O PURGATÓRIO JUDAICO

Joe Heschmeyer

Joe Heschmeyer

Será que os católicos estão certos em rezar pelos mortos e em acreditar que tais orações podem ajudar a libertar almas do Purgatório?

Michael F. Ross, no Christian Research Journal, afirma que “o Purgatório é uma ideia extrabíblica, importada para a igreja na Idade Média – um produto da tradição, mas não das Escrituras”. Outros, como W.Y. Evans-Wentz, argumentaram que a ideia do Purgatório tem origem pagã, tendo sido inventada quando “a doutrina irlandesa do Outro Mundo em todos os seus aspectos, mas especificamente à medida que o mundo subterrâneo dos Sidhe ou do povo das fadas, foi combinado à Doutrina greco-romana do Hades.” Todavia, a oração pelos mortos e a crença em chamas temporais do purgatório não têm origem medieval nem pagã. Na verdade, há evidências claras da crença judaica sobre isso que remontam às crenças cristãs sobre o assunto (ambas as quais são muito anteriores à Idade Média). Por exemplo, muitos cristãos não sabem que é uma prática judaica padrão a oração pelos mortos. O antigo “Kadish dos Enlutados” é uma oração aramaica que ainda hoje é feita e é recitada em nome dos mortos. Como explica a Biblioteca Virtual Judaica,

 

O Kadish dos Enlutados é recitado durante onze meses a partir do dia da morte e também no yahrzeit (aniversário da morte). Uma pessoa pode recitar o Kadish não apenas para os pais, mas também para um filho, irmão ou parente. Um filho adotivo deveria dizer isso pelos pais adotivos que o criaram.

 

E vemos tais orações realizadas em favor dos mortos em 2 Macabeus 12:39-45, um texto que data de antes da época de Cristo:

 

No dia seguinte, como já era necessário, Judas e seus homens foram recolher os corpos dos caídos e trazê-los de volta para repousar com seus parentes nos sepulcros de seus pais. Então, sob a túnica de cada um dos mortos, encontraram símbolos sagrados dos ídolos de Jâmnia, que a lei proíbe os judeus de usar. E ficou claro para todos que foi por isso que esses homens caíram. Assim todos abençoaram os caminhos do Senhor, o justo Juiz, que revela as coisas que estão escondidas; e eles se voltaram para a oração, suplicando que o pecado cometido pudesse ser totalmente apagado. E o nobre Judas exortou o povo a manter-se livre do pecado, pois tinham visto com os próprios olhos o que havia acontecido por causa do pecado daqueles que haviam caído. Ele também fez uma coleta, homem por homem, no valor de duas mil dracmas de prata, e enviou-a a Jerusalém para fornecer uma oferta pelo pecado. Ao fazer isso, ele agiu muito bem e com honra, levando em conta a ressurreição. Pois se ele não esperasse que aqueles que haviam caído ressuscitassem, teria sido supérfluo e tolo orar pelos mortos. Mas se ele estava olhando para a esplêndida recompensa reservada para aqueles que adormecem na piedade, era um pensamento santo e piedoso. Por isso fez expiação pelos mortos, para que fossem libertos dos seus pecados.

2 Macabeus 12

 

Pintura a óleo de Alonso Cano (1636) 

Licença: Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0

 

 

Quer você aceite ou não o livro de 2 Macabeus como Escritura, ainda assim, ele mostra claramente que essas orações pelos mortos ocorriam há séculos, ou mesmo milênios, antes da Idade Média. Isso também é algo significativo, uma vez que a maioria dos cristãos ao longo da história aceitou o livro de 2 Macabeus como Escritura inspirada. Não houve necessidade, portanto, de recorrer ao paganismo irlandês ou romano para encontrar tais ideias: elas já estavam ali mesmo, dentro das nossas Bíblias. Também é significativo o fato de que tal prática judaica de orar pelos mortos está intimamente ligada à ideia de que isso liberta as almas dos mortos. O midrash Tanna Devei Eliyahu (תנא דבי אליהו) demonstra isso claramente. A tradução diz:

 

O Rabino Yochanan ben Zakkai disse: “Certa vez eu estava indo pelo caminho e me deparei com um homem que catava lenha. Falei com ele, mas ele não respondeu. Depois o homem veio até mim e disse: ‘Rabi, estou morto, e não vivo.’

Perguntei a ele: ‘Se você está morto, para que precisa dessa madeira?’

Ele respondeu: ‘Rabino, ouça o que estou prestes a lhe dizer. Enquanto eu estava vivo, meu companheiro e eu cometíamos pecado em minha mansão. Quando viemos para este mundo, fomos condenados a queimar. Enquanto eu recolho a lenha, eles queimam meu amigo e enquanto ele junta lenha, eles me queimam.

Eu perguntei, quanto tempo vai durar esta sentença?’

O morto respondeu: ‘Quando vim a este mundo, deixei para trás uma esposa grávida. Eu sei que ela está esperando um menino. Eu imploro, fique de olho nele desde o nascimento até os cinco anos. Em seguida, leve-o para a escola, pois no momento em que ele responder: “Abençoado seja Hashem, que é Bendito”, eu serei liberto do juízo no Gehinnom.’”

Nidchei Yisrael, 15

Above All Else: The Chofetz Chaim on Torah Study Volume 2

 

Portanto, esta é uma descrição judaica de uma alma que sofre nas chamas após a morte, mas apenas temporariamente, de modo que será liberta por causa das orações de seu filho. E esta tradição é atribuída ao Rabino Yochanan ben Zakkai (ou Johanan ben Zakai), um rabino do primeiro século. O texto em si é datado provavelmente de meados do século III, ainda muito antes da Idade Média, e muito distante de qualquer influência irlandesa. Tudo isso é um pano de fundo importante para os debates cristãos sobre o Purgatório e as orações pelos mortos. Primeiro, porque mostra que as doutrinas católicas não são resultado de acréscimos pagãos ao Cristianismo durante a Idade das Trevas, mas um reflexo das raízes judaicas do Cristianismo. E isso deve servir para nos fornecer a informação de como abordamos a evidência bíblica. Por exemplo, é muito mais plausível que 1 Coríntios 3:12-15 seja uma referência ao Purgatório se estivermos cientes de que havia uma compreensão judaica contemporânea das chamas temporais do purgatório. E a declaração de Jesus em Lucas 12:59 (“Eu vos digo: vocês não sairão de lá até que paguem o último ceitil”) faz sentido à luz da crença judaica na Geena/Gehinnom como um local de purgação temporária. Mesmo o argumento protestante mais forte contra a oração pelos mortos (de que não há instruções específicas para a prática no Novo Testamento) fica bastante enfraquecido quando percebemos que os crentes do primeiro século já oravam pelos mortos.

Imagem Principal: Afresco cristão primitivo representando Cristo no Purgatório,

Basílica Inferior de São Clemente em Roma, Itália

Licença:  Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported

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Joe Heschmeyer

Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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