Um leitor me enviou um e-mail com uma pergunta sobre a distinção entre as consequências temporais e eternas devidas ao pecado. Em poucas palavras, a visão católica é que o pecado incorre na condenação eterna, e que Jesus Cristo apaga essa consequência para os crentes através de Sua morte na cruz, mas que Cristo não removeu (e nem pretendia remover) todas as consequências do pecado. Na verdade, como você verá a seguir, é precisamente por causa da morte de Cristo na cruz que o Purgatório existe. A discussão estava relacionada a 2 Samuel 12:13-14. O caso de Davi com uma mulher casada (que ficou grávida dele) o leva a arquitetar a morte do marido dela em batalha. O profeta Natã o confronta sobre isso e Davi se arrepende. Natã então diz: “O Senhor também perdoou o seu pecado; você não morrerá. Contudo, visto que com este ato desprezaste totalmente o Senhor, o filho que te nasceu morrerá. Essa é uma distinção bastante clara entre consequências eternas (a morte eterna) e consequências temporais (a perda de seu filho). O leitor sugeriu que poderia ser diferente hoje, já que Davi viveu isso antes da época de Cristo. Eu não acho que seja. Aqui está o porquê:

Léon Bonnat, Crucificação (1880)
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- Presumo que o leitor acredite que Davi foi salvo do fogo do Inferno. Se for esse o caso, presumo que o leitor também acredita que isso ocorre porque os méritos de Jesus Cristo no Calvário podem ser aplicados a qualquer pessoa em qualquer momento do passado, presente ou futuro, uma vez que é um sacrifício eterno. Isto é, a morte de Cristo salvou os eleitos antes de Cristo e depois de Cristo, a.C. e d.C., se preferir. Se tudo isso for verdade, então o sacrifício de Cristo se aplica a todos os salvos, tanto sob a Antiga como sob a Nova Aliança. Mas se tudo isso for verdade, por que Davi seria então punido de forma mais rigorosa do que alguém hoje em dia? Ele está tão salvo pelos méritos de Cristo quanto um crente hoje.
- Talvez uma maneira mais apropriada de perguntar seria esta: a punição que Deus deu a Davi eliminou a necessidade do sacrifício de Cristo? Espero que todos respondamos “não” sem hesitar nem por um segundo. Davi não foi salvo fora de Cristo – ninguém foi. Mas se o castigo de Davi não diminui a necessidade do sacrifício de Cristo, por que então o sacrifício de Cristo eliminaria a necessidade do castigo de Davi?
- Para distinguir entre as consequências temporais e eternas do pecado, imagine que você rouba um carro. Você se arrepende de ter feito isso, pede perdão e é perdoado. Mas você ainda poderá ter que (a) devolver o carro, (b) fornecer algum tipo de reparação ao proprietário do carro e (c) ser punido pelo Estado. Cada uma diz respeito a uma consequência ou a uma punição temporal bem diferente de você ter sua alma sendo obrigada a passar a eternidade no Céu ou no Inferno.
- São Paulo fala sobre o papel que o Estado desempenha neste sentido, servindo como “servo de Deus, agente da ira para punir o malfeitor” (Romanos 13:4). Obviamente, o Estado não condena nem salva as pessoas, e por essa razão Paulo está aqui descrevendo claramente punições temporais devidas em razão do pecado.
- O Livro de Hebreus também descreve Deus aplicando punições temporais aos pecadores precisamente para evitar a necessidade de lançá-los no Inferno: “Ele nos disciplina para o nosso bem, para que possamos compartilhar de Sua santidade. No momento, toda disciplina parece mais dolorosa do que agradável; mais tarde, no entanto, produz o fruto pacífico da justiça naqueles que foram por ela treinados.” (Hebreus 12:10-11).
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É por isso que o autor de Hebreus lembra aos seus leitores:
“E vocês se esqueceram da exortação que se dirige a vós como filhos? – ‘Meu filho, não menospreze a disciplina do Senhor, nem desfaleça quando for punido por Ele. Pois o Senhor corrige a quem ama e castiga todo aquele que ele recebe como Seu filho.’ É por meio da disciplina que você tem que suportar, de modo que Deus vos trata como filhos; pois que filho há a quem o pai não corrija?”
Hebreus 12:5-7
Bernardino Mei, Christ Cleansing the Temple (1665)
Esta é a realidade que penso que os protestantes ignoram quando atacam o Purgatório. Eles pensam que a morte de Cristo elimina a necessidade de punições temporais (correção), todavia, tais punições são para o nosso próprio bem. Na verdade, se “estais sem disciplina, da qual todos participaram, então isso significa que sois filhos ilegítimos e não filhos” (Hebreus 12:8). Portanto, em vez de Jesus eliminar a necessidade de punição temporal, Hebreus nos diz que ocorre exatamente o oposto. Sem Cristo, os castigos temporais devidos ao pecado seriam desnecessários, pois não haveria esperança de salvação. Se não existe Céu, não há necessidade de Purgatório. Por outro lado, é claro, se é verdade que a morte de Jesus Cristo abriu as portas do Céu, então é ainda mais importante que nos submetamos voluntariamente àquela disciplina que “produz o fruto pacífico da justiça naqueles que por ela foram treinados”. Se Ele nos oferece a oportunidade de nos tornarmos filhos ou filhas de Deus, devemos aproveitá-la, considerando que isso inclui a necessidade de sermos disciplinados como filhos. E devemos tratar tais castigos como bênçãos que são conferidadas para o nosso próprio bem espiritual, ajudando na nossa santificação.
Imagem Principal Baron Henri de Triqueti,
Non Mechaberis (Nathan Confronts David) (1837)
Tradução do texto Did Christ Erase the Need for Purgatory?




