POR QUE EXIBIR O CRUCIFIXO?

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

[…] a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

1 Coríntios 1:25

 

O Cristianismo é considerado loucura para o mundo, diz o apóstolo, e fraqueza para os homens. Neste artigo, colocaremos em análise um elemento da Cristandade que pode ser elencado como mais uma demonstração clara dessa “loucura”: o crucifixo. O objeto sacro recebeu ares de polêmica entre alguns grupos que surgiram com a ascensão do Protestantismo, mas em defesa da visão católica, cabe aqui argumentar que, dada a natureza da mensagem de Cristo, não é nenhuma surpresa o paradoxo apresentado por ele: o símbolo de esperança da Vida Eterna no Cristianismo é representado pela Morte – vista através da imagem chocante de um homem morto, seminu, ensanguentado e flagelado, que, pendurado em uma cruz, sustenta sobre sua cabeça uma coroa de espinhos. Essa é a imagem da esperança para o cristão.

 

POR QUE HÁ UM JESUS CRUCIFICADO NAS IGREJAS CATÓLICAS?

 

Essa pergunta deve ser tratada de maneira cuidadosa e respeitosa, juntamente com as premissas e argumentos que constituem o seu fundamento. Deve ser assim pelo fato de que muitos que defendem a supressão dos crucifixos nas Igrejas o fazem em razão de opô-lo à vitória de Cristo sobre a morte. Logo, muitos daqueles que falam contra o crucifixo geralmente têm boa intenção ao fazê-lo, já que acreditam que ele apenas desmerece a ressurreição: “Jesus não está mais pregado numa cruz” – argumentam. Ok… Vamos por partes: Primeiramente, é importante destacar que o presente artigo não tratará de motivos iconoclastas ou aniconistas (os quais negam a legitimidade de imagens sacras, sendo um outro motivo comum para a rejeição do crucifixo), mas focará numa defesa contra os argumentos que colocam o crucifixo como algo oposto à ressurreição do Senhor Jesus. Não será feito, contudo, com o intuito sugerir que não são cristãos aqueles que não gostam do crucifixo em razão do seu desejo de enfatizar a vida de Cristo e não sua morte, já que, como foi dito, muitas dessas pessoas o fazem com boa-fé, mas é necessário mostrar os reais fundamentos cristãos para o uso do crucifixo ao longo da história. Bem como os erros daqueles que o desaprovam. Quanto aos iconoclastas, sugiro as leituras: A ICONOGRAFIA CRISTÃ E AS ESCRITURAS e AS IMAGENS SACRAS E A REPRESENTAÇÃO DE DEUS NOS SANTOS.

 

Foto de Megan Watson na Unsplash

 

Mas afinal, o que o católico vê quando olha para o crucifixo? Alguns pontos merecem destaque para responder essa pergunta:

 

      1. A pecaminosidade da humanidade está exposta ali, a qual tornou tal sacrifício necessário. Deus nos traz o retrato daquilo que foi realizado para tornar possível a redenção do gênero humano, o que constituiu um alto preço. É belo? Não… (Isaías 52, 14) mas isso nos leva a ponderar em nosso coração acerca do “castigo que nos traz a paz” (Is 53, 5);

 

2. A mensagem principal do Evangelho também é precisamente anunciada ali: é o que enfatiza todo crucifixo, embora esta mensagem seja transmitida de maneira imagética e visual através desse sacro objeto. Trata-se da missão de Jesus na terra sendo apresentada aos olhos dos homens: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” [João 3, 16] e “Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”[v. 17] Como lemos também: Mas nós pregamos a Cristo crucificado. (1 Coríntios 1,23)

 

      1. O crucifixo também nos educa, já que aponta para o sofrimento que os seguidores de Cristo padecerão. Ele declara que a vida cristã não é um caminho fácil ou confortável, mas qualquer que quiser ir após Ele, deve, antes, negar a si mesmo, tomar a sua cruz e segui-lo para a morte. Entenda: A Igreja é o CORPO DE CRISTO (1 Coríntios 12, 27), e ali (no crucifixo), esse corpo é apresentado desfigurado e sangrando.  É o nosso chamado também, se somos o Corpo de Cristo. É uma verdade que traz, contudo, um conforto: a morte não deve ser temida, já que Jesus fez do sofrimento um instrumento de redenção. Olhando para o crucifixo, temos a certeza de que, se tivermos fé, o sofrimento pode nos educar a tomar nosso lugar na Comunhão do Corpo de Cristo e nos levar a perceber seu real poder para nos unir a Ele. E assim, mesmo a assustadora cruz nos concede propósito, conforto e esperança. Pois Ele ressuscitou, de modo que se sofrermos com Ele, também ressuscitaremos (Romanos 8, 17).

 

Como bem disse Santo Inácio, “Seja meu espírito considerado como nada por causa da cruz , que é uma pedra de tropeço [1 Coríntios 1:18] para aqueles que não creem , mas para nós salvação e vida eterna” [Epist. Ef. 18].

 

SERÁ UM SINAL AOS POVOS: A PROFECIA DO VELHO TESTAMENTO ACERCA DO MESSIAS

 

Além de nos apresentar todas essas coisas de forma visual, e a Igreja valoriza a linguagem em suas mais variadas expressões, o crucifixo também revela uma coisa que pouca gente considera: que Deus poderia ter escolhido outra forma para redimir a humanidade, mas tornou sinal de salvação o erguimento de um homem morto no madeiro diante das nações. Isso é profético. O ser pendurado no madeiro já continha grande carga de significação no antigo Israel, isto é, para todo judeu antigo que lia a Torá. Muito antes de Jesus vir ao mundo e cumprir as profecias, era isso que era visto na lei: “Maldito todo aquele que é pendurado no madeiro” (Dt 21,23). Na lei de Moisés está escrito que Deus ordenou que os corpos dos mortos ficassem escondidos da vista do povo. Somente pessoas amaldiçoadas ficavam exibidas em um madeiro, em razão de crimes ou de más condutas. Sendo assim, Ele pronunciou tal maldição sobre todos aqueles que ficavam pendurados em um madeiro, à vista dos homens. Será que Deus não sabia que Seu Filho Jesus Cristo sofreria tal morte? Ou Ele julgava que ocorreria assim por acidente? Evidente que não! As Escrituras mostram que todos os eventos ocorreram de acordo com a determinação divina. 

 

Porque verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; Para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer (Atos 4,27-28)

 

Ou seja, já estava escrito que haveria uma morte indigna e vergonhosa para o Messias. Veja o que Isaías diz: “e foi contado com os transgressores” (Is 53,12). Jesus também chegou a enfatizar outro acontecimento conhecido do antigo Israel que possuía relevância profética, indicando algo na direção da forma de maldição registrada em deuteronômios. É sutil, mas no mínimo curioso se considerarmos que trata-se de uma característica que se liga à sua morte pública num madeiro: ele chega a dizer claramente que seria levantado diante da vista dos homens tal como a serpente de bronze foi levantada no alto de um poste por Moisés (Números 21, 4-9), para salvação de Israel. Isso Jesus afirmou antes de sua morte, prenunciada a um homem chamado Nicodemus:

 

E assim como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (João 3,14-16).

 

Posteriormente, São Paulo atesta a mesma descrição do madeiro e sua relação com a maldição proferida pelo próprio Deus no Velho Testamento, mostrando-se plenamente ciente da lei de Moisés e de sua aplicação à morte de Cristo:

 

Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro; para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito (Gálatas 3,13-18).

 

De fato, o único modo de salvar todos os que se encontravam debaixo da maldição era fazendo a si mesmo maldição: o que significa que era necessário que nosso Senhor tomasse sobre si o fardo, fosse condenado como infrator injustamente e morresse uma morte vergonhosa para ser uma oferta pelo pecado. Devemos atentar para isso de forma a refletirmos com gravidade, pois Deus quis que Cristo morresse com esse tipo de morte para servir de sinal: Mas Eu, quando for levantado da terra, atrairei todas as pessoas para mim. Ele disse isso para expressar o tipo de morte que haveria de sofrer”.  (João 12, 32-33). E um sinal serve para chamar atenção. Quem olha o madeiro e aquele que nele está pregado, contempla o escândalo da cruz. Por conta disso, ordenou Deus que aquele que fosse pendurado num madeiro fosse maldito, sendo esse tipo de morte bem conhecido dos judeus da época, mas também determinou que seu próprio Filho perecesse dessa forma para nos salvar. Isso marcaria uma relação com a maldição global que recaiu sobre o mundo em Gênesis 3, pois aparentemente, era conveniente que soubéssemos que o Messias sofreria uma morte considerada maldita e assim desfaria essa maldição, ressurgindo dos mortos. É, pois, uma necessidade que entendamos o valor profético da maneira com que Cristo morreu. E essa é a mensagem do Evangelho, bem como também a de todo crucifixo: Mas nós pregamos a Cristo crucificado (1 Coríntios 1, 23). 

 

MAS AFINAL, A CRUZ OU A RESSURREIÇÃO?

 

Se o crucifixo relata precisamente a mensagem do Evangelho de maneira visual, por que o escândalo?

 

Porque a morte e o sofrimento – que é aquilo que o crucifixo retrata – são realidades que assombram todo ser humano. E aqui chegamos ao ponto da galera do “Jesus não está mais no madeiro”. Todo mundo sabe e ninguém nega. E… De novo ressalto: não estou sugerindo que tais pessoas escondem um desejo sombrio de negar a cruz ao fazerem birra contra o crucifixo, mas digo que é uma tendência natural do homem sentir repulsa pela morte, desejar afastar-se dela ou ignorá-la, e isso se exterioriza na ênfase na vitória de Cristo e não na Sua humilhação, no seu sacrifício e na sua morte. Afinal, escolhemos a cruz ou a ressurreição? Os dois! Pois não é possível ter um sem o outro, e o fato de que Cristo reina no céu não apaga o caminho até o céu: a ressurreição é o prêmio, mas o caminho até lá é a cruz.

 

A Cruz é a via tenebrosa pela qual todos os filhos de Deus devem passar

 

Já agonizando, Cristo ouviu dos fariseus que gritavam da multidão: “DESCE DA CRUZ! SE ÉS O FILHO DE DEUS!” (Mateus 27, 40) Jesus já tinha realizado muitos milagres na frente deles: não somente a ressurreição de Lázaro, mas muitas obras assombrosas que revelavam seu poder. Ele poderia ter descido de lá! Mas a cruz era inevitável. Não foi a primeira vez que isso ocorreu: S. Pedro já havia dito, escandalisado e aterrorizado pela mensagem da cruz: “Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso”. Aquilo era tão odiável e temível que os hipócritas não concebiam a possibilidade de ela fazer parte do caminho que se percorre em direção ao céu e mesmo um seguidor fiel de Jesus desejava, por medo, uma maneira de evitá-la. De fato, o mundo deseja esquecer-se da morte. Mas seria possível evitá-la? A imagem do Cristo crucificado brada aos quatro cantos que não. A ilusão da vitória sobre a morte que o mundo moderno promove e vende com os grandes avanços da medicina, as buscas incessantes por rejuvenescimento, etc., não podem pegar os seguidores de Jesus desapercebidos. Eles sabem a dura e feia verdade. Por isso, a morte é constantemente lembrada pelos católicos no crucifixo e em todos os elementos da fé. Os inimigos do crucifixo são necessariamente contrários a essa mensagem da morte? Não, porém alguns elementos psicológicos podem não ser percebidos e seu desprezo pela humilhação de Cristo ter raiz no mesmo medo mundano e humano que levou os rabinos e São Pedro (Mt 16, 22) a gritarem para que Jesus fugisse da cruz.

___________________________________________________________________________________________

 

CONCLUSÃO

 

Como você deve ter percebido, o anúncio da morte e da cruz não é algo que podemos simplesmente ocultar, como se disséssemos: “vamos pular para a parte da ressurreição”. Ele é um caminho necessário, e não é um princípio contido somente no crucifixo, mas em outros aspectos da liturgia da Igreja e na própria essência e alma do Cristianismo. Se você quiser ler mais sobre o assunto, sugiro o texto: ALGUNS ASPECTOS PRÓPRIOS DO CRISTIANISMO COM RESPEITO À MORTE. Que Deus abençoe sua vida e que essa leitura tenha sido edificante. Que possamos seguir nosso caminho fielmente e com a certeza de que Deus está conosco e caminha conosco, mesmo quando passamos pela Via Dolorosa a qual Ele mesmo primeiro percorreu.

 

Foto Principal de Mateus Campos Felipe na Unsplash

 

Picture of Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

Picture of Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

Compartilhe:

Mais postagens deste autor