O Inferno e o Purgatório não existem?

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

O teólogo Leonardo Boff abalou alguns com um comentário feito recentemente acerca do purgatório e do inferno em um programa da tv cultura. Segundo ele, “O purgatório foi uma invenção medieval”.  “aquela hierarquia de reis e etc, conforme a ofensa o castigo. A Igreja não conhecia, e eu o reintroduzi pra botar um bocado de gente dentro […] e apareceu o diabo, [então pensaram] o que vamos fazer com o diabo? Criaram o inferno!” 

 

NEGANDO O PURGATÓRIO E O INFERNO

 

É evidente que Boff não mascara sua busca por romper com a interpretação antiga estabelecida na Igreja cristã, e ao sugerir no vídeo acima que o inferno e o purgatório NÃO passam de invenção, ele nega a Escritura, a Tradição cristã, a autoridade da Igreja Católica, a autoridade dos Concílios históricos, como o quinto de Calcedônia (451), responsável por declarar a eternidade do Inferno, o Segundo Concílio de Lyon (1274), o Concílio de Florença (1438-1445), e o Concílio de Trento (1545-1563), responsáveis por declarar a verdade do purgatório, e ainda se coloca, quanto a este último, como autoridade definitiva sobre o assunto ao dizer: “Eu o reintroduzi” (1:05). Mas antes disso, ele solapou a doutrina:

 

“Ora, eu não acreditava no purgatório porque o purgatório foi uma invenção medieval. Porque aquela hierarquia de príncipes, de reis e etc, conforme a ofensa, o castigo, a Igreja não conhecia…” (0:58)

 

Uma das coisas que podem ter levado o teólogo Leonardo Boff a negar tal ensino a princípio pode ter sido as várias visões deturpadas que alguns sustentam acerca do purgatório, as quais assombram as pessoas com visões terríveis do imaginário popular medieval, de demônios espetando no fogo almas de pobres velhas fofoqueiras. Agora, que o purgatório é uma doutrina bem antiga, disso não há dúvida. E mesmo que Boff tenha sido influenciado por crendices populares a negar o purgatório, isso não o isenta, sendo ele teólogo. Os próprios judeus mantêm a doutrina, apesar de haver certos distintivos, é claro (Leia mais sobre isso em O Purgatório Judaico), e apesar das pinturas horrendas feitas desse dogma nas paredes e tapeçarias do medievo, resta-nos manter firme em nossa mente que o purgatório é uma realidade que nos faz contemplar a graça de Deus e que tem estado presente na fé cristã muito antes do que pessoas como Boff sugerem.

 

 

O MARTÍRIO DE PERPÉTUA E FELICITY

 

Orei por meu irmão dia e noite, gemendo e chorando para que ele me fosse concedido. Então, no dia em que permanecíamos acorrentadas, isso me foi revelado: vi que o lugar que antes eu tinha observado ser uma escuridão, agora estava claro; e Dinócrates, com um corpo limpo e bem vestido, estava recebendo refrigério… E ele saiu da água para brincar alegremente, tal como as crianças, e então eu acordei. Dessa forma, compreendi que ele havia sido transportado do lugar de punição”.

 

O Martírio de Perpétua e Felicity 2:3–4, ano 202 d.C.

 

TERTULIANO

Oferecemos sacrifícios pelos mortos em seus aniversários de nascimento [a data da morte—nascimento para a vida eterna]”.

De Corona 3:3, ano 211 d. C.

 

JOÃO CRISÓSTOMO

 

“Chorem por aqueles que morrem em suas riquezas e que com todas as suas riquezas não prepararam um consolo para suas próprias almas, que tiveram o poder de lavar seus pecados e não quiseram fazê-lo. Vamos chorar por eles, vamos ajudá-los conforme a nossa capacidade, vamos pensar em alguma ajuda para eles, por menor que seja, mas vamos ajudá-los de alguma forma. Mas como e de que maneira faremos isso? Rezando por eles e pedindo a outros que rezem por eles, constantemente dando esmolas aos pobres em seu nome. Não foi em vão que os apóstolos decretaram que, nos maravilhosos mistérios, deveria ser feita lembrança daqueles que partiram. Eles sabiam que havia aqui  muito proveito para eles, muitos benefícios. Quando todo o povo se levanta com as mãos erguidas, uma assembléia sacerdotal, e aquela impressionante Vítima sacrificial é apresentada [a Eucaristia], como não teríamos sucesso, no momento em que invocamos a Deus, em defesa deles? Mas isso é realizado por aqueles que partiram na fé, enquanto que até mesmo os catecúmenos não são considerados dignos desse consolo, mas são privados de todos os meios de assistência, com exceção de um único. E qual seria? É possível dar esmolas aos pobres em seu nome”.

Homilias sobre Filipenses 3:9–10, ano 402 d.C.

 

SANTO AGOSTINHO

 

“Que haja algum fogo após esta vida, não é algo incrível, e é possível averiguar e descobrir ou mesmo deixar em mistério se   alguns dos fiéis serão salvos mais lentamente e outros mais rapidamente, em maior ou menor grau, conforme amaram as coisas boas que perecem, isso por meio de um certo fogo purgatorial”.

Manual de Fé, Esperança e Caridade 18:69, ano 421 d.C.

 

Bem distante da Idade Média, não?

Como Santo Agostinho ressaltou em O Julgamento de Pelágio (cap. 10), negar o purgatório é negar a Misericórdia. E mesmo ao “reintroduzir” a doutrina, como Leornardo Boff alegou ter feito, ele o fez por motivos errados, na esperança de negar outra doutrina importante: o inferno. De fato, Santo Agostinho cita o purgatório como instrumento da misericórdia, mas sua existência se deve também à justiça, pois negá-lo implica numa negação dela, como bem destacou outro grande doutor, São Tomás de Aquino. Veremos mais abaixo:

 

[…] aquela hierarquia de reis e etc, conforme a ofensa o castigo…

(BOFF, 2022)

 

Não há absolutamente nenhuma indicação de hierarquia no purgatório, senão aquela que é critério para julgar os homens, isto é, sua justiça e seus pecados. Não há rico ou pobre, rei ou plebeu, mas somente o justo e o injusto. A Escritura a todo momento nos declara isso: “Então, vereis outra vez a diferença entre o justo e o ímpio; entre o que serve a Deus e o que não o serve” (Malaquias 3: 18). Que critério é mais apropriado? Logo, a justiça é a grande causa dessa doutrina, além da noção de que Deus nos promete que nos limpará de toda mácula. Sobre a retribuição citada acima, o castigo conforme a ofensa, não foram os teólogos da Idade Média que imaginaram que cada homem receberia conforme suas obras, foi a Bíblia!

 

  • Aqui: “Eu vos digo: no dia do juízo os homens prestarão contas de toda palavra vã que tiverem proferido” (Mateus 12: 36).
  • Aqui também: “Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal” (1 Co 5: 10).
  • E aqui: “[…] a obra de cada um se manifestará; na verdade, o Dia a declarará, porque pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um” (1 Co 3: 13)

 

Todavia, como mencionei, a justiça que Boff deseja negar não é a do purgatório, a qual, como ele bem disse, estava até disposto a aceitar, ainda que de má vontade. É outra justiça que ele não suporta, isto é, a justiça eterna. O purgatório diz respeito à aplicação de penas temporais, ou seja, uma purificação para extirpação de pecados remanescentes [ e depois a pessoa sairá de lá]. Ele seria, portanto, como o Juizado Especial aqui no Brasil, ou o Juizado de Pequenas Causas, destinado a tratar de contravenções penais e crimes de menor potencial ofensivo. Não é uma comparação tão boa por causa da perfeição do Juízo divino. Explico: mesmo que nos pareça grave ao olhar humano um determinado pecado, sendo individual e impecável o julgamento de Deus, prescrutando todas as coisas e intenções ocultas, não é equiparável o tratamento do caso que citei acima [Juizados E.], que usa parâmetros objetivos como o fato de um delito ter pena máxima não superior a dois anos, por exemplo. Basicamente, só podemos dizer que —  se a situação pecaminosa de uma alma não foi suficiente para um rompimento total com a amizade de Deus, então tal pessoa provavelmente irá para o purgatório e não para o inferno. É uma doutrina tão sólida que é atestada de maneira diferente e com particularidades próprias pelas igrejas orientais, isto é, os ortodoxos. Ainda que eles não tenham sistematizado essa doutrina da maneira que os latinos fizeram:

 

MARCOS DE ÉFESO

 

Os pecadores e os presos após a morte no Hades beneficiam-se destas orações [pelos repousados], por um lado porque não foram definitivamente condenados e ainda não têm a decisão final do tribunal, por outro lado porque não caíram ainda o inferno, que acontecerá depois da Segunda Vinda de Cristo. Se isto for eficaz para os pecadores, muito mais os serviços memoriais e as orações beneficiam aqueles que se arrependeram, mas não tiveram tempo para serem completamente purificados e, portanto, iluminados. Se estes têm pecados muito pequenos ou leves, eles são restituídos à herança dos justos ou permanecem onde estão, isto é, no Hades, e seus problemas são aliviados e eles retornam para esperanças mais honrosas.

