Introdução:
À medida que a solenidade do Dia de Finados (2 de novembro) rapidamente se aproxima conforme o Rito Latino da Igreja Católica, imaginei que uma postagem (ou duas) sobre o Purgatório estava em ordem. Nestes artigos, desejo examinar uma passagem da Primeira Homilia de Marcos de Éfeso (também conhecido como Marcos Eugenikos) na qual ele argumenta contra a concepção católica do “estado intermediário” post mortem, que veio a ser conhecido como Purgatório.

Concílio de Florença – “Nuremburg Chronicles”
Marcos de Éfeso (falecido em 1444) foi talvez o principal oponente do dogma no Concílio de Ferrara-Florença (1438-1445), o qual buscava uma reaproximação entre as Igrejas grega e latina. Embora tenha se encerrado com uma declaração de unidade na forma do Laetentur Caeli, assinada pelos bispos bizantinos presentes (exceto por Marcos), acabou sendo repudiada pela população grega e pela maioria dos prelados que compareceram ao retornar ao Oriente. Assim, o cisma continuou entre católicos e cristãos ortodoxos orientais. Outrora monge, Marcos foi elevado à posição de Metropolita de Éfeso em 1436 pelo imperador João VIII Paleólogo, em preparação para o próximo Concílio. Embora sua formação teológica tenha sido caracterizada como antilatina[1], acredita-se que ele tenha sido sincero em sua esperança de reencontro[2]. Estudiosos ocidentais têm sido historicamente críticos a Marcos, mas essa visão foi contestada nos últimos anos[3]. Em um estudo de 2014, o Pe. Christiaan Kappes “buscou relatar de forma propositalmente positiva uma história da sinceridade, erudição, razoabilidade e humanidade de Marcos durante o próprio concílio[4]“, um esforço com o qual ele obteve sucesso. Tendo em mente tais fatos, podemos introduzir o contexto imediato da Primeira Homilia de Marcos. Seguir-se-á um excerto desse documento traduzido com uma breve análise de algumas das ideias nele expressas (na parte II).
Contexto:
Antes de se dar início aos diálogos oficiais no Concílio de Ferrara-Florença, algumas discussões preliminares ocorreram entre os principais prelados gregos e latinos[5]. De acordo com o hieromonge ortodoxo russo (ROCOR – Russian Orthodox Church Outside of Russia), o Pe. Serafim Rosa, a Primeira Homilia de Marcos foi uma resposta a um documento produzido pelo cardeal Giuliano Cesarani (falecido em 1444) sobre o tema do Purgatório, e “contém o relato mais conciso da doutrina ortodoxa com relação aos erros latinos[6]“. Deixando de lado as alegações quanto aos “erros latinos”, o Pe. Joseph Gill, SJ observou que as opiniões de Marcos de Éfeso sobre o Purgatório dificilmente representavam as de seus contemporâneos bizantinos como um todo, pois não havia uma visão monolítica. Ele acrescentou que “o documento que os latinos entregaram aos gregos após a primeira conferência introduziu o tema com uma declaração do ensino da Igreja Romana, tirada quase textualmente da Profissão de Fé realizada em nome de Miguel VIII Paleólogo no Segundo Concílio de Lyon [Ano 1274]:
As almas dos verdadeiros penitentes que morrerem na caridade antes de terem satisfeito a justiça por meio de frutos dignos de penitência, posto que suas faltas de ação e omissão são purificadas após a morte por meio de dores purgantes e dos sufrágios dos fiéis vivos, isto é, os sacrifícios de Missas, as orações, as esmolas e outras obras de piedade que servem para aliviar as penas dessa natureza; aquelas almas, no entanto, que após o recebimento do batismo não incorreram em nenhuma mancha de pecado, bem como também aquelas que depois de contrair a mancha do pecado foram purificadas ainda em seus corpos ou, da maneira mencionada acima, após deixar seus corpos, são, após algum tempo, recebidas no céu; todavia, as almas que saem desta vida em estado de pecado mortal atual ou apenas com o pecado original descem logo ao inferno, com o fim de serem punidas porém com penas diversas; e, no entanto, no dia do julgamento, todos os homens comparecerão com seus corpos perante o tribunal de Cristo, para prestar contas de suas próprias obras.[7]
Sendo assim, o trecho acima representa a concepção católica do Purgatório de 1274 d.C., e ele a reiterou nas discussões preliminares ao Concílio de Ferrara-Florença. Deve-se notar que o Segundo Concílio de Lyon citado acima foi uma tentativa anterior e igualmente malsucedida de reunir o Oriente e o Ocidente. Como veremos na parte II do presente artigo, Marcos de Éfeso não rejeitou totalmente a noção de um estado intermediário ou de uma purificação post-mortem em sua Primeira Homilia, mas o que ele rejeitou foram alguns dos componentes do Purgatório apresentados pelos latinos com os quais ele esteve em diálogo durante as discussões preliminares em Ferrara-Florença[8]. Ali serão recapitulados alguns dos anteriores, e será produzida e analisada uma citação da Primeira Homilia, destacando semelhanças e diferenças entre o que se encontra na homilia de Marcos e o dogma do Purgatório. Fiquem ligados!
Tradução de Kertelen Ribeiro
Texto Original: Mark of Ephesus and Purgatory (Part I)
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[1] Esta e as informações da frase anterior foram tiradas da Encyclopedia Britannica Online, “Markos Eugenikos”, cujo acesso se deu em 23 de outubro de 2022.
[2] Cf. Joseph Gill, The Council of Florence (Cambridge: Cambridge University Press, 1959), 114; Christiaan Kappes, “A Latin Defense of Mark of Ephesus at the Council of Ferrara-Florence (1438-39),” The Greek Orthodox Theological Review 59, nos. 1-4 (Primavera-Inverno 2014): 164.
[3] Kappes, “A Latin Defense,” 161-164.
[4] Kappes, “A Latin Defense,” 189-190.
[5] Gill, Concílio de Florença, 118-119.
[6] Pe. Serafim Rosa, The Soul After Death: Contemporary “After-Death” Experiences in the Light of the Orthodox Teaching on the Afterlife (Platina: St. Herman of Alaska Brotherhood, 2020), 197.
[7] Gill, Concílio de Florença, 119-120. A afirmação diz: ‘ou apenas com o pecado original desce ao inferno’, deve ser considerada à luz do atual Catecismo da Igreja Católica, parágrafos 1257-1261.
[8] Cf. Gill, Concílio de Florença, 119-125.

