Imagine que você esteja em um futuro onde a tecnologia permitiu ao homem construir a tão afamada máquina do tempo. Você então decidiu viajar para algum período de tempo nos primeiros anos da era cristã. Você se depara com uma Igreja que realiza missa (sacrifício) em favor de fiéis mortos e que pede a Intercessão de mártires mortos, da santa Mãe de Deus Maria e dos Anjos. Qual seria a sua reação? De fato, para os católicos, não haveria surpresa alguma. Mas muitos outros estranhariam. Pensando nisso, decidi escrever esse texto contendo o resumo da compreensão com respeito aos papéis dos intermediários na Igreja Primitiva, bem como os limites do comportamento dos fiéis com respeito a eles. Caso você sinta curiosidade acerca do motivo pelo qual os primeiros cristãos faziam isso, sugiro a leitura do texto Por que a Igreja Primitiva pedia a Intercessão dos Mártires Mortos? Você também pode ler sobre a Missa Primitiva e a oferta do Sacrifício citada acima aqui.
A Fé na Vida Eterna tem sua origem no Judaísmo
Muitos israelitas apresentavam uma compreensão altamente semelhante à do Cristianismo, o que levou alguns historiadores a constatar que a origem da Intercessão dos santos cristã seja a teologia do além judaica, isto é, um conjuto de doutrinas acerca daquilo que ocorre com a alma após a morte. Há um sistema de crenças bastante interessante nesse sentido, e que era anterior ao período neotestamentário e difundido amplamente na época de Jesus e dos apóstolos, em seus círculos religiosos. Você pode percebê-lo no seguinte trecho:
“Eis o que tinha visto: Onias, que foi sumo sacerdote, homem nobre e bom, modesto em seu aspecto, de caráter ameno, distinto em sua linguagem e exercitado desde menino na prática de todas as virtudes, com as mãos levantadas, orava por todo o povo judeu. Em seguida, apareceu do mesmo modo um homem com os cabelos todos brancos, de aparência muito venerável e nimbado por uma admirável e magnífica majestade. Então, tomando a palavra, disse-lhe Onias: ‘Eis o amigo de seus irmãos, aquele que reza muito pelo povo e pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus’.”
II Macabeus, 15: 12-14 – Bíblia Católica Online
Esse relato de 2 Macabeus é anterior à época de Cristo, apresentando um testemunho intrigante acerca dos judeus naquele período: ele envolve a intercessão de [justos no céu] por pessoas que estão na terra. Ainda que tal relato não seja recepcionado como canônico por aqueles que negam a doutrina da intercessão dos santos, NÃO HÁ DÚVIDAS DE QUE ELE FORNECE UMA IDEIA DE COMO A MENTALIDADE JUDAICA ENTENDIA A MORTE E AQUILO QUE OCORRE ÀS ALMAS DOS HOMENS. E essa compreensão não desapareceu do Judaísmo. Se você quiser ler mais sobre o assunto, sugiro os textos A Intecessão dos Tzadikim no Judaísmo e também Orações de Judeus a Anjos e a Outros Intermediários durante os Primeiros Séculos da Era Comum: Uma Análise. Veja que no trecho, Onias, um sacerdote que havia sido morto, aparece a Judas orando pelo povo, juntamente com o profeta Jeremias em sonho, orientando-o a não temer os inimigos de Israel, pois Deus lhes daria a Vitória: ‘Eis o amigo de seus irmãos, aquele que reza muito pelo povo e pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus.’ Em outras palavras, Jeremias foi chamado “O Intercessor de Israel” no céu. Parece familiar?

Jeremias e Onias aparecem orando no céu a Judas Macabeus (Domínio Público)
Júlio Schnorr von Carolsfeld (1794–1872)
Antes disso, em Daniel, os Arcanjos Miguel e Gabriel também são apresentados como protetores do povo judeu numa batalha espiritual (Daniel 10: 21). E Cristo menciona os anjos que assistem os pequeninos ao comparecerem diante do Altíssimo (Mateus 18: 10). Se o que eles apresentam a Deus como defesa pelas almas dos pequeninos não são suas orações, então de onde provém sua força para atuar na vida deles? Jesus garante que eles têm grande poder de convencimento, pois avisa seus ouvintes: “Cuidado para não desprezarem os pequeninos”. E a razão é: “porque seus anjos veem a face do Pai”. Se não a pedem a Deus (orando) por esses pequeninos, então qual é fonte de seu poder? E por que motivo Jesus orienta a tomarmos cuidado? Veja mais sobre a intercessão dos anjos aqui. Então veja que os cristãos que pediam aos mártires que orassem por eles no céu não faziam isso baseados em algum dado estranho à época, mas na cultura de onde o Cristianismo nasceu: o Judaísmo.
