Jesus desceu à Mansão dos Mortos?

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

A Igreja Católica ensina que todas as almas dos justos aperfeiçoados e completamente purificados estão no céu por causa da redenção de Cristo. Mas isso não era uma realidade antes da descida do Senhor ao Sheol (Mansão dos Mortos), pela qual Cristo abre aos justos  do Antigo Testamento a porta do céu, conforme o Catecismo 637: “Cristo morto, na sua alma unida à pessoa divina, desceu à morada dos mortos. E abriu aos justos, que O tinham precedido, as portas do céu”. As confissões mais antigas da Igreja CRISTÃ primitiva, assim como todas as igrejas apostólicas ensinam a descida de Cristo ao Hades.

 

CIC: 633. A morada dos mortos, a que Cristo morto desceu, é chamada pela Escritura os infernos, Sheol ou Hades, porque aqueles que aí se encontravam estavam privados da visão de Deus. Tal era o caso de todos os mortos, maus ou justos, enquanto esperavam o Redentor, o que não quer dizer que a sua sorte fosse idêntica, como Jesus mostra na parábola do pobre Lázaro, recebido no «seio de Abraão. «Foram precisamente essas almas santas, que esperavam o seu libertador no seio de Abraão, que Jesus Cristo libertou quando desceu à mansão dos mortos». Jesus não desceu à mansão dos mortos para de lá libertar os condenados, nem para abolir o inferno da condenação, mas para libertar os justos que O tinham precedido.

 

É nesse sentido que a Escritura ensina que os antigos fiéis do Velho Testamento estavam privados. Contudo, não completamente, pois mesmo no sheol havia diferentes condições para cada alma, de maneira que o rico sofria as penas e o Lázaro permanecia no seio de Abraão em consolo. Mas sua situação ainda não era um perfeito estado, pois as almas estavam privadas da visão beatífica, isto é, da perfeita comunhão com Deus e de seu gozo. Isso viria através do conhecimento que o Messias traria. Os cristãos primitivos chamavam esse conhecimento de divinização ou Theosis, uma união completa com Deus através da habitação dele em nós. Como está escrito:”Deus conosco”. Isso não tinha ocorrido. Mas é claro que os cristãos não ensinam que esse estado de coisas se manteve para sempre. Como o santo Atanásio, defensor da Trindade, muito bem afirmou, o próprio Adão foi redimido e levado da prisão, bem como todos aqueles que morreram na esperança da Promessa, quando Cristo desceu ao lugar do silêncio. Eles aguardavam a semente da Mulher que redimiria sua raça, e, como foi dito pelos homens de Noé nos tempos antigos, que ele lhes daria repouso de suas obras (Gn 5: 29), o mesmo fez Cristo por eles:

 

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⁵¹ E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras;
⁵² E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados;
⁵³ E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos.

(Mateus 27:51-53)
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Ps. A visão que Mateus relatou é considerada fidedigna pela Santa Igreja, embora cercada de mistérios. O CIC 637. diz: “Cristo morto, na sua alma unida à pessoa divina, desceu à morada dos mortos. E abriu aos justos, que O tinham precedido, as portas do céu…” A Igreja admite a ideia de que houve na história humana alguns que foram levados ao céu antes da Descida de Cristo no Sábado Santo, mas trata como exceção à regra. E não se sabe sob quais circunstâncias permaneceram. Tal foi a sorte de fiéis como Elias, Enoque. Há uma pessagem na Bíblia tratando de Moisés também, cujo corpo foi disputado pelo Arcanjo Miguel e o diabo. Isso foi citado por Judas, mencionando um apócrifo judaico chamado Assunção de Moisés, o que nos leva a acreditar que o apóstolo acreditava nesse elemento de informação contido em tal registro, confirmando0-o como verdade. Se for o caso, então Moisés também se enquadra nessa categoria. Em 1 Pedro 3:19, é dito que “Cristo, ao ser mortificado na carne, em espírito pregou aos espíritos que estavam na prisão, os quais noutro tempo foram incrédulos”: e isso é entendido se tratar da descida de Cristo ao inferno por Santo Atanásio, por exemplo, que diz na Epistula ad Epictetem que: “O corpo de Cristo foi colocado no sepulcro quando Ele foi pregar aos espíritos que estavam em prisão, como disse Pedro”.

 

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Historicamente, os católicos o ligam esses eventos à doutrina apostólica da Descida. E essa doutrina é uma cláusula do Credo Apostólico, portanto, não pode ser alterada por novas doutrinas e pela variada gama de interpretações que os cristãos suscitam de acordo com sua cultura, tempo e ideologia. O Credo é dogmático. É verdade que os católicos mantêm o mistério dessas referências de Mateus e Pedro, como citei acima, e quanto ao primeiro, há quem diga se tratar de uma visão que os fiéis tiveram e relataram, sobretudo a questão dos corpos, como Jerônimo diz, e também outros que digam se tratar de um fenômeno real e literal que ocorreu quando se deu o terremoto, como diz João Crisóstomo, e os corpos dos santos ficaram abertos pela ruptura dos sepulcros. Também é importante frisar que o evangelisto afirma que as testemunhas oculares só viram estes santos quando Jesus ressuscitou, já que eles apareceram a elas. Orígenes também menciona sua literalidade e historicidade, mas ele o faz de maneira diferente, e a funde com o caráter metafórico, dizendo que era ao mesmo tempo real e tipológico. Isso se demonstra quando fala que a cidade santa Jerusalém do Evangelho é na verdade o PARAÍSO:

 

(…) foram para o lugar de onde eles tinham vindo, talvez para comunicar as palavras ditas por Jesus a eles, àqueles que iriam muito em breve ser beneficiados por Ele, ou seja, no momento da Paixão, quando muitos corpos de santos que haviam adormecido, sendo abertos os seus túmulos entrariam na cidade, que é verdadeiramente cidade santa — não a Jerusalém sobre a qual Jesus chorou — e eles apareceram a muitos (Mateus 27: 51-54).

