“CATÓLICO, MAS NÃO ROMANO”: Argumentos contra a Ideia de Adulteração Romana

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

O JARGÃO PREDILETO CONTRA ROMA É BEM FUNDAMENTADO?

 

Você com certeza já deve ter ouvido a expressão do título, seja de algum amigo anticatólico ou mesmo de uma pessoa bem intencionada: “católico não romano” – dizem. Muitos que fazem isso até costumam reduzir os católicos ao mero adjetivo “romanistas”, expressão pejorativa comum, reducionista e marcada pelo preconceito com a palavra “romana”, que acompanha o título da Igreja Católica Apostólica. Se você tiver interesse em ler mais sobre esse título, sugiro: O que é a Igreja Católica? e também Roma paganizou a Igreja? Qual a relação entre Roma e a Igreja Católica?”. De fato, não é difícil encontrar alguém ostentando a frase: “sou católico, mas nunca romano”. Isso porque acreditam piamente que Roma introduziu no Cristianismo ensinos pagãos provenientes de sua cultura. Isso teria resultado na tão alegada (por eles) paganização da Noiva de Cristo. Muitos até utilizam a palavra “Babilônia” para se referir à Igreja Católica por acreditarem nisso. Trata-se da suposta ADULTERAÇÃO ROMANA, difundida em muitas comunidades anticatólicas atualmente. Tentando situar quando a narrativa diz que o desvio aconteceu, em geral muitos vão datá-lo por volta de 313, ano do édito de Milão (quando Roma cessou a perseguição aos cristãos por ordem de Constantino). Considerando que não é sábio aceitar uma proposição sem prová-la, apontei alguns argumentos para quem está pensando em abraçar tal ideia. Ou mesmo àqueles que já aderiram a ela como uma verdade inquestionável, mas que desejam refletir sobre o caso. Talvez isso os desafie em suas crenças, o que é positivo.

 

1 – A IGREJA PRIMITIVA JÁ ACREDITAVA NAS CHAMADAS DOUTRINAS “ROMANISTAS” ANTES DE CONSTANTINO

 

O primeiro problema com essa argumentação é que ela deve necessariamente provar que houve uma mudança substancial na fé após a ascensão de Constantino. E acaba que ela falha miseravelmente neste quesito, sobretudo quando alguém se propõe a pesquisar de forma honesta acerca daquilo que os cristãos acreditavam antes de 313 d. C. Apesar de a quantidade de documentos ser menor que a dos anos de paz subsequentes, eles apresentam a Igreja, logo cedo, como uma comunidade que se orienta em concílios, em torno da Eucaristia, da autoridade dos bispos e que abomina qualquer noção de divisão. Além disso, é descrita como tendo uma estrutura bastante similar àquilo que vemos atualmente no Catolicismo, apesar de contar com menos recursos, e uma doutrina bem familiar. Suas doutrinas contêm grandes referências a penitências [havendo, inclusive, a chamada “Ordem dos Penitentes”], ênfase nos sacramentos, orações pelos mortos, confissão, obras de satisfação como o oferecimento de esmolas aos pobres, sucessão apostólica, unidade na comunhão com o bispo e outros pontos característicos do tal romanismo de hoje. Ou seja, antes da suposta adulteração acontecer! Como diria São John Henry Newman, “O cristianismo histórico não é protestante. Se alguma vez houve uma verdade segura, é esta, e o protestantismo já sentiu isso: se aprofundar na história é deixar de ser protestante”.  pode julgar que é um exagero aquilo que ele declara, mas a menos que se disponha a averiguar e estar aberto a entender a mentalidade de um cristão dos primeiros séculos, não perceberá quão profundo é o abismo que separa o protestantismo da igreja cristã primitiva. Sugiro o seguinte texto: Antes de 313: Como era a Igreja antes de Constantino?

 

2 – A IGREJA TERIA SOBREVIVIDO A MUITOS IMPERADORES CRUÉIS POR 300 ANOS SOB PERSEGUIÇÃO E TORTURA, MAS NÃO AGUENTOU O ROJÃO CONTRA CONSTANTINO?

 

Mesmo se ignorarmos o dado trazido acima sobre a igreja primitiva já manter essas doutrinas muito antes desse ano, isto é, quando Roma ainda a perseguia, ainda é desastroso para a Cristandade defender que essa adulteração foi tão precoce. Pois nos obriga a considerarmos o fato de que isso depõe contra a própria força da mensagem evangelística. Quando Jesus vê os setenta voltando de sua missão, profetiza a vitória do Evangelho sobre as nações pagãs e a queda do reino de satanás: “Eu via Satanás, como raio, cair do céu” (Lucas 10:18). Vejam que nem mesmo os maiores apologistas protestantes podem contrariar essa interpretação e o reformador João Calvino, por exemplo, chega a declarar:

 

De uma vez por todas, Cristo os conduziu (os discípulos) a toda a classe de homens; pois ele ordenou que seu Evangelho fosse pregado com o propósito de destruir o reino de Satanás. Portanto, enquanto os discípulos repousavam unicamente naquela demonstração que haviam obtido por experiência, Cristo os lembra de que o poder e a eficácia de sua doutrina se estendem mais além, e que sua tendência é extirpar a tirania que Satanás exerce sobre toda a raça humana. Agora verificamos o significado das palavras. Quando Cristo ordenou que seu Evangelho fosse pregado, ele não tentou de forma alguma levantar um tópico de resultado duvidoso, mas previu a ruína de Satanás que estava próxima […] Devemos também prestar atenção à comparação que ele faz, de que o trovão do Evangelho faz Satanás cair como um raio; pois expressa o poder divino e surpreendente da doutrina, que derruba, de maneira tão repentina e violenta, o príncipe do mundo armado com forças tão abundantes. Expressa também a condição miserável dos homens, em cujas cabeças caem os dardos de Satanás, que governa os ares e mantém o mundo em sujeição sob seus pés, até que Cristo apareça como um Libertador

(CALVINO, João. Comentário de Lucas)

 

Se havia essa certeza de que aquele empreendimento iniciado ali pelos apóstolos triunfaria e se estenderia às nações além do mar, por que achar que a realidade da vitória dos filhos de Deus só se manteria por três séculos? Tempo este insuficiente para qualquer vitória ou mesmo para a difusão do Cristianismo até os confins da terra. Então como crer sinceramente nas palavras de Cristo e ao mesmo tempo pensar que satanás triunfaria tão rápido, paganizando a Igreja por meio de Constantino? (se admitirmos a A.R. – Adulteração Romana) O ponto é simples: A Cristandade vence a morte e a perseguição, mas não a política dos imperadores? Não foi isso que Cristo disse. Ele declarou: “Eu edificarei…. e as portas do inferno não prevalecerão”. Não importa que tipo de artimanha o inferno tenha preparado para vir contra os filhos da Igreja, seja fogo e martírio, ou mesmo as disputas políticas imperiais e a comodidade humana que a paz trouxe aos cristãos após aquele primeiro período conturbado. Não importa. Não há uma arma capaz de triunfar sobre a Igreja ou transtornar o reino de Cristo, uma vez que Deus está conosco. E, além disso, como explicar que a visão que Cristo teve de Satanás caindo derrotado diante de sua Igreja nascente não se cumpriu? E quanto ao que o apóstolo diz: “O Deus da paz em breve não tardará a esmagar Satanás debaixo dos vossos pés” (Rm 16:20)? Ele não o fez?

 

3 – A TESE DA ROMANIZAÇÃO DESTRÓI O CRISTIANISMO EM SUA BASE

 