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Alguns Exemplos
SÃO METÓDIOS
Ave a vós para sempre, Virgem Mãe de Deus, nossa alegria incessante, pois a vós me dirijo novamente… Ave, tesouro do amor de Deus. Ave, fonte do amor do Filho pelo homem!
Por isso, rogamos [pedimos] a Ti, a mais excelente entre as mulheres, que se gloria na confiança de suas honras maternais, que nos mantenha incessantemente em vossa memória. Ó santa Mãe de Deus, lembrai-vos de nós, eu peço, que nos gloriamos em ti, e que nos cânticos do mês de agosto celebramos a vossa memória, que sempre viverá e nunca desaparecerá.
– Oração sobre Simeão e Ana 14, ano entre 305 e 500 d.C.
INÁCIO DE ANTIOQUIA
Meu espírito se sacrifica por vós, não somente agora, mas também quando eu chegar a Deus.
– Aos Tralianos, n. 13:3, ano 107 d.C.
HIPÓLITO DE ROMA
Diga-me, vós, três meninos [Sadraque, Mesaque e Abede Nego], lembrai-vos de mim, eu vos imploro, para que eu também possa obter o mesmo martírio junto de vós…
Comentário de Daniel, Livro II, 30: 1, ano 204
CLEMENTE DE ALEXANDRIA
Desta forma, ele [o verdadeiro cristão] sempre se encontra purificado para a oração. Ele também ora na sociedade dos anjos, como sendo já de categoria angelical, nunca estando fora da sagrada proteção deles; e embora ore sozinho, tem o coro dos santos de pé com ele [em oração].
– Miscellanies 7: 12, ano 208 d.C
ORÍGENES
Mas não somente o Sumo Sacerdote (Cristo) ora por aqueles que pedem com sinceridade, mas também os anjos […] como também as almas dos santos que já dormem.
– Sobre a Oração, 11, ano 233 d.C
SÃO CIPRIANO DE CARTAGO
Lembremo-nos uns dos outros em concórdia e unanimidade. Vamos em ambos os lados [seja na vida ou na morte] sempre orar uns pelos outros. Aliviemos os fardos e aflições uns dos outros através do amor mútuo, para que se um de nós, pela rapidez da condescendência divina, partir primeiro, nosso amor possa permanecer na presença do Senhor, e assim nossas orações por nossos irmãos e irmãs não cessarão diante da misericórdia do Pai.
– Carta 56 [60]: 5, ano 253 d. C.
SÃO METÓDIOS
E você também, ó honrado e venerável Simeão, primeiro anfitrião de nossa santa religião cristã e professor da doutrina da ressurreição dos fiéis, interceda junto ao Deus Salvador, Aquele a quem você foi tido como digno receber em seus braços. Nós, juntamente contigo, cantamos nossos louvores a Cristo, que tem o poder da vida e da morte, dizendo: ‘Vós sois a verdadeira Luz, que procede da verdadeira Luz; o Deus verdadeiro, gerado do Deus verdadeiro’.
– Oração sobre Simeão e Ana 14, ano 305 d. C.
SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
Então (durante a Oração Eucarística), mencionamos também aqueles que já adormeceram: primeiro os patriarcas, profetas, apóstolos e mártires, para que por meio de suas orações e súplicas Deus receba o nosso pedido.
– Cartas Catequéticas, 23: 9, ano 350 d. C.
SÃO GREGÓRIO DE NYSSA
[Efrém], você que está de pé no altar divino [no céu]… leve-nos a todos em memória, pedindo em nosso favor a remissão dos pecados e a fruição de um reino eterno.
– Sermão sobre Efrém, o Siro, ano 380 d. C.
SANTO EFRÉM O SIRO
Vós, mártires vitoriosos que sofreram tormentos de bom grado por amor a Deus e Salvador, vós que tendes a coragem para falar ao próprio Senhor, vós santos, intercedei por nós, que somos homens tímidos e pecadores, cheios de preguiça, para que a graça de Cristo possa vir sobre nós, e iluminar os corações de todos de maneira que possamos amá-lo.
– Comentário sobre Marcos, ano 360 – 373 d.C
Lembre-se de mim, herdeiros de Deus, irmãos de Cristo! Suplicai fervorosamente por mim ao Salvador, para que eu possa ser libertado por meio de Cristo daquele que combate contra mim dia após dia.
– O Medo no Fim da Vida, ano 370 d. C.
GREGÓRIO NAZIENZO
Que você [Cipriano] olhe de cima para nós e seja propenso, guiando nossa palavra e vida; pastoreando este rebanho sagrado… Alegra, ó Cipriano, a Santíssima Trindade, diante da qual tu estás.
– Orações 17 [24], ano 380 d. C.
“Sim, estou certo de que a intercessão [de meu pai] tem mais valor agora do que a sua instrução nos dias anteriores, uma vez que está mais perto de Deus, agora que se livrou de seus grilhões corporais e libertou sua mente do barro que a obscurecia…”
– ibid. 18: 4, ano 380 d. C.
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
Quando perceber que Deus está te castigando, não voe para os inimigos dEle… mas para seus amigos, os mártires, os santos e aqueles que foram agradáveis a Ele, e que têm grande poder em Deus.
– Oração 8: 6, ano 396
E Alexandre, de fato, depois de sua morte, nunca mais restaurou seu reino, que havia sido dilacerado e totalmente abolido. De fato, como seria provável que ele assim o fizesse, estando morto? Mas Cristo, acima de todas as coisas, estabeleceu o Seu Reino depois de morto. E por que falo de Cristo? Vendo que Ele mesmo concedeu aos Seus discípulos que também, após a morte, brilhassem? Pois, diga-me, onde está o túmulo de Alexandre? Mostre-me e diga-me o dia em que ele morreu. Mas os túmulos dos servos de Cristo são gloriosos, visto que eles tomaram posse da cidade mais leal; e seus dias são bem conhecidos, com festivais sendo feitos pelo mundo. E quanto à tumba de Alexandre, nem mesmo seu próprio povo conhece, mas tal homem [Cristo] é aquele que os próprios bárbaros conhecem. E os túmulos dos servos do Crucificado são mais esplêndidos que os palácios dos reis; não pelo tamanho e pela beleza dos edifícios (e ainda assim os superam), mas, me refiro àquilo que é muito superior, pelo zelo dos que os frequentam. Pois aquele que usa púrpura vai abraçar aqueles túmulos e, deixando de lado seu orgulho, implora aos santos que sejam seus advogados junto a Deus, e aquele que tem o diadema implora ao fabricante de tendas [São Paulo] e ao pescador [São Pedro], embora mortos, para sejam seus patronos. Você ousará então, diga-me, chamar o Senhor desses mortos; cujos servos, mesmo após sua morte, são os patronos dos reis do mundo? E isso pode acontecer não apenas em Roma, mas também em Constantinopla.
– Homilias sobre Segunda Coríntios 26:2:5, ano 392 d.C.
AMBRÓSIO DE MILÃO 340 – 397 d.C
Que Pedro, que chorou tão eficazmente por si mesmo, chore por nós [também] e faça com que o semblante benigno de Cristo volte-se para nós.
– O trabalho dos Seis Dias 5:25:90, ano 393 d. C.
Elas (As viúvas) devem recorrer aos Apóstolos, que podem nos ajudar, e devem ser introduzidas pela intercessão dos anjos e dos mártires.
– Sobre as Viúvas 9, ano 340-397 d. C.
Os anjos devem ser invocados (obsecrandi, alvo de súplicas), os quais nos foram dados como guardiões; os mártires devem ser invocados, cujo patrocínio reivindicamos para nós mesmos pelo penhor de seus corpos.
ibid. 55, ano 340-397 d. C.
SANTO AGOSTINHO
À mesa do Senhor não comemoramos os mártires como fazemos com os que descansam para orar por eles, mas antes para que eles orem por nós, com o fim de que sejamos capazes de seguir seus passos.
– Homilia sobre João 84, ano 416
Tampouco as almas dos mortos piedosos se encontram separadas da Igreja, que mesmo agora é o Reino de Cristo. Do contrário, não haveria lembrança deles no altar de Deus, na comunicação do Corpo de Cristo.
– A Cidade de Deus 20: 9: 2, ano 419
De fato, incontáveis são os exemplos de cristãos pedindo a intercessão de seus irmãos que já partiram. Esses nomes, o registro de Santo Hipólito de Roma, Santo Atanásio, Efrém da Síria, Clemente alexandrino, Cipriano de Cartago, Metódios, Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nyssa, Gregório Nazienzo, João Crisóstomo, Agostinho de Hipona, Ambrósio de Milão, Cirilo de Alexandria, Tiago de Saroug, Gregório Taumaturgo, São Jerônimo, entre outros demonstra apenas a grande difusão da doutrina como parte da ortodoxia cristã, que vê na fé a continuidade da vida humana, mesmo após a morte. Em razão da infalível crença da Igreja Primitiva na Vida Eterna, fortalecida e confirmada pela vitória de Cristo na cruz sobre a morte, desde sua origem, o Cristianismo é uma religião fortemente enraizada na noção de Deus como soberano dos vivos e dos mortos. E por isso os cristãos recomendaram as vidas dos fiéis às orações intercessórias de cristãos zelosos, mesmo que estes já não estivessem mais no corpo. Ao partirem, os salvos não têm sua obra e participação no plano redentivo terminada, mas devem dar continuidade a ela no céu. Se quiser saber mais sobre o assunto, leia Por que a Igreja Primitiva pedia a Intercessão dos Mártires Mortos?
Agostinho sobre a Proibição de Adoração aos Santos
Uma doutrina assim tão difundida, é claro, possui regras. E por isso, trarei aqui alguns cuidados com respeito aos limites considerados recomendáveis. Para tanto, farei uso das palavras de Santo Agostinho, que quando escrevia a Fausto foi enfático ao apresentar a diferença entre a veneração aos santos e o culto a Deus. Ele cita a palavra grega latria, que indica adoração, que é diversa da honra religiosa dada aos mártires. Declara ser verdade que os crentes tomam parte nos méritos dos santos e que são ajudados por suas orações no céu, mas também informa a linha que separa a veneração santa e saudável que é dirigida aos mártires daquele sentimento proibido de se ter a alguma criatura, isto é, a adoração. Devem os fiéis compreenderem que a memória do mártir sendo celebrada é tão somente a demonstração da glória de Deus que o coroou. Além disso, conforme o doutor da graça, a própria oferta eucarística (sacrifício da missa), NÃO é ao santo destinada. Não se oferta o sacrifício a Pedro, ou a Cipriano, diz Agostinho. Ainda que seja feita em seu túmulo, para memória e celebração de seus dias. Veja:
AGOSTINHO DE HIPONA
A OFERTA NO ALTAR CONTA COM AS ORAÇÕES DOS SANTOS
Existe uma disciplina eclesiástica, como sabem os fiéis, quando os nomes dos mártires são lidos em voz alta naquele local do altar de Deus, onde não se faz oração por eles. A oração, no entanto, é oferecida por outros mortos que são lembrados. É errado orar por um mártir, a cujas orações nós mesmos devemos ser recomendados.
– Sermões 159:1, ano 411 d.C.
A OFERTA E O CULTO DE LATRIA É SOMENTE A DEUS
É verdade que os cristãos prestam honra religiosa à memória dos mártires, tanto para nos estimular a imitá-los como para obtermos a participação em seus méritos e a ajuda de suas orações. Mas nós construímos altares não para qualquer mártir, mas para o Deus dos mártires, embora seja em memória aos mártires. Ninguém oficiando no altar no cemitério dos santos jamais declara: Nós trazemos uma oferta a você, ó Pedro! Ou a ti, ó Paulo! Ou a tu, ó Cipriano! A oferenda é feita a Deus, que deu a coroa do martírio, enquanto é realizada em memória dos que foram assim coroados. A emoção aumenta pelas associações do lugar, e o amor é estimulado tanto por aqueles que são nossos exemplos (os santos) quanto por Aquele por cuja ajuda podemos seguir tais exemplos. Consideramos os mártires com a mesma intimidade afetuosa que sentimos para com os homens santos de Deus nesta vida (na terra), quando tomamos ciência de que seus corações estão preparados para suportar o mesmo sofrimento pela verdade do evangelho.
