Recentemente, vi uma postagem de um rapaz que se dizia impressionado com a estranheza do catolicismo. Ele apresentava sua crítica ao comentar a foto da exposição do corpo de Bento XVI aos fiéis na Basílica de São Pedro. Resolvi escrever sobre isso e elencar outras excentricidades do catolicismo e o motivo para tal.
A IGREJA ANUNCIA A MORTE NO SACRIFÍCIO EUCARÍSTICO
Na Santa Missa, quando o Sacrifício (A Eucaristia) é consagrado – como diz São Paulo: “anunciando a morte até que [Ele] venha” (1 Coríntios 11:26), aquilo já nos dá uma dica do quão estranha é nossa fé. Isso constitui mais uma das incompreensões da fé cristã, por parte do mundo incrédulo. Mas se alguém deseja alcançar a Vida, o caminho é este. Assim, os cristãos anunciam a morte ao tomarem e ao se tornarem parte do Corpo do Senhor misticamente no partir do pão [hóstia consagrada] e ao serem participantes em seus sofrimentos diariamente, levando a sua cruz no mundo. Até que o reino do Seu amor se materialize no nosso mundo presente, a morte [do Senhor] deve ser anunciada.

Foto de Josh Applegate na Unsplash
A MORTE DO SENHOR [E A NOSSA] É ANUNCIADA PARA RECEBIMENTO DA VIDA
A morte, de fato, é parte essencial da fé cristã.
Não digo isso somente pelos fatos citados acima, de que o símbolo cristão maior é um homem morto pregado no madeiro, ou o Sacrifício da Missa, mas pela própria fé cristã que se delineia na história com essa ênfase a todo momento. Além de tudo isso, os cristãos assustavam os pagãos com a sua entrega destemida para “completar o que precisava morrer para Cristo” (1 Co 4: 10-11 e Cl 1: 24) no martírio. Lembram o que falei acima sobre sermos Corpo de Cristo, um corpo ensaguentado que compartilha de suas feridas? Pois é… Por que motivo a Cristandade não temeria a morte? Porque apregoa a derrota da morte frente à Vida. Então alguém dirá: “Mas você disse que a ressurreição não era a ênfase!”. A resposta é a mesma que já dei anteriormente: “Não há ressurreição sem morte” e por causa de Jesus a morte não pode ser mais um tabu. Ela permanece sendo o percurso necessário» “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto” (João 12: 24)…
Mas quem pode desafiar mais a morte do que aquele que crê que ela foi vencida?
Quem aqui nunca foi a uma Missa? A menção dos falecidos é feita logo no princípio, para que a Igreja no mundo tenha ciência de que a esperança não cessa com a morte e que não não estamos sozinhos. O padre ora e o Sacrifício é realizado em nome dos mortos também. E isso ocorre desde os primeiros séculos de Cristianismo: os fiéis são convocados e o sacerdote cita os nomes dos fiéis defuntos da Igreja para que esta ore por suas almas. No próprio Sacrifício, essas almas são nomeadas, como parte da Igreja do Senhor, ainda que ausentes da terra. Assim, o Sacrifício, ao ser oferecido por todos, o é também em seu nome, de modo a servir-lhes para a salvação também, pois somos todos um só corpo.

Pelo fato de fazerem parte do Corpo de Cristo, a Igreja, tais pessoas, mesmo já tendo partido desse mundo e deixado o seu próprio corpo, continuam vivas na presença de Deus e elas recebem a Vida Eterna do Corpo ofertado em favor delas, isto é, o Corpo de Cristo entregue por todos aqueles que são os membros de Sua carne, a Igreja. E é por isso que temos a certeza de que eles não deixaram de existir após a sua morte. Baseados nessa doutrina, que é a Doutrina da Comunhão dos Santos em torno de Cristo e Nele, os cristãos compreendem a si mesmos como um só corpo, e tal unidade não pode ser rompida nem mesmo com a morte. Por isso os fiéis continuam pedindo por misericórdia a Deus em favor das almas de seus irmãos, como Santo Agostinho declara acima. Essa ideia de vitória sobre a morte é evidenciada, inclusive, em outra dutrina: A Intercessão dos Santos. As pessoas falecidas que buscaram viver vidas santas cuja fidelidade a Deus se destacou, devem ser consideradas também no Sacrifício, mas de maneira a pedirmos sua intercessão. Veja essa diferença sendo destacada novamente pelo Doutor da Graça:
“Existe uma disciplina eclesiástica, como sabem os fiéis, quando os nomes dos mártires são lidos em voz alta naquele local do altar de Deus, onde não se faz oração por eles. A oração, no entanto, é oferecida por outros mortos que são lembrados. É errado orar por um mártir, a cujas orações nós mesmos devemos ser recomendados”.
