Católico, porém Bizantino

Chase Padusniak

Chase Padusniak

INTRODUÇÃO

 

Esse não é um texto fácil de escrever. Não que eu tenha vergonha de ser católico bizantino, porém eu sei que o tópico – até mesmo, o próprio nome – sempre exalta alguns ânimos fortes. Alguns ortodoxos vão reagir contra o uniatismo e as maquinações políticas do Ocidente, forçando alguns bons bizantinos a se separarem dos ocidentais. Já alguns católicos latinos vão olhar meