Na década de 70, contrariando o que foi determinado pelo Código de direito canônico de 1917, que estabelecia a obrigatoriedade do uso do véu para mulheres, bem como também sua separação dos homens durante a Missa, um acórdão da Congregação para a Doutrina da Fé no documento Inter Insigniores, afirmou que o véu se trata de uma “ordenança de prática disciplinar menor” e “não tem valor normativo”. A partir de então, ele passou a ser considerado uma peça sem caráter de obrigatoriedade, o que fez com que praticamente caísse em desuso por parte de grande número de fiéis. Em razão disso, alguns questionam se a Igreja atualmente desestimula o uso do véu com isso. Por não ser definido como uma questão de doutrina moral, mas somente um sinal que aponta para uma doutrina moral, isto é, a reverência e a submissão, seria essa tradição desvalorizada diante da modernidade que teria entrado na Igreja? Eu acredito que não. O véu ainda é um costume piedoso por ser uma peça que evoca modéstia, decência e temor. E embora a Igreja o admita como cultural, seu significado ainda possui caráter moral e, portanto, perpétuo. Há pelo menos três princípios destacados pela manutenção dessa tradição:
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Reverência diante de Deus: O véu é um sinal visível de reverência, submissão e respeito diante da santidade de Deus e ordem estabelecida por Ele. Em seu culto sagrado, se destaca pela devoção aos mistérios santos que se dão no sacrifício da Missa, a Eucaristia; e no lar e na sociedade se destaca pela reverência aos deveres e funções que Deus ordenou para cada um, seja na submissão ao marido e à Igreja, seja ao Estado (no cumprimento da lei);
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Sacralidade: O véu é marca do sagrado, pois cobre o que deve ser escondido por seu grande valor. Toda mulher é imagem da Grande Mãe Igreja, que gera Cristo e os Filhos de Deus (seu corpo) para o mundo, sendo a Virgem Maria a personificação perfeita desse símbolo. Ao encher a face da terra com sua fecundidade, a mulher mostra seu lado sagrado, posto que participa da obra da vida que vem de Deus, sendo dentro dela que a existência humana se inicia. Assim o véu nos convida a nos separar da corrupção do mundo;
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Discrição: O véu é uma peça que envolve segredo e mistério. A mulher é assim envolvida no oculto plano de Deus de dar vida ao mundo. Sendo um tesouro escondido, deve ser guardada e protegida como um misterioso dom e uma fonte em jardim fechado. Ela estimula a sabedoria e a prudência.
O VÉU DE SANTA VERÔNICA
A pequena história de Santa Verônica, a mulher que teria limpado o rosto ensanguentado de Jesus, ficando este marcado em seu véu, demonstra bem isso. Um acontecimento tão pequeno, mas que teve um significado. O véu é o símbolo da marca da cruz para toda mulher, pois a convida a renunciar a si mesma e segui-lo, assumindo um compromisso.

Santa Verônica segurando o Véu – El Greco via Wikimedia Commons (Domínio Público)
Este é o chamado para ser “separado” do mundo, isto é, santo. Por isso o véu serve para cobrir. Quando Jesus morreu na cruz, o véu do Templo se rasgou, indicando que a separação entre Deus e os homens se desfez (Mateus 27:51). A relação entre Deus e seu povo eleito e sem mácula, santificado pela entrega do Filho, é retomada em figura no matrimônio. Quando um marido escolhe sua esposa, ele a separa das demais. É óbvio que o mesmo ocorre com mulheres religiosas, cujo marido é diretamente Cristo, no serviço eclesiástico. Tal marido não é um ícone ou figura de Cristo que a mulher casada tem na pessoa do marido no casamento comum, mas o próprio Deus que é servido na vida religiosa. Os solteiros não religiosos também devem se ver dessa forma, ainda que não sirvam à igreja institucional de forma oficial como padres e freiras, ou mesmo quando não recebem o dom do sacramento matrimonial para gerar filhos. Ainda assim, eles produzem filhos de outra natureza, que são os frutos de sua vida piedosa, naquilo que Deus lhes confiou para cumprir seu chamado na comunidade. O fato é que toda a humanidade é convocada a ser “separada” do resto da criação e do pecado para ser esposa de seu Criador. Essa vocação é representada de maneira muito explícita no casamento humano, mas toda a humanidade é vista na figura da mulher que gera filhos. Por isso o povo de Deus, a Igreja, é uma figura feminina na Bíblia. Sendo assim, é como se, estampado no véu de cada uma das filhas de Deus, houvesse ali o rosto de Jesus cheio de sangue e feridas, tal como no véu de Santa Verônica, indicando que pertencemos a Ele. Este é o sinal da submissão de toda a raça humana ao seu Esposo Criador e de sua eleição eterna:
Sujeitai-vos uns aos outros no temor de Cristo. As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, […] para santificá-la, purificando-a pela água do batismo com a palavra, para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim os maridos devem amar as suas mulheres, como a seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo.
Efésios 5: 21-28
O apóstolo Paulo chega a usar o livro de Enoque e traz o argumento do rompimento e da quebra da lei na carta aos coríntios, demonstrando como uma rebelião contra a ordem estabelecida resulta em pecado e destruição. A menção é de anjos deixando sua habitação natural, o que indica o caráter de pertencimento e sujeição à autoridade que o véu também suscita, sendo “sinal de poderio”, pois é a sujeição à ordem divina fundamental que garante a segurança da criação. Isso parece despótico, alguns dirão. Todavia, a verdade é que a autoridade está ligada a proteção e defesa frente aos inimigos da lei e da ordem vigente:
Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos anjos. Todavia, nem o homem é sem a mulher, nem a mulher sem o homem, no Senhor. Porque, como a mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher, mas tudo vem de Deus.
1 Coríntios 11:10-12
Em um mundo onde o pecado existe e o mal tem sua existência e atuação reais, onde as mulheres erem quase sempre o elo fraco e sujeito a inseguras condições e agravos, podendo ser vítimas de abuso, violência e inclusive estupros, o véu era quase um muro de segurança máxima e um sinal que servia para indicar ao usurpador que uma mulher era guardada por alguém. Todas essas coisas trazem um profundo e bíblico entendimento dessa peça que é o véu, comum em inúmeras culturas, sinal de nobreza em muitas delas.
O SINAL DA RENDIÇÃO: O VÉU É UM CHAMADO, NÃO UMA COROA
Ainda assim, há quem diga que usar véu na modernidade, mesmo na esfera religiosa, não é atrativo nem conveniente, porque embora ele já tenha sido banido da sociedade secular em razão de a situação da mulher ter mudado e melhorado, deixando a agravada insegurança feminina no passado (pelo menos em parte), há o fato de a ideia de submissão ser um conceito desprezível no Ocidente. E também nenhuma mulher se sentiria à altura daquilo que a peça evoca, já que o véu aponta para todas essas questões existenciais complexas, além de impor sobre a mulher a figura da Virgem Maria e da Igreja, Noiva de Cristo, padrões altíssimos. Todavia, como foi dito acima, toda mulher naturalmente já é um ícone e uma figura dessas duas, e o véu só é um chamado a acentuar ainda mais essa imagem (que naturalmente existe) nas mulheres, assumindo essa posição para qual Deus as chama. Não é como uma indicação de que já se chegou lá, ou de que já se alcançou o padrão, mas um sinal de abertura, rendição, respeito, temor e humildade frente à jornada. É importante pensar da seguinte forma: no passado, todas as mulheres só poderiam entrar na Igreja usando véu, independentemente se elas tinham sido virtuosas ou não, pois o véu indica temor a Deus, que é o começo da sabedoria. Isso evidencia que ele apenas simboliza um chamado, não necessariamente uma coroa. E esse chamado cristão é o mesmo ainda hoje para toda mulher. Quanto à submissão, embora essa ideia tenha sido banida da sociedade ocidental, o único e último lugar onde ela ainda é considerada um valor é a Igreja. E isso está na Bíblia como mandamento.
O EVANGELHO SEM BARREIRAS E A RENDIÇÃO LIVRE E VOLUNTÁRIA
Se, por um lado, o valor do véu não pode ser aclamado acima do valor da pessoa e do ser humano que o usa, estimulando uma situação de intimidação, julgamento e suscitando escrúpulos nas mulheres, o que desestimula o uso da peça por parte das jovens diante de comentários como “quer ser santa demais”, há aqueles que questionam a Igreja por ter reduzido a utilização da cobertura ao status de facultativa, duvidando de sua autoridade por ter deixado às mulheres a liberdade de fazer uso dele ou não. E como foi dito acima, os princípios que o véu evoca ainda estão em vigor (submissão, reverência, discrição, santidade) e são ordenanças divinas! Se o primeiro comportamento acusa as mulheres e as coloca sob um tribunal constante do véu, levando-as a achar tal objeto sacro demais para elas, de modo que não lhes é permitido tocá-lo sem se sentirem sujas, o comportamento último faz dele um tipo de mandamento de caráter moral e muito restrito. “Essa prática milenar remonta às origens da Igreja!” – dizem. “Não deveria ser banida”. Todavia, a Igreja Católica o tratou como ordenança disciplinar menor. A Igreja errou? Devemos entender assim? Afinal, o que moveu o Magistério em sua decisão de tornar facultativo o véu?