(panfleto “Os Mortos Precisam Urgentemente de Nossa Ajuda” produzido pelo Mosteiro Ortodoxo do Arcanjo Miguel, Marrickville, NSW, 1475 Austrália)

 

 

“O que vamos fazer com o diabo? Criaram o inferno! Para botar o diabo lá”

(BOFF, 2022).

 

Agora tratemos do inferno, cuja aplicação da justiça é eterna, e não temporal. A situação dos condenados dura para sempre, posto que é a punição por delitos mortais, isto é, delitos que de fato mataram a comunhão com Deus na alma de uma pessoa, pois esta se fechou à misericórdia e aos estímulos da graça (Hebreus 10:26-27). E isso nos leva ao seguinte ponto: Leonardo Boff afirmou que a invenção do inferno se deu como resultado direto da invenção do diabo — e por conseguinte, isso o fez aceitar a ideia do purgatório, ou seja, para poder negar ambos. Que Confusão, meu Deus!

 

O PAPA FRANCISCO CONCORDA QUE O INFERNO NÃO EXISTE?

 

Ao falar do inferno, o teólogo insinua que não há condenação eterna, mas somente temporal. Para apoiar sua assertiva, ele acaba mencionando o Papa Francisco como condescendente com tal ensino e cita menções de forma vaga. Decidi então apresentar aqui algumas evidências que provam que o Pontífice Romano crê que o INFERNO É REAL E ETERNO. Houve uma polêmica acerca desse ponto envolvendo um jornalista ateu chamado Eugenio Scalfari, que alegou ter ouvido do Santo Padre a negação, todavia, o próprio jornalista se retratou em seguida dizendo que pode ter entendido mal, e que as palavras não foram bem aquelas. Algo semelhante ocorreu com o Papa João Paulo II, que foi acusado pela mídia de negar a existência do inferno em 1999, quando tudo que fez foi retratá-lo como uma realidade não física, não como um lugar propriamente dito. Suas palavras foram distorcidas para que ele parecesse ter dito algo que não disse. Quanto ao atual Papa, embora a sua visão pessoal do Inferno seja a de que não se trata de “uma câmara de tortura”, como muitos pensam seguindo o imaginário convencional, como deixou claro em 2016 numa homilia no Vaticano, ele nunca alegou não ser eterno, mas confirmou tal ensino ao dizer que o inferno é o horror de estar separado para sempre de Deus”. Ao falar para crianças em visita a uma paróquia de Roma em 2015,o Papa afirmou: “Ninguém te manda para o inferno, você vai pra lá porque escolheu estar lá”. Por isso sabemos que o Diabo está no Inferno, continuou, “porque o Diabo quis estar lá”. 

 

Logo, a alegação a seguir é muito difícil de sustentar:

 

“E depois, com esse Papa [Francisco], eu fiquei mais convencido, porque quando esse Papa sagrou três cardeais negros, disse duas coisas importantes:
1) ‘Não pregue mais o evangelho com medo, como sempre se pregou… pregue o evangelho com amor, como Jesus.

2) Não pregue a condenação eterna, porque a condenação é só temporal, porque o inferno não existe, a misericórdia de Deus é infinita”.

(BOFF, 2022).

 

Veja o Papa Francisco orientando as pessoas a se arrependerem para não acabarem no inferno a partir de 1:37 min:

 

(01: 37 – 01:46)_ Papa Francisco: Change. You still have time to not end up in hell…
(01: 37 – 01:46)_ Tradução: Convertam-se. Vocês ainda têm tempo para que não acabem no inferno…

(00: 46 – 01:54)_Papa Francisco:That’s what awaits you, if you continue down this path
(00: 46 – 01:54)_Tradução: É isso que vos aguarda, se continuarem nesse caminho.

