O que significa dizer que Jesus “se tornou pecado”?

Joe Heschmeyer

Joe Heschmeyer

São Paulo em 2 Coríntios 5 usa uma expressão estranha, na qual declara que Deus Pai fez Cristo, isto é, aquele que não conheceu pecado,  “ser pecado”. O que significa isso, afinal? Aqui está o contexto (2 Coríntios 5:17-21):

 

Portanto, se alguém está em Cristo, é uma nova criação; o velho já passou, eis que chegou o novo. Tudo isto vem de Deus, que através de Cristo nos reconciliou consigo mesmo e nos deu o ministério da reconciliação; isto é, Deus estava em Cristo reconciliando o mundo consigo mesmo, não imputando contra eles as suas transgressões, e confiando-nos a mensagem da reconciliação. Portanto, somos embaixadores de Cristo, Deus fazendo o seu apelo através de nós. Suplicamos-te, em nome de Cristo, que te reconcilieis com Deus. Por nossa causa, ele fez pecado àquele que não conheceu pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus.

 

I. O que significa Cristo ter se tornado pecado

 

Se você não se lembrar de mais nada desse post, pelo menos lembre-se disto: “pecado” é o termo que os judeus usavam para ofertas pelo pecado. A palavra hebraica חַטָּאָת (chatta’ath) significa tanto “pecado” quanto “oferta pelo pecado”. Na KJV (Versão King James), é traduzido como “pecado” 182 vezes, e como “oferta pelo pecado” 116 vezes. Caso você não queira clicar no link para a Concordância de Strong, aqui está a parte mais importante:

 

Foto de Paul Zoetemeijer na Unsplash

Outra maneira de defender o argumento de São Paulo é dizer que Cristo, Aquele que não tem pecado, foi feito nossa oferta pelo pecado.

 

Portanto, Paulo não está atribuindo a Cristo o mal. Isso é crucial. O pecado é mau e, portanto, chamar Cristo de “pecado” (na forma como usamos a palavra) seria chamá-lo de mau, uma heresia óbvia (especialmente porque Paulo acabou de dizer que Cristo não tem pecado). Chamá-lo de nossa oferta pelo pecado, por outro lado, é completamente ortodoxo. Cristo morreu pelos nossos pecados: esse é o fundamento da teologia cristã. A propósito, os Padres da Igreja sabiam disso. O Ambrosiastro do século IV salienta que “tendo em vista o fato de que ele foi feito uma oferta pelos pecados, não é errado que se diga que ele foi feito ‘pecado’, porque na lei, o sacrifício que era oferecido pelos pecados costumava ser chamado de ‘pecado’”. E como o latim, assim como o hebraico, usa a mesma palavra para pecado e oferta pelo pecado, eles não eram propensos a interpretar mal o versículo da mesma forma que nós, falantes de português. O segundo ponto mais importante a se lembrar: a oferta pelo pecado não somente não se tratava de algo rejeitado por Deus, mas também era uma das poucas coisas permitidas no Santo dos Santos. Moisés repreende Eleazar e Itamar em Levítico 10:17-18 por não comerem a oferta pelo pecado na parte mais interna do santuário, por causa de sua santidade:

 

¹⁷ Por que não comestes a expiação do pecado no lugar santo, pois é coisa santíssima e Deus a deu a vós, para que levásseis a iniqüidade da congregação, para fazer expiação por eles diante do Senhor?

¹⁸ Eis que não se trouxe o seu sangue para dentro do santuário; certamente devíeis ter comido no santuário, como tenho ordenado.

Levítico 10:17

Até mesmo o sumo sacerdote Arão só tinha permissão de comparecer diante da Arca da Aliança uma vez por ano (no Yom Kippur, o Dia da Expiação) com uma oferta pelo pecado (Lv 16:2-3, 34). Séculos mais tarde, Ezequiel teria uma visão profética do Templo vindouro, no qual a oferta pelo pecado manteria seu lugar de santidade (Ez 42:13-14):

 

¹³ Então me disse: As câmaras do norte, e as câmaras do sul, que estão diante do lugar separado, elas são câmaras santas, em que os sacerdotes, que se chegam ao Senhor, comerão as coisas mais santas; ali porão as coisas mais santas, e a oferta de manjar, a oferta pelo pecado, e a oferta pela culpa; porque o lugar é santo.
¹⁴ Quando os sacerdotes entrarem, não sairão do santuário para o átrio exterior, mas porão ali as suas vestiduras com que ministraram, porque elas são santas; e vestir-se-ão de outras vestiduras, e assim se aproximarão do lugar pertencente ao povo.

Ezequiel 42:13,14

 

Portanto, Jesus está sendo equiparado à oferta sagrada pelo pecado, o sacrifício mais sagrado que os judeus ofereciam. E esta oferta de sacrifício agradou a Deus, tanto que Ele a permitiu entrar no santuário mais recôndito, diante do Santo dos Santos.