Tratarei de apresentar possíveis razões para o que teria estimulado o posicionamento católico atual:
A Inclusão
É possível que um dos motivos seja um princípio que tem regido as normas da Igreja ultimamente, que busca tornar a Missa mais inclusiva às pessoas. Isso decorre da ideia de que o evangelho deve ser acessível a todos, tal como na época de Jesus em que as pessoas que vinham ouvi-lo nos montes e praças não possuíam nenhum critério imposto a elas. Parece que, ao considerar revogada a obrigatoriedade de cobertura às mulheres, o Magistério tinha em mente remover uma barreira. Se isso teve resultados práticos positivos ou negativos, só será possível atestar a longo prazo (já que Inter Insigniores tem 50 anos e é por isso recente), e não vou emitir opinião sobre esse ponto, mas apenas expor o que parece ter sido a ideia, que é tornar a Missa o mais acessível possível a todos do povo. Obs. A comunhão Eucarística NÃO é objeto de deliberação desse princípio e envolve a necessidade de conversão e confissão. O fato de as mulheres não serem mais obrigadas a usar um véu para entrar em uma paróquia aparentemente torna mais fácil sua participação na escuta da Palavra, mas o recebimento do Corpo de Cristo é mais restrito. Nas palavras do Papa Francisco com respeito à Igreja e seu papel de sacramento universal para salvação dos povos, o apelo é: “Por favor, não transformem a Igreja numa alfândega – aqui entram os justos, os que estão em ordem, os que estão bem casados… todos os outros lá fora. A Igreja não é isto. Justos e pecadores, bons e maus, todos, todos, todos.” (Viagem Apostólica a Portugal: Vésperas com os Bispos, os Sacerdotes, os Diáconos, os Consagrados, as Consagradas, os Seminaristas e os Agentes da Pastoral, 2 de agosto de 2023).
A Livre Consciência
Uma vez que o véu aponta para uma doutrina moral específica, isto é, a submissão, seu uso como manifestação externa de condescendência com esse valor se torna um ponto a ser decidido pela própria mulher. Nenhuma mulher é submissa por força da imposição, seja do seu marido ou da Igreja, mas só por amor ela se rende. Não devemos esquecer que o véu, embora não seja ele mesmo uma questão de fé e a ordenança moral em si, ele continua sendo o símbolo que aponta para essa doutrina moral, e envolve uma questão de fé e moral bíblica. O ponto é: o símbolo (forma) deve ser obrigatório quando a própria submissão (substância para a qual ele aponta), isto é, o preceito moral, não é obrigatório? Não há fiscais da submissão alheia nas Missas. Ninguém se coloca à porta nas ruas para ver qual das mulheres é submissa ao esposo, qual é virtuosa e temente a Deus, de maneira a seguir seus deveres com a família. Se isso não ocorre (e nem deve!) com a conduta das mulheres, por que então deveria ocorrer com a peça de roupa que simboliza essa conduta? Logo, às mulheres o véu é uma escolha, tanto quanto o caminho que ele sugere e indica. A Igreja parece ter percebido isso, e viu a necessidade de uma aceitação voluntária por parte das mulheres, uma abertura à feminilidade bíblica, e não impôs mais esse costume como obrigação para se entrar nas igrejas.
CONCLUSÃO
Segundo a CDF, o simples uso do véu sem a observância do mandamento moral se enquadra nas disciplinas de prática exterior, inspiradas “pelos usos de tempo“, isto é, por fatores culturais. Pois a prática, em si, possui seu valor simbólico, e a maioria das culturas de fato veem no véu esse mesmo sentido, uma vez que aponta para um mandamento real e perpétuo da lei de Deus, mas sem a mudança do comportamento, que é o real significado do véu, não constitui preceito dogmático a simples manutenção do uso por si mesma. Foi o que a Igreja decidiu.
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