Há mais devoção em nosso sentimento para com os mártires, porque sabemos que seu conflito acabou; e podemos falar com maior confiança em louvor daqueles que já são vencedores no céu, do que daqueles que ainda estão na batalha aqui. O que é culto propriamente divino, aquilo que os gregos chamam de LATRIA, e para o qual não existe palavra em latim, tanto na doutrina quanto na prática, nós damos somente a Deus. A este culto pertence a oferta de sacrifícios; como vemos na palavra idolatria, que significa dar esta adoração a ídolos. Sendo assim, nunca oferecemos, ou exigimos que alguém ofereça, sacrifício a um mártir, ou a uma alma santa, ou a qualquer anjo. Qualquer pessoa que caia nesse erro é logo instruída pela doutrina, seja no sentido de correção ou para ter cautela […] Sacrificar aos mártires, mesmo em jejum, é pior do que retornar para casa embriagado da festa: digo sacrificar aos mártires, que é diferente de sacrificar a Deus em memória dos mártires, como fazemos constantemente, em conformidade com a maneira exigida desde a revelação do Novo Testamento…
– Santo Agostinho, Contra Faustum, Livro XX, 397 d. C.
Agostinho sobre a Proibição feita por Ambrósio de Ofertar aos Santos
Já ficou claro que há limites com respeito à devoção aos santos, como demonstrado acima. Todavia, devo apresentar mais um exemplo tirado da autobiografia de Santo Agostinho chamada Confissões. Ele já havia declarado a proibição de se oferecer a Missa (o sacrifício do Calvário) em favor dos santos, mas um episódio envolvendo sua mãe Mônica, nos permite ficar ainda mais cientes da rigidez da disciplina com que os cristãos se acautelavam de excessos. Em todas as coisas eles desejavam dar bom testemunho, e foi justamente esse zelo que levou Santo Ambrósio a proibir a entrada de Mônica na Igreja Católica, quando esta começou a oferecer aos mártires alimentos, como pães e vinho. O motivo, segundo esse santo homem de Deus, que grandemente contribuiu para a conversão de Agostinho, é evidente: deve haver cuidado para os cristãos não incorrerem nas práticas dos pagãos! Mesmo que com boa intenção.
PETIÇÕES E ESMOLAS SÃO SUFICIENTES
Capítulo II – Quando, pois, certa vez, minha mãe – como era seu costume na África – trouxe para os oratórios construídos em memória dos santos certos bolos, pão e vinho, e foi proibida pelo porteiro, tão logo ela soube que fora o bispo que o havia proibido, tão piedosa e obedientemente se submeteu a ele, que eu mesmo fiquei maravilhado com a facilidade com que ela conseguia acusar seu próprio costume, em vez de questionar a proibição feita a ele. Pois beber vinho não tomou posse de seu espírito, nem o amor ao vinho a estimulou ao ódio contra a verdade, como faz a muitos, homens e mulheres, que se enjoam com uma canção de sobriedade, tal como homens bem bêbados em uma corrente de água. Mas ela, quando trazia a cesta com as carnes festivas, das quais provaria primeiro e daria o que sobrasse, nunca se permitia mais do que um copinho de vinho, diluído de acordo com seu próprio paladar temperado, que, fora de cortesia, ela provaria. E se havia muitos oratórios de santos falecidos que deveriam ser honrados da mesma maneira, ela ainda carregava consigo o mesmo cálice, para ser usado em todos os lugares; e este, que não só era muito regado, mas também muito morno de carregar, ela distribuía em pequenos goles àqueles que estavam ao redor; pois buscava sua devoção, não o prazer. Logo, portanto, quando ela descobriu que esse costume era proibido por aquele pregador famoso e piedoso prelado, mesmo àqueles que dele fizessem uso com moderação, para que não se tornasse isso uma ocasião de excesso aos bêbados, e porque tais festivais em homenagem aos mortos, por assim dizer, eram muito parecidos com a superstição dos gentios, ela se absteve de boa vontade. E assim, em vez de um cesto cheio de frutos da terra, ela aprendera a levar aos oratórios dos mártires um coração cheio de petições mais purificadas, e a dar tudo o que pudesse aos pobres; isso com o fim de que a comunhão do corpo do Senhor fosse justamente celebrada ali, onde, a exemplo de sua paixão, os mártires foram sacrificados e coroados.
