Santo Agostinho era Protestante?

Victor Rodrigues

Victor Rodrigues

Muitos teólogos protestantes afirmam, categoricamente, que Santo Agostinho não era exatamente católico, mas que era uma espécie de “protoprotestante” da Antiguidade. O motivo disso é que os reformadores protestantes João Calvino e Lutero muitas vezes citavam Santo Agostinho em seus escritos, pois tinham o objetivo de validar suas próprias doutrinas, negando que estariam trazendo algo novo, mas sim a doutrina de sempre, que supostamente a Igreja Católica teria deixado de seguir. Mas será que isso procede? Ou será que os reformadores protestantes citavam Agostinho só naquilo que lhes convinha e omitiam diversas outras falas? Vejamos, portanto, o que o doutor da Graça dizia sobre algumas doutrina católicas.

 

Santo Agostinho e o Purgatório

 

“Senhor, não me interpeles na tua indignação. Não me encontres entre aqueles a quem haverás de dizer: ‘ide para o fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos’. Nem me corrijas em teu furor, mas purifica-me nesta vida e torna-me tal que já não necessite do fogo corretor, atendendo aos que hão de salvar-se, ainda que, não obstante, como que através do fogo. Por que acontece isto se não é porque edificam aqui sobre o cimento, lenha, palha e feno? Se tivesse edificado sobre o ouro, a prata e as pedras preciosas, estariam livres de ambas as classes de fogo, não apenas daquele eterno, que atormentará os ímpios para sempre, mas também daquele que corrigirá aos que hão de salvar-se através do fogo” (Comentário ao Salmo 37,3)

“A razão pela qual não se rezará pelos homens votados ao fogo eterno é a mesma razão pela qual, nem agora nem nunca, não se reza pelos maus anjos, e é ainda pela mesma razão que a partir de agora não se reza já pelos infiéis e ímpios defuntos, ainda que se reze pelos homens. Pois, a favor de certos defuntos, a prece da própria Igreja e de alguns homens piedosos é atendida, mas por aqueles que estão regenerados em Cristo, e cuja vida no seu corpo não foi tão má que sejam julgados indignos de tal misericórdia, nem tão boa que se suponha que uma tal misericórdia não lhes será necessário”: também depois da ressurreição dos mortos haverá aqueles a quem, após as penas que sofrerão as almas dos mortos, será concedida essa misericórdia que lhes evitará serem lançados no fogo eterno. Com efeito, a respeito de alguns não se poderá dizer com verdade que não lhes é perdoado nem no século presente nem no século futuro, pois existem aqueles a quem o perdão, se não Ihes é concedido neste século sê-lo-á no século futuro.” (Cidade de Deus, XXI. 24)

“Que algo semelhante aconteça igualmente depois desta vida, não é impossível. Será de facto assim? É lícito investigá-lo, seja ou não para o descobrir. Alguns fiéis (neste caso) poderiam, mais cedo ou mais tarde, ser salvos por um fogo purgatório, conforme tenham amado mais ou menos os bens transitórios.”(Enchiridium 69)

 

Santo Agostinho e a Imaculada Conceição de Maria

 

“Nem se deve tocar na palavra ‘pecado’ em se tratando de Maria; e isto em respeito Àquele de quem mereceu ser a Mãe, que a preservou de todo pecado por sua graça” (Sermão 215,3)

“Não entregamos Maria ao diabo por condição original pois afirmamos que sua própria condição original se anula pela graça da redenção.” (Contra Juliano. 4)

“Exceto a Santa Virgem Maria, da qual não quero, por honra do que é devido ao Senhor, suscitar qualquer questão ao se tratar de pecados, pois sabemos que lhe foi concedida a graça para vencer por todos os flancos o pecado, porque mereceu ela conceber e dar à luz a quem não teve pecado algum.” (De Natura et Gratia 36)

 

Santo Agostinho e o cânon das Escrituras

 

Santo Agostinho presidiu o Concílio de Hipona em 393. Abaixo temos o Cânon das Escrituras definido nesse Concílio. Além disso é conhecido o fato de que Agostinho citava amplamente todos esses livros como inspirados.

 

“Cânon XXXVI: Além das Escrituras Canônicas, nada deve ser lido sobre o título de Divinas Escrituras. E as Escrituras Canônicas são: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, os quatro Livros dos Reis [ I, II, III e IV ], os dois Livros do Paralipômenos [ I Crônicas e II Crônicas ], Jó, o Saltério de Davi, os cinco Livros de Salomão [ Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Sirácida ], os doze Livros dos Profetas [ Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias ], Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, os dois Livros de Esdras [ Esdras e Neemias ] e dois Livros dos Macabeus [ I e II ]. E do Novo Testamento: quatro Livros dos Evangelhos, um Atos dos Apóstolos, treze epístolas de Paulo, uma do mesmo aos Hebreus, duas de Pedro, três de João, uma de Tiago, uma de Judas e o Apocalipse de João. Sobre a confirmação deste cânon se consultará a Igreja do outro lado do mar. A leitura da Paixão dos Mártires será permitida na celebração de seus respectivos aniversários.” (Hipona, 8 de outubro de 393)

 

Santo Agostinho e as imagens sagradas

 