[…]

(02: 03 – 02:11)_Papa Francisco: As christians, our duty is to pray for them,
(02: 03 – 02:11)_Tradução:Como cristãos, nosso dever é orar por eles

(02: 11 – 02:16)_Papa Francisco: And ask the Lord to give them the grace of penance…
(02: 11 – 02:16)_Tradução: E pedir ao Senhor que lhes dê a graça da penitência…

(02: 16 – 02:20)_Papa Francisco:So that they don’t die with a corrupt heart
(02: 16 – 02:20)_Tradução:Para que não morram com o coração corrupto

(02: 20 – 02:30)_Papa F: because otherwise the dogs of hell will take the blood
(02: 20 – 02:30)_Tradução: porque senão os cães do inferno tirarão seu sangue

 

Ao escrever em defesa do Santo Padre, Boff afirmou:

 

Ele prega incansavelmente a misericórdia ilimitada com a qual Deus salva seus filhos e filhas, pois não pode perder nenhum deles, frutos de seu amor, “porque é o amante apaixonado da vida” (Sb 11,26). Por isso afirma que “por mais que alguém seja ferido pelo mal, nunca está condenado nesta terra a estar para sempre separado de Deus”. Afirma enfaticamente: “A misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado e ninguém poderá pôr limites ao amor de Deus que perdoa” (Misericordiae vultus, 2). Em outras palavras: a danação é apenas para este tempo.

(BOFF, 22 Novembro 2022)

 

MISERICÓRDIA PARA QUEM ENTRAR PELA PORTA

 

Ora, é evidente que o Papa Francisco prega incansavelmente a misericórdia de Deus, porque é o trabalho e a missão de todo sacerdote, e ele mais do que os outros deve fazê-lo, já que recebeu uma tarefa muito importante: ser o Bispo da Igreja de Roma, que preside no amor. Contudo, jamais poderia ele amar as ovelhas de modo perfeitíssimo se não as alertasse do perigo. Que pastor poderia ver um lobo  sorrateiramente se aproximar das ovelhas e ficar parado? Semelhantemente, o pecado e o diabo são como lobos ferozes. Por isso, ainda que enfatize que as misericórdias do Senhor não têm limites em Misericordiae vultos, ele prossegue dizendo que ao abrir a santa porta, ele tem alegria, posto que sabe que é uma “Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoa que entre poderá experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dá esperança”. Veja bem o que ele declara: é preciso que a pessoa entre, e ela [a Porta] está acessível a todos e a qualquer um que queira entrar, mas é preciso entrar. Quando o Boff conclui após mencionar a misericórdia sem limites de Deus que: Em outras palavras: a danação é apenas para este tempo”, ele oferece uma assertiva que absolutamente não se segue a partir do que foi dito. A Igreja de fato ensina que há penas temporais, todavia também sustenta a existência da pena eterna. Assim como São Tiago, que ao mesmo tempo em que sustentou que “A Misericórdia triunfa sobre o Juízo”, não deixou de advertir os homens de que “o juízo será sem misericórdia para quem não teve misericórdia” (Tg 2: 13). E por isso o Papa prossegue:

 

Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: « Que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento » (Ef 4, 26). E sobretudo escutemos a palavra de Jesus que colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério de credibilidade para a nossa fé: « Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia » (Mt 5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, com particular empenho, neste Ano Santo. Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para conosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na actividade de todos os dias.

 

Misericordiae vultos

 

CONCLUSÃO

 

Esse texto é um sincero gesto de amor, com o fim de alcançar aqueles que buscam em inteireza de coração a Deus e desejam aumentar seu entendimento acerca Dele. Não tem como finalidade desrespeitar ninguém, mas tão somente apresentar a doce, porém duramente sincera doutrina da Igreja Católica. Pois quem ama sempre instrui e corrige na verdade, sobretudo amigos e irmãos de caminhada. Oremos por Leonardo Boff. É com esse espírito que concluo esse artigo. Que Deus abençoe a todos.

 

Foto de Maximilian Müller na Unsplash

 

Picture of Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro

Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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Kertelen Ribeiro é uma ex-protestante convertida ao catolicismo romano. Sendo leiga, faz parte da Legião de Maria. Ama ícones, arte e se arrisca no desenho, mas ainda não sabe fazer sombra direito. Graduada em Letras – Português e pós-graduada em Tradução do Inglês pela Estácio, atua como tradutora freelancer e deseja servir a Cristo, se esforçando para fazer a Sua vontade. Livros sempre foram o caminho.

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