Confissões, Livro VI, cap. II. entre os anos de 397 e 398 d. C.
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Os pagãos costumavam barganhar com os seus deuses dando oferendas como bolos, pãos a eles, mas para um cristão, isso não deve ocorrer. Os santos não precisam de nada! Eles estão em situação melhor que a dos vivos na terra, pois estão com Deus no céu! É verdade que é permitido pedir-lhes a intercessão com a promessa de alguma disciplina espiritual, mas em vista das religiões pagãs ao derredor, a necessidade de cautela era redobrada, para evitar mau testemunho. Além disso, os santos não são deuses, sendo toda oferta dirigida a Deus, e ainda que seja feita uma oferta a Deus em memória deles, como Agostinho citou acerca da missa no exemplo anterior, é necessário se afastar de toda aparência do mal. E como era comum aos pagãos fazerem oferendas de comida aos deuses, convinha aos cristãos se apartarem de tais coisas. FOI A ADVERTÊNCIA DE AMBRÓSIO. Somente orações purificadas com sentimento de humildade e esmolas dadas aos pobres são recomendáveis.
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Santa Mônica, sendo uma serva de Cristo, acatou toda a recomendação do Bispo Ambrósio humildemente. Ela não ficou chateada ou escadalizada. Não tinha realizado a prática por mal, mas sim por uma ingenuidade sua, e é por isso que Agostinho a elogia por sua brandura e submissão. Sobre o trecho, podemos perceber mais uma vez que os cristãos entendiam bem os limites da sua relação com os santos, bem como tinham ciência da diferença entre eles e os pagãos.
Agostinho sobre o Mistério de como os Santos ouvem nossas Orações
Também o Doutor da Graça inquiriu acerca do maravilhoso mistério que envolve a atuação dos santos em nosso mundo. Quando ponderava acerca disso, em seu livro O Cuidado Devido aos Mortos, travou o seguinte argumento, demonstrando sua humildade com respeito a assuntos tão ocultos: Não há dúvida de que os santos ouvem as orações dos vivos, e que tal poder não provém deles mesmos, mas de Deus, contudo, a maneira como se dá, não se sabe. Todavia, é possível que alguém saiba, e que Deus levante doutores à Igreja para investigar, posto que é Ele quem enriquece Sua Casa com muitos dons, mas ele mesmo não tinha ciência de como se dava.
O PODER MISTERIOSO DE DEUS
Tudo o que foi escrito até agora serve para resolvermos esta questão: como os mártires que se interessam pelas coisas humanas se manifestam, atendendo as nossas orações, uma vez que os mortos ignoram o que fazem os vivos? Com efeito, sabemos, não por vagos rumores, mas por testemunhas dignas de fé, que o confessor Félix – cujo túmulo tu veneras piedosamente como santo asilo – deu não apenas mostras de seus benefícios, mas até de sua presença, ao aparecer aos olhos dos homens durante o cerco da cidade de Nola pelos bárbaros. Esses fatos excepcionais acontecem graças à permissão divina e estão longe de entrar na ordem normalmente estabelecida para cada espécie de criatura. Não podemos concluir pelo fato da água ter se transformado em vinho pela palavra do Senhor, que a água tenha poder de operar por si mesma essa transformação pela propriedade natural de seus elementos, visto que tratou-se de uma operação divina excepcional e até única! Também o fato de Lázaro ter ressuscitado não significa que todo morto possa se levantar quando quiser ou que possa ser normalmente acordado como qualquer homem adormecido.
Uns são os limites do poder humano; outras são as marcas do poder divino. Uns são fatos naturais; outros, miraculosos, ainda que Deus esteja presente na natureza para a manter na existência e a natureza tenha seu lugar inclusive para os milagres. Assim, é necessário não crer que todos os defuntos – sem excessão – podem intervir nos problemas dos vivos apenas pelo fato de que os mártires tenham obtido curas ou prestado outros socorros. É preciso compreender, ao invés, que é por causa do poder de Deus que os mártires intervêm nos nossos interesses, pois os mortos não possuem tal poder por sua própria natureza. Há, porém, uma questão que ultrapassa os limites da minha inteligência: como os mártires, que sem sombra de dúvida socorrem seus devotos, aparecem… em pessoa e no mesmo momento? em vários lugares e afastados uns dos outros? sua ação se faz notar apenas onde se encontra o seu túmulo ou em qualquer outro lugar? se permanecem confinados na morada reservada a seus méritos, longe de qualquer relacionamento com os mortais, contentam-se em interceder pelas necessidades daqueles que lhes suplicam?