“E assim Pedro e Paulo lhes ocorreu, eu acredito que, só porque em muitos lugares tiveram a chance de ver esses dois apóstolos representados em imagens ambos em companhia com Ele. Pois Roma, de uma maneira especialmente honrada e solene, elogia os méritos de Pedro e de Paulo, por este motivo, entre outros, a saber, sofreram [martírio] no mesmo dia.”(Harmonia dos Evangelhos Livro I, Capítulo X)

“É quase impossível que ele possa ter esquecido desta ação tão famosa, que se repete com a mente de si mesmo, sem qualquer estudo ou reflexão, e é de fato repetido por tantas línguas, e retratado em tantos lugares, que ninguém pode fingir fechar os olhos ou os ouvidos a ela.” (Contra Fausto XXII, 73)

 

Santo Agostinho e a Eucaristia (Transubstanciação)

 

“Aquele pão que vedes sobre o altar, sendo santificado pela palavra de Deus, É O CORPO DE CRISTO. Aquele cálice, ou melhor, o que está naquele cálice, sendo santificado pela palavra de Deus, É O SANGUE DE CRISTO. Através daquele pão e vinho o Senhor Cristo quis elogiar SEU CORPO E SANGUE, QUE ELE DERRAMOU POR NÓS PARA O PERDÃO DOS PECADOS” (Sermões 227)

“O Senhor Jesus queria que aqueles cujos olhos foram mantidos para reconhecê-lo, reconhecê-lo no partir do pão [Lucas 24:16,30-35]. Os fiéis sabem o que eu estou dizendo que eles conhecem a Cristo na fração do pão. Pois nem todo pão, mas apenas aquele que recebe a bênção de Cristo, TORNA-SE CORPO DE CRISTO.” (Sermões 234, 2)

 

Santo Agostinho e a missa como sacrifício

 

“No sacramento ele é imolado para as pessoas, não só em cada solenidade da Páscoa, mas em todos os dias; e um homem não estaria mentindo se, quando perguntado, ele fosse responder que Cristo está sendo imolado. Pois se sacramentos não tinham uma semelhança a essas coisas de que são sacramentos, não seriam sacramentos em tudo, e eles geralmente levam os nomes das mesmas coisas por causa desta semelhança.” (cartas 98:9).

 

Santo Agostinho e a autoridade da Tradição Apostólica

 

Esse costume que, conforme creio, vem da tradição apostólica, assim como não se encontram muitas coisas em suas cartas e nem nos concílios de seus sucessores, mas, no entanto, porque são conservados em toda a Igreja, é considerado como transmitido e recomendado por eles. (Agripino e a Tradição Apostólica, 12)

“Mas com relação àquelas observâncias que seguimos cuidadosamente e que o mundo todo mantém, e que não vêm da Escritura, mas da Tradição, é-nos concedido compreender que foi ordenado e recomendado que a guardássemos seja pelos próprios apóstolos, seja pelos Concílios plenários, a autoridade que é tão vital para a Igreja.” (Carta a Januário, I).

 

Santo Agostinho, regeneração batismal e batismo infantil

 

“É este Espírito que torna possível para uma criança ser regenerada… quando esse bebê é levado para o batismo, e é por meio desse Espírito que a criança assim apresentada renasce. Pois não está escrito, ‘A menos que um homem nasça de novo pela vontade de seus pais ou ‘por a fé daqueles apresentando-o ou ministrando a ele’, mas, ‘a menos que um homem nasça de novo da água e do Espírito Santo’. A água, portanto, manifestando-se exteriormente o sacramento da graça, e o Espírito efetuando interiormente o benefício da graça, ambos regenerado em Cristo aquele homem que foi gerado em Adão.” (Cartas 98:2).

“O Batismo lava todos, absolutamente todos, os nossos pecados, seja de ação, palavra ou pensamento, seja original ou pecados acrescentados, seja consciente ou inconscientemente contraídos.” (Contra duas cartas dos pelagianos 3, 3:5).

 

Santo Agostinho e a intercessão dos Santos

 

“O povo cristão celebra unidos em solenidade religiosa a memória dos mártires, tanto para encorajar que sejam imitados e para que possam repartir seus méritos e serem auxiliados pelas suas orações.” (Contra Fausto, o maniqueísta. Livro XX, 21)

“Na mesa do Senhor não comemoramos os mártires da mesma forma que fazemos aos outros que descansam em paz, de modo a orar por eles, mas sim que eles podem orar por nós para que possamos seguir os seus passos.” (Homilias sobre João, 84)

 

Nem há muito o que comentar após esses textos. Observamos, que Santo Agostinho não somente era católico, mas profundamente católico, e não tem nada de protestante. Os reformadores protestantes, bem como os teólogos protestantes atuais, só citam Agostinho quando lhes convém, normalmente em questões que, ou são comuns aos católicos e aos protestantes, ou que supostamente validam doutrinas de grupos específicos dentro do protestantismo, isso quando não as citam completamente fora do contexto. E, obviamente, omitem o verdadeiro Agostinho, que é um bispo completamente católico.

 

Imagem: Santo Agostinho de Hipona lava os pés de Cristo

De Theodoor Rombouts   [ Domínio Público]

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Victor Rodrigues

Antônio Victor Matos Rodrigues, formado em Administração de Empresas e escritor independente, convertido ao catolicismo após viver como protestante desde a infância até os 27 anos.

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