Essa tese também mina a credibilidade cristã! Porque aqueles que a defendem devem considerar o seguinte: a Trindade e outras doutrinas importantes foram estabelecidas após 313, e isso implica dizer que se a Igreja se paganizou a partir desse período, há fundamento nas reivindicações das testemunhas de Jeová ao declarar que a Trindade é uma invenção pagã, coisa que nenhum protestante está disposto a fazer. Como foi dito, muitas doutrinas centrais e bem aceitas hoje foram estabelecidas após Constantino, o que torna a fé cristã como um todo completamente insustentável, se isso tudo é verdade!  Ela está maculada desde a fonte, gerando um problema seriíssimo. Se a fundação doutrinária do Cristianismo foi lançada por pagãos travestidos de cristãos, que adoravam demônios chamando-os de santos, tudo é passível de suspeita, e não temos qualquer base sólida para considerar o Cristianismo muito melhor do que qualquer outra religião. Ou mesmo verdadeiro. Pense no grande número de religiões consideradas falsas pelo Cristianismo, e, todavia, elas possuem uma doutrina objetiva mais confiável, se considerarmos a A.R. um fato, e os deuses delas foram mais capazes de fazer aquilo que o Deus dos cristãos não foi, isto é, de preservar o testemunho de seus oráculos no decorrer da história. A religião hindu tem 4000 anos! Mas qual das doutrinas cristãs formuladas nos seus 2000 não é uma adulteração? A própria assertiva: “Jesus é Deus” é completamente discutível, se considerarmos que quem a formulou foram politeístas membros de uma seita romana. E a Bíblia também está sob suspeita, pois foi compilada por pagãos.

 

Afresco do CONCÍLIO DE NICEIA no Salão Sistina do Vaticano; Wikimedia Commons
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Os protestantes tentam achar uma saída para o problema que eles mesmos criaram a partir do sola scriptura, mas tudo que conseguem é criar uma confusão ainda maior. De fato, essa é a causa da divisão no seio protestante: Quando se passa a defender essa ideia de corrupção degenerada da Igreja tão precoce, logo nos primeiros séculos da era cristã, aqueles que a seguirem são obrigados a identificar em que momento a Igreja estava sendo guiada pelo Espírito de Deus e em qual momento era o diabo quem a comandava. É por isso que vemos luteranos dizendo que foi Deus quem inspirou os bispos a condenar a iconoclastia bizantina, enquanto calvinistas dizem ter sido o diabo. E então gera-se toda espécie de denominação nos séculos seguintes tentando lançar de novo os fundamentos da Cristandade, como se fosse possível rebobinar tudo dali.

 

4 – ROMA TEVE POUCO TEMPO PARA PAGANIZAR A CRISTANDADE

 

Pela falta de fé na obra que Deus realizou ao fundar a Igreja, muitos sustentam essa ideia da paganização. Isso já é problemático por si só, em razão de tudo que citei acima, porém fica ainda pior, à medida que analisamos o seguinte: considerando que Roma caiu em 476 sob o poder dos bárbaros, isso implica dizer que o único tempo que Roma teve para paganizar ou “romanizar” a Cristandade foi o período entre 313 e 476: Ou seja, menos de 200 anos! Você vê como aquele seu amigo anticatólico que te chama de “romanista” ficaria em apuros se ele fizesse as contas? A Igreja aguentou ferro e fogo por dois séculos, mas não suportou nem duzentos anos contra a política de Roma, posto que o império contou com apenas 163 anos para destruir o Cristianismo por inteiro e substituí-lo por um culto pagão de demônios. São somente duas gerações! Acho que muita coisa pode acontecer nesse intervalo, mas será que uma religião inteira seria subvertida assim? Tão facilmente? E sem o menor alarde dos próprios fiéis, que cresceram ouvindo as histórias, de apenas algum tempo antes, sobre gloriosos mártires degolados e devorados por feras só por não negar a fé? Acho que nenhuma religião sobreviveu tão pouco tempo quanto o Cristianismo, se aqueles que sustentam tal ideia estão corretos. Seria como se os líderes que fundaram as denominações protestantes, algumas delas com pelo menos 500 anos de existência, tivessem tido mais sucesso em seu empreendimento do que o próprio Senhor Jesus no seu! E Ele é Deus. Que tragédia!

 

CONCLUSÃO

 

Espero mesmo que esse texto tenha instigado você a uma reflexão crítica acerca da história da Igreja e daquilo que suas crenças acerca dela podem implicar. Desejo o máximo de zelo em seus estudos teológicos e sabedoria no momento de julgar aquilo que você ouve. Devemos sempre ponderar, seriamente, sobre os dados que nos são trazidos no tocante à fé, bem também sobre aquilo que as pessoas espalham por aí como verdade absoluta. Que Deus os abençoe ricamente.

 

Foto de iam_os na Unsplash

 

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Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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