Oram da mesma forma que nós oramos pelos mortos, sem estar presentes e sem saber onde estão e o que fazem? Não será Deus, o Deus onipotente e onipresente, que não se acha confinado em nós e muito menos afastado de nós, que atende as orações dos mártires, servindo do ministério dos anjos, cuja ação se estende sobre todas as coisas, para distribuir o consolo aos homens que Ele julga ser necessário para enfrentar as misérias da vida presente? Não será Ele que, com poder admirável e infinita bondade, faz resplandecer os méritos dos mártires onde Ele quer, quando quer, como quer, especialmente nos locais onde se ergueram suas sepulturas, por saber que a lembrança dos sofrimentos suportados em confissão a Cristo, nos é útil para nos confirmar na fé? Repito: esta é uma questão muito elevada e complexa para mim, de forma que não a posso explicá-la a fundo… Dessas duas hipóteses que indiquei, qual será a verdadeira? Talvez os dois processos sejam empregados em conjunto, de maneira que, às vezes, os mártires nos atendem com sua presença pessoal, e, às vezes, por intermédio dos anjos que tomam a sua forma. Não ouso decidir e preferiria esclarecer-me junto a homens sábios que conheçam o assunto. Não digo que ignore ou imagine que saiba pois é impossível que não haja alguém que saiba porque Deus, em suas liberalidades, concede certos dons a alguns e outros dons a outros, conforme o ensino do Apóstolo que diz que a ação do Espírito Santo manifesta-se em cada um de acordo com uma utilidade comum.
O Cuidado Devido aos Mortos, cap. XVI, ano 421 d. C.
É por esse motivo que muitas pessoas, ao perguntarem aos católicos como os santos respondem às orações, ou se eles são oniscientes como Deus, ficam descontentes com a resposta. Embora entenda que eles não são oniscientes, em geral o católico não sabe. Todavia, a verdade é que nem mesmo Agostinho entendia como ocorria o mistério da ciência dos espíritos dos mártires com respeito aos vivos, mas sabia se tratar de uma verdade que não podia ser negada. Além disso, ele compreendia ser tal atuação conforme o poder de Deus, que atua em mistério. Sabemos que os santos estão com Deus, e que participam de sua Vida, mas como isso se dá, não nos foi revelado. Por isso, não há vergonha alguma em admitir que não compreendemos bem, sendo-nos tão somente permitido dizer, como o Bispo de Hipona, que é pelo poder de Deus que tais maravilhas ocorrem para o bem da Santa Igreja.
Orações aos Anjos

Foto de Levi Meir Clancy via Unsplah
Se a oração por intercessão feita aos espíritos de homens mortos não é tão evidente num primeiro momento, sobretudo caso não compreendamos a teologia por trás da prática, o caminho até a prece aos anjos é muito mais natural. Os anjos apresentam, desde o Velho Testamento, uma atuação forte entre os filhos de Deus. Sempre foi algo comum, portanto, a compreensão desses seres como criaturas conscientes entre nós, aparecendo com alguma mensagem ou prestando algum socorro. Sendo assim, à luz de versos tão explícitos nas Escrituras, seria difícil considerar a proibição de algum homem de se dirigir a eles, pedindo que orassem a Deus em seu favor. Se você quiser saver mais sobre eles, sugiro o texto: Por que os anjos são chamados espíritos ministradores?
O PASTOR DE HERMAS
[O Pastor disse:] ‘Mas aqueles que são fracos e preguiçosos em oração, hesitam em pedir qualquer coisa ao Senhor; mas o Senhor é cheio de compaixão e dá sem falta a todos quantos lhe pedirem. Mas tu, [Hermas], tendo sido fortalecido pelo santo anjo [que viste], e tendo obtido dele tal intercessão, e não sendo preguiçoso, por que não pedes ao Senhor entendimento, e dele o recebes?’
– O Pastor de Hermas, 3:5:4, 80 d.C.
Ele morreu em 391, mas escreveu uma oração a um anjo da guarda que foi preservada:
Santo anjo, a quem esta pobre alma e este meu corpo miserável foram entregues, não me rejeite porque sou um pecador, não se afaste de mim por eu não ser limpo. Não ceda seu lugar ao espírito maligno; guia-me pela tua influência no meu corpo mortal. Tome a minha mão flácida e me conduza até o caminho que leva à salvação. Sim, santo anjo, Deus lhe deu o comando de minha miserável alma e corpo. Perdoe todas as minhas ações que já o ofenderam em qualquer tempo da minha vida; perdoe os pecados que cometi hoje. Proteja-me durante a noite que se aproxima e mantenha-me a salvo das maquinações e artifícios do Inimigo, de modo que eu não acabe pecando e despertando a ira de Deus. Interceda por mim junto ao Senhor; peça-lhe que me faça temê-lo cada vez mais e que me capacite a prestar-lhe o serviço que a sua bondade merece. Amém.
– Oração ao Anjo Guardião, entre os anos 340- 380
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
O céu não é mais uma parede divisória. A princípio, os anjos eram equivalentes ao número das nações; mas agora, não de acordo com o número das nações, mas com o número dos crentes. A partir de onde isso fica evidente? Ouça Cristo dizendo: Veja, não desprezeis nenhum destes pequeninos, pois seus anjos sempre contemplam a face de meu Pai que está nos céus. [Mateus 18:10] Pois cada crente tem um Anjo; desde o início, cada um dos aprovados tinha seu anjo, como diz Jacó, “o anjo que me alimenta e me livra desde a minha juventude” [Gênesis 48:15-16]. Se temos anjos por perto, sejamos sóbrios, como se estivéssemos na presença de tutores; pois há um demônio presente também. Por isso oramos, pedindo pelo Anjo da paz, e em toda parte pedimos paz (pois não há nada semelhante a isso); a paz, nas Igrejas, nas orações, nas súplicas, nas saudações; e uma vez, e duas, e três vezes, e muitas vezes, aquele que está sobre a Igreja a concede, Paz seja convosco.
– Homilia 3 sobre a Epístola de Colossenses, 360-407
Proibição de Adoração aos Anjos
Assim como o exemplo de Santo Agostinho com respeito aos mártires, a Igreja Primitiva também possuía regras para o tratamento dos anjos. Como toda e qualquer doutrina, a intercessão dos anjos pode ser corrompida. Por isso, o cânone 35 do Sínodo de Laodiceia proíbe que saindo da Igreja e abandonando a comunhão, os fiéis invocassem anjos e se envolvessem em idolatria.
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Atenção: Este cânon, embora tenha sido usado inúmeras vezes por pessoas contrárias à prática da intercessão dos Anjos, na verdade não promove nenhum fundamento à causa delas. Muitas dessas pessoas se arvoram nesse trecho para condenar a doutrina sem considerar o contexto inteiro do decreto, não possuindo por isso muita solidez em sua reivindicação: na verdade, o Concílio em questão possui outros cânones demonstrando sua aceitação do culto (veneração) e da prece aos santos mártires. Ou seja, não faria sentido aceitar a oração feita aos espíritos dos homens no céu, mas condenar a oração feita aos anjos também no céu. Por isso a lógica nos indica que não é isso que o texto estava querendo dizer. Além do fato de ele se referir diversas vezes à saída de fiéis da Igreja para invocar anjos idolatricamente e do abandono do culto aos mártires fiéis em favor do culto aos mártires hereges.
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CONCLUSÃO
Espero que esse artigo tenha sido útil de alguma maneira a você. Sinceramente, eu gostei bastante de escrevê-lo. Pelo menos servirá como uma pequena introdução àqueles que desejarem se aprofundar no tema, de modo a elucidar mais a questão e fornecer uma melhor compreensão dessa prática tão antiga da fé cristã. Deus abençoe.
Foto Principal de Viktor Talashuk na Unsplash
REFERÊNCIAS
Artigo da Universidade de Dayton “Prayers of Saints to Mary”
Enciclopédia Católica NEW ADVENT
Livro The Greatest Marian Prayers : Their History, Meaning, and Usage
Site Catholic Answers
Site Aleteia