 

II. O que Cristo ter se tornado pecado não significa

 

Portanto, os dois últimos pontos eram bastante diretos, mas exigiam a compreensão da maneira estranha como os judeus usavam o termo “pecado” para indicar tanto o pecado em si quanto o pagamento por ele. As analogias mais próximas presentes em nossa língua, nas quais consigo pensar, são com respeito a termos como “cheque” e “conta”, que significam tanto uma dívida como um pagamento de uma dívida. Quando os teólogos não têm conhecimento disso, produzem teologias desastrosas. Deixe-me dar a você alguns exemplos:

Jeremy Myers, do Redeeming God, interpreta mal o versículo da seguinte forma:

 

Na cruz, Jesus é ao mesmo tempo a coisa mais linda que o mundo já viu e a mais repugnante. Jesus é o mais justo e o mais pecador. A cruz de Jesus está cheia de amor e horror. Amor, pelo que Jesus fez, mas horror, pelo que Jesus se tornou: tornou-se pecado. Esta é a verdade de 2 Coríntios 5:21. Jesus se tornou pecado por nós. Deus o fez pecado. Jesus foi desprezado, rejeitado e odiado (Is 53:2-6). As pessoas olharam para Ele com repulsa. Até Deus O rejeitou (Mateus 27:46).

 

Caramba! Obviamente, tal declaração interpreta mal 2 Coríntios 5:21. Ela vê Jesus como a ofensa do pecado, em vez da oferta pelo pecado, e vê Jesus como rejeitado por Deus, quando Ele é o Filho Amado (2 Pedro 1:17) e também é Deus (João 1:1). Então não, Deus não rejeitou a si mesmo, tampouco a Santíssima Trindade se despedaçou.

Ron Rhodes, do Christian Research Institute, fornece outros exemplos de protestantes interpretando esse verso de forma herética:

 

Com base neste versículo, por exemplo, os Cristadelfianos argumentam que Jesus teve de se envolver em uma auto-redenção antes de procurar redimir o resto da humanidade: “Ele mesmo exigiu uma oferta pelo pecado”; Ele “salvou-se a si mesmo para nos salvar”.

Os líderes da Word-Faith adotam uma abordagem diferente – embora ainda mais herética – do versículo. Kenneth Copeland, por exemplo, afirma que Jesus “teve que renunciar à Sua justiça” e “aceitou a natureza pecaminosa de Satanás”. Benny Hinn também declara que Jesus “não levou meu pecado; Ele se tornou meu pecado… Ele se tornou um com a natureza de Satanás.”

 

Mas quando pessoas como Kenneth Copeland afirmam que 2 Coríntios 5:21 significa que Jesus “teve que renunciar à Sua justiça”, elas estão se fundando numa tradição protestante mais antiga (ainda com muitos erros). Charles Spurgeon (1834-92), um dos mais famosos pregadores e teólogos protestantes do século XIX, achava que esse versículo significava que:

 

Deus impõe ao Salvador imaculado o pecado do culpado, para que Ele se torne, na linguagem expressiva do texto, pecado. Dessa maneira, Ele tira do Salvador inocente Sua justiça e a coloca na conta dos pecadores outrora culpados, com o fim de que os pecadores se tornem justiça – justiça da fonte mais elevada e divina – a justiça de Deus em Cristo Jesus.

Sermão O Coração do Evangelho

Sermão 1910

 

Deixe de lado por um momento o fato de que é impossível para Jesus Cristo deixar de lado (ou ser despojado de) Sua justiça, sendo perfeitamente Deus e homem. Um Cristo despojado de justiça não seria capaz de expiar os nossos pecados. A questão toda é que a oferta pelo pecado é algo maravilhoso e aceitável (e até mesmo agradável!) a Deus, e não uma coisa que Deus odeia. Isto também explica por que Kendall Easley, da The Gospel Coalition, está errado ao afirmar que “Deus tratou Jesus como se ele fosse o próprio pecado”. Mas não, o ponto principal da oferta pelo pecado é que ela era santa, extremamente santa, e poderia, por conta disso, estar na presença do Santo dos Santos. Não é assim que o pecado é tratado. É por isso que as Escrituras enfatizam repetidamente que a oferta pelo pecado deve ser imaculada (Levítico 4:3, 4:32, 9:2-3, Números 6:14, Ezequiel 43:22, etc.). A oferta pelo pecado é externamente pura como um sinal de sua santidade e como uma prefiguração da oferta perfeita e sem pecado, que é Jesus Cristo. Portanto, afirmar que Jesus é tratado como pecado é 100% errado.

Falando de Kenneth Copeland, vale a pena ler a parte relevante do seu sermão sobre o assunto, apenas para ficarmos cientes do perigo que é uma má teologia:

 

Aquele que não conheceu pecado foi feito pecado. Ele fez a mesma coisa que Adão fez no Jardim do Éden! Ele se tornou obediente até a morte e se colocou nas mãos do inimigo de Deus, Satanás. Só Ele fez isso – Ele cometeu esse ato não por traição, mas por escolha. Ele fez isso para pagar o preço pela traição de Adão. Ele se colocou e se fez obediente até a morte, e aconteceu com Ele a mesma coisa que aconteceu com Adão: a morte espiritual! Agora escute. Se tivesse sido apenas uma morte física, não teria funcionado. E se Ele não tivesse morrido espiritualmente, esse corpo nunca teria morrido.

 

Ele está acusando Jesus de cometer o pecado de Adão e de morrer espiritualmente, tornando-se obediente a Satanás. Sem querer usar a palavra levianamente, isso é seriamente herético. Mas aqui, novamente, a afirmação herética está na verdade enraizada numa tradição protestante mais antiga. Agora encontramos o reformador João Calvino também afirmando que Jesus morreu espiritualmente, a fim de sentir o peso da (sua própria??) vingança divina:

 

Nada teria ocorrido se Cristo tivesse apenas suportado a morte corporal. Para se interpor entre nós e a ira de Deus e satisfazer o seu justo julgamento, era necessário que ele sentisse o peso da vingança divina. Daí também foi necessário que ele fosse envolvido, por assim dizer, de perto com os poderes do inferno e os horrores da morte eterna. Recentemente, citamos o Profeta, que diz: o “castigo que nos traz a paz foi imposto sobre ele”, que ele “foi ferido por nossas iniquidades”, que ele “suportou nossas enfermidades”; expressões que sugerem que, como patrocinador e fiador dos culpados, e, por assim dizer, como sujeito à condenação, ele assumiu e pagou todas as penas que devem ter sido exigidas delas, sendo a única exceção o fato de que as penas de morte não foram capazes de segurá-lo. Portanto, não há nada de estranho em se dizer que ele desceu ao inferno, visto que suportou a morte que é infligida aos ímpios por um Deus irado.

 

A maioria dos teólogos protestantes em questão são simplesmente ignorantes, tendo herdado uma má teologia e tendo encontrado uma expressão reconhecidamente desconcertante (e chocante) em 2 Coríntios 5:21. Mas Calvino está na verdade rompendo de forma consciente com a tradição neste ponto. Ele escreve em seu comentário sobre a passagem:

 

É comumente observado que pecado aqui denota um sacrifício expiatório pelo pecado e, da mesma forma, o termo latino é piaculum. Paulo também, nesta e em outras passagens, tomou emprestada esta frase dos hebreus, entre os quais ‘sm (asham) denota um sacrifício expiatório, bem como uma ofensa ou crime. Mas o significado desta palavra, bem como de toda a afirmação, será melhor compreendido a partir de uma comparação de ambas as partes da antítese. […] O que, por outro lado, é denotado por pecado? É a culpa pela qual somos acusados ​​no tribunal de Deus. Assim como, no entanto, a maldição do indivíduo foi lançada sobre a vítima, a condenação de Cristo foi a nossa absolvição, e pelas suas pisaduras fomos curados. (Isaías 53:5.)

 

Em outras palavras, ele reconhece que a leitura normal de “foi feito pecado” para aqueles familiarizados com as expressões idiomáticas hebraicas é ter sido feito uma oferta pelo pecado. Mas Calvino pensa que sabe mais, e que deveríamos ler o texto como sendo a condenação de Cristo. Dessa forma, Calvino na verdade rompe com a visão cristã comum antes da Reforma (a visão dos Pais da Igreja, e a visão daqueles familiarizados com os idiomas judaicos), e impõe uma nova interpretação da passagem que requer a condenação de Cristo ao Inferno. E encontramos esta visão herética surgindo na teologia protestante desde então.

 

Conclusão

 

Jesus tornou-se nossa oferta pelo pecado, que é o que São Paulo quis dizer com a frase “tornar-se pecado”. Como oferta pelo pecado, Ele foi, é e sempre será (a) sem mácula, (b) indescritivelmente santo, (c) amado por Seu Pai, (d) aceitável e agradável aos Seus olhos, e (e) capaz de adentrar no Santo dos Santos. Os Padres da Igreja entenderam isso. Infelizmente, muitos protestantes, de Calvino e Spurgeon a Copeland e The Gospel Coalition, estragaram tudo e chegaram a conclusões heréticas, pensando que o fato de Jesus ter sido feito pecado significa que Ele foi despojado de Sua justiça (isto é, daquilo que dá valor ao Seu Sacrifício), tornou-se repugnante ao Pai, ou mesmo que Ele assumiu uma natureza pecaminosa e/ou sofreu uma morte espiritual. Tais pontos de vista são incompatíveis com qualquer compreensão remotamente ortodoxa da Santíssima Trindade, da impecabilidade de Cristo e da Sua natureza divina e humana sem mistura.

 

Tradução de What Does it Mean to Say That Jesus “Became Sin”?

 

Foto de Mikhail Villegas via Unsplash

 

 

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Joe Heschmeyer

Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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