Agostinho, Sermões 159:1, ano 411 d.C.
Ou seja, não devemos orar por um mártir (pessoa cuja devoção e santidade se destacaram no mundo), segundo Santo Agostinho, mas é ele quem deve orar por nós e nos recomendar a Deus! Os santos nos recomendam a Deus com suas petições de intercessão. Como espíritos vivos no Senhor para sempre, eles agora estão no paraíso, porquanto morreram pela Justiça, Amor e Verdade do Evangelho, mas não estão, por isso, separados de nós, já que somos todos unidos num só Corpo. E assim, a vida de quem crê fielmente não conhece um fim com a morte, uma vez que seu amor é mais forte do que ela. E dessa forma, mesmo a morte sendo parte da fé cristã, ela não é vista como um mal em si mesmo, ou como tendo poder sobre os fiéis, mas como uma realidade vencida e superada que consiste num meio de nos unirmos a Deus para sempre. Veja a menção da intercessão da Virgem Maria nas anáforas da Liturgia Egípcia de São Basílio:
Visto que, ó Mestre, é um mandamento de Vosso Filho Unigênito que participemos da comemoração de vossos santos, permita-se lembrar, Senhor, daqueles de nossos pais que agradaram a Vós desde a eternidade: patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, confessores, pregadores, evangelistas e todos os justos aperfeiçoados na fé; especialmente em todos os tempos a santa e gloriosa Maria, Mãe de Deus; e por meio das orações dela tem misericórdia de todos nós, e salva-nos através do teu santo nome que foi invocado sobre nós. Lembre-se também de todos os sacerdotes que já morreram e de todos os leigos; e conceda-lhes descanso no seio de Abraão, Isaque e Jacó, em pastos verdejantes, por águas de descanso, em um lugar de onde fugiram a dor, a tristeza e o suspiro.
(ao diácono) Leia os nomes. (O diácono lê as tábuas.)
Bispo: Dá-lhes descanso na vossa presença; conservai-nos na vossa fé a nós que aqui vivemos, guiai-nos ao vosso reino, e dai-nos a vossa paz em todos os momentos; através de Jesus Cristo e do Espírito Santo. O Pai no Filho, o Filho no Pai com o Espírito Santo, na vossa santa, una, católica e apostólica Igreja.
Prayers of the Eucharist: Early and Reformed, Anáforas de São Basílio, p. 72
Você pode ler mais sobre a Eucaristia nas primeiras comunidas cristãs em Como era a Santa Comunhão na Igreja Primitiva?
OS OSSOS DOS SANTOS NAS CATACUMBAS
O rapaz que falou da exposição do corpo do Papa Bento XVI ficaria abismado com a teologia do corpo na Igreja. Na verdade, se ele lesse O Cuidado Devido aos Mortos de Santo Agostinho, teria uma visão mais aprofundada. Esse modo peculiar de ver a morte, que beira a “loucura” para muitos, faz com que os cristãos não somente vejam beleza na morbidez de um crucifixo, que é basicamente um homem seminu flagelado, morto e pregado numa cruz, mas também lhes confere caridade na hora de tratar do corpo humano. A maior manifestação da salvação para os cristãos se deu na ENCARNAÇÃO, isto é, quando DEUS HABITOU CORPORALMENTE ENTRE NÓS, então o corpo é parte importante para nós. No passado, os fiéis cobriam as relíquias de homens santos, isto é, seus ossos e pertences, com ouro e pedras preciosas, como forma de homenagem e honra. Com isso visavam a representar através da matéria a riqueza espiritual com a qual os mártires se encontravam agora revestidos no céu. Parece um gesto pequeno, mas nas condições em que estavam as primeiras comunidades cristãs, perseguidas e martirizadas dia após dia, tudo aquilo só fazia do ato uma grande prova de fé. A entrega de presentes para cobrir o corpo de um irmão querido era feita por pessoas humildes, mas que tinham forte fé e respeito. À medida que a Igreja foi crescendo, mais numerosos eram os devotos que iam até as relíquias em visitas e peregrinações. Eles assim faziam por crerem firmemente na Vida Eterna. A morte não representava o fim da existência de um homem fiel, e por isso, segundo parecia, os cristãos sempre trataram da morte de uma forma meio zombeteira: eis aí a raiz de sua “loucura”. Eles consideravam os mortos tão vivos que estavam certos de que continuariam a orar pelo mundo inteiro. Sobre esse zelo e veneração às relíquias, veja o trecho de uma carta ~ 155- 160:
E assim, posteriormente, pegamos os seus ossos, que são mais valiosos que pedras preciosas e mais finos que o ouro refinado, e os colocamos em um lugar adequado; onde o Senhor nos permitirá reunirmos-nos, segundo for possível, com alegria e regozijo, e comemorarmos o aniversário do seu martírio para celebrar aqueles que já lutaram na batalha, bem como o treino e a preparação daqueles que o farão daqui em diante.
(O MARTÍRIO DE POLICARPO, ano 155- 160).
2. […] “Finalmente, também tome nota dos dias em que eles partem, para que possamos celebrar sua comemoração entre os memoriais dos mártires, embora Tertulo, nosso irmão mais fiel e devotado, que, além da outra solicitude e cuidado que ele mostra aos irmãos em todo o serviço de trabalho, não está em falta além disso em qualquer cuidado com respeito aos seus corpos, tenha escrito, e escreve, além de me informa os dias em que nossos abençoados irmãos na prisão ultrapassam o portão de um morte gloriosa em direção à sua imortalidade; e aqui são celebrados por nós oblações e sacrifícios para suas comemorações, coisas que, com a proteção do Senhor, em breve celebraremos com você.”
(CIPRIANO DE CARTAGO, EPÍSTOLA 36, ano 256)
Exorto-vos, bem-aventurados irmãos, que só o amor seja considerado em que devemos permanecer, de acordo com a voz do Apóstolo João, cujas relíquias veneramos nesta cidade.
(CARTA DO PAPA CELESTINO, CONCÍLIO DE ÉFESO, ano 431)
Os ossos dos santos eram mantidos em locais ocultos como catacumbas, mas, posteriormente, foram sendo transportados para basílicas e catedrais quando o Cristianismo passou a ser tolerado como religião. A celebração ou veneração da memória dos santos era realizada no aniversário de sua morte. Quando, por volta do sec. IV, igrejas e capelas foram construídas com maior liberdade, e as relíquias, que já eram parte da vida cristã, eram usadas nas edificações sacras: as igrejas eram construídas sobre os restos mortais dos mártires, e algumas possuíam partes de seus ossos guardados em altares ou em lugares específicos do estabelecimento. Isso acontecia com a finalidade daquele santo se tornar um intercessor (alguém que ora) para aquela comunidade, pedindo pelos cristãos diante de Deus nos céus.
CONCLUSÃO
Como você deve ter percebido, a morte é parte importante da fé cristã desde o princípio. Não devemos estranhar, portanto, se alguém fizer algum comentário como o do rapaz que citei. De fato, a Cristandade PREGA O TRIUNFO SOBRE A MORTE, nascendo com a morte de Deus-Homem e sendo por ela batizada. Mas essa fé cristã que se firma na morte e no sangue de Cristo e dos mártires não tem sua afirmação por causa do próprio poder e reinado da morte, tampouco trata-se de uma fé mórbida nos mistérios ocultos desse destino final da natureza – uma fé na morte, propriamente dita. Não… mas trata-se, antes, de uma fé excessiva na vida. Isso ocorre justamente porque tal vida nasce da morte, não podendo mais ser vencida por ela por conta disso. Ou seja, é uma vida imortal. A vida comum é um vapor que se esvai, mas a vida imortal, que nasce da morte, é a verdadeira vida. Foi isso que inspirou atitudes tão excêntricas nos fiéis, levando-os a ver a morte como um inimigo vencido. Mesmo cercado de perigos, diariamente assistindo a matança de irmãos e tendo a vida em risco, os cristãos sempre creram que as cadeias da morte se dilaceraram frente à morte de Cristo, vitorioso sobre ela, o último dos inimigos, e isso por meio da cruz:
“Onde está, ó morte, a tua vitória?”
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