança da interpretação anteriormente definida em algum concílio.

 

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O Sinédrio possuía Infalibilidade?

 

Alguns traçam o paralelo:

 

    1. Os escribas e os fariseus se sentam sobre a cadeira de Moisés. Ou seja, “ocuparam o lugar de intérpretes oficiais da lei de Moisés”.
    2. O Papa faz o mesmo ao se sentar na cadeira de São Pedro, que recebe a mordomia de Cristo para apascentar a Igreja.

 

Portanto, na Velha Aliança, concluem alguns, o Sinédrio era o Tribunal com autoridade vinculante e infalível. Bom, Jesus de fato validou a autoridade dos membros do Sinédrio, como vemos adiante:

 

1. Dirigindo-se, então, Jesus à multidão e aos seus discípulos, disse:

2.“Os escribas e os fariseus que se assentam na cadeira de Moisés.

3.Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem.

Mateus 23

 

Contudo… Vejamos mais do que disse Jesus sobre os escribas e fariseus, aqueles que se assentam na cadeira/cátedra de Moisés, para ensinar. Num primeiro momento, parece que seu ensino era correto, mas suas ações não. Os católicos também creem que um Papa pode errar ao opinar de forma privada, e até levar uma vida pouco virtuosa, sem que com isso se perca o carisma de Cristo. Mas, será mesmo que Jesus recomenda completamente o ensino dos escribas e fariseus? Creio que não julgou o ensino deles Infalível:

 

¹ Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo:
² Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? pois não lavam as mãos quando comem pão.
³ Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição?
⁴ Porque Deus ordenou, dizendo: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser ao pai ou à mãe, certamente morrerá.
⁵ Mas vós dizeis: Qualquer que disser ao pai ou à mãe: É oferta ao Senhor o que poderias aproveitar de mim; esse não precisa honrar nem a seu pai nem a sua mãe,
⁶ E assim invalidastes, pela vossa TRADIÇÃO, o MANDAMENTO de DEUS.
⁷ Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo:
⁸ Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim.
⁹ Mas, em VÃO me adoram, ENSINANDO DOUTRINAS QUE SÃO PRECEITOS DOS HOMENS.

Mateus 15:1-9

 

Sem isolar os primeiros versículos, se percebe facilmente que a palavra “tudo” em Mateus 23, não poderia ser entendida sem restrição, pois o próprio Cristo acusa os “escribas e fariseus” de ensinarem muitas coisas contrárias à própria lei de Moisés e de anulá-la por suas tradições (Mateus 15:1-6). Isso ocorre porque eles não possuíam o Espírito Consolador que foi dado à Igreja, e por isso constantemente se dividiam. Os saduceus acreditavam que não havia ressurreição, os fariseus sustentavam que havia; os primeiros negavam a agência dos anjos, os segundos a mantinham. O único intérprete Infalível das Escrituras Sagradas é o Espírito Santo de Deus, e Ele ainda não havia sido enviado pelo Filho (João 14: 16-17 e 26). É o Espírito Santo que concede aos cristãos a capacidade para tomarem uma decisão infalível ao se reunirem em concílio. E é Ele que desce sobre a Igreja em Pentecostes e auxilia todos os que o Pai trouxer à sua presença, guiando-os para a Unidade da Fé que é a Igreja Visível. De fato, devemos admitir que a Bíblia diz a verdade ao validar a Tradição oral que testificava na época apostólica acerca da assistência do Espírito no Julgamento de certas causas por parte do Sinédrio (Jo 11: 49-52):

 

49. Um deles, chamado Caifás, que era o sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: “Vós não entendeis nada!

50. Nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação”.

51.E ele não disse isso por si mesmo, mas, como era o sumo sacerdote daquele ano, profetizou que Jesus havia de morrer pela nação,*

52.e não somente pela nação, mas também para que fossem reconduzidos à unidade os filhos de Deus dispersos.

 

Contudo, dizer que o Espírito Santo de certa forma conduzia os líderes dos judeus a algumas verdades limitadamente na assembleia no Antigo Pacto, ao assentarem-se na cadeira de Moisés e julgarem o povo, não significa o mesmo que os cristãos sustentam atualmente acerca da infalibilidade eclesiástica e papal, no sentido estrito de ligar e desligar na terra e no céu, conforme Jesus prometeu. Na verdade, esse dom foi dado à Igreja. Havia sim algo similar, mas INFERIOR, não completo nem perfeito, já que o Espírito Santo não havia sido derramado plenamente ainda. Temos acesso a algo superior com o Novo Testamento, pois eles (os líderes dos judeus) não foram capazes de reconhecer o Messias, e embora muitos do povo tenham ido após ele, a elite sacerdotal caiu. Nós sabemos que o Corpo (a Igreja) é preservado do erro porque se trata do próprio Corpo de Cristo, mas o sinédrio possuía apenas a promessa disso se cumprindo no futuro em Israel. A agência e assistência do Espírito Santo que é o carisma que impede a queda da Igreja (“infalibilidade” é derivado de falir, que vem de “falência”, queda) inaugura algo completamente novo na História. Leia mais sobre o tema em POR QUE A IGREJA CATÓLICA DIZ QUE PEDRO É A ROCHA?

 

Estátua do Papa Silvestre II em Aurillac, na França.
Foto de DDP na Unsplash

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Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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