– Orígenes comentário de Mateus, ano 232 d. C.

 

A visão de Orígenes está de acordo com o Catecismo, que permite a mescla entre historicidade e tipologia:

 

CIC 130. A tipologia significa o dinamismo em ordem ao cumprimento do plano divino, quando «Deus for tudo em todos» (1 Cor 15, 28). Assim, a vocação dos patriarcas e o êxodo do Egipto, por exemplo, não perdem o seu valor próprio no plano de Deus pelo facto de, ao mesmo tempo, serem etapas intermédias desse mesmo plano.

 

E como diz Santo Tomás de Aquino:

 

[…] é dito no Credo: “Ele desceu ao inferno”: e o Apóstolo diz (Efésios 4:9): “Agora que Ele subiu, o que é isso, mas porque Ele também desceu primeiro às partes inferiores do a Terra?” E uma glosa acrescenta: “isto é – ao inferno”.

Eu respondo que foi apropriado que Cristo descesse ao inferno. Em primeiro lugar, porque Ele veio suportar a nossa pena para nos libertar da pena, conforme Isaías 53:4: “Certamente Ele levou sobre si as nossas enfermidades e carregou as nossas dores”. Mas através do pecado o homem incorreu não apenas na morte do corpo, mas também na descida ao inferno. Conseqüentemente, como convinha que Cristo morresse para nos libertar da morte, também lhe convinha descer ao inferno para nos livrar também de descer ao inferno. Por isso está escrito (Oséias 13:14): “Ó morte, eu serei a tua morte; ó inferno, eu serei a tua mordida.” Em segundo lugar, porque era apropriado, quando o diabo foi derrubado pela Paixão, que Cristo libertasse os cativos detidos no inferno, de acordo com Zacarias 9:11: “Tu também, pelo sangue do Teu Testamento, tiraste da cova os Teus prisioneiros.” E está escrito (Colossenses 2:15): “Despojando os principados e potestades, expôs-os com confiança”. Terceiro, para que, assim como Ele manifestou Seu poder na terra, vivendo e morrendo, também pudesse manifestá-lo no inferno, visitando-o e iluminando-o. Assim, está escrito (Salmos 23:7): “Levantai as vossas portas, ó príncipes”, que a glosa assim interpreta: “isto é: vós, príncipes do inferno, tirai o vosso poder, pelo qual até agora mantivestes os homens presos no inferno”. “; e assim “ao nome de Jesus todo joelho se dobrará”, não apenas “dos que estão no céu”, mas também “dos que estão no inferno”, como é dito em Filipenses 2:10.

Resposta à objeção 1. O nome inferno representa um mal de penalidade, e não um mal de culpa. Portanto, era apropriado que Cristo descesse ao inferno, não como sujeito ao castigo, mas para libertar os que estavam sujeito a ele.

Resposta à objeção 2. A Paixão de Cristo foi uma espécie de causa universal da salvação dos homens, tanto dos vivos como dos mortos. Mas uma causa geral é aplicada a efeitos particulares por meio de algo especial. Portanto, assim como o poder da Paixão é aplicado aos vivos através dos sacramentos que nos tornam semelhantes à Paixão de Cristo, da mesma forma é aplicado aos mortos através da Sua descida ao inferno. Por esse motivo está escrito (Zacarias 9:11) que “Ele tirou prisioneiros da cova, no sangue do Seu testamento”, isto é, pelo poder da Sua Paixão.

Resposta à objeção 3. A alma de Cristo desceu ao inferno não pelo mesmo tipo de movimento que move os corpos, mas pelo tipo pelo qual os anjos são movidos, como foi dito em I:53:1.

Suma Teológica, 3ª Pars, p. 52. art. 1.

 

Ao falar dos condenados, ele diz na pergunta 2 que “Cristo desceu a cada um dos infernos, mas de maneira diferente. Pois descendo ao inferno dos condenados, Ele operou este efeito, que ao descer até lá os envergonhou por sua incredulidade e maldade: mas para aqueles que estavam detidos no Purgatório Ele deu esperança de alcançar a glória“. Isso se encontra em perfeita harmonia com o que está contido no Catecismo 634. A Boa-Nova foi igualmente anunciada aos mortos…» (1 Pe 4, 6). A descida à mansão dos mortos é o cumprimento, até à plenitude, do anúncio evangélico da salvação. É a última fase da missão messiânica de Jesus, fase condensada no tempo, mas imensamente vasta no seu significado real de extensão da obra redentora a todos os homens de todos os tempos e de todos os lugares, porque todos aqueles que se salvaram se tornaram participantes da redenção.

 

Pintura do século XVI, autor russo desconhecido via Wikimedia Commons
(Público Domínio) em
Icon Museum Recklinghausen

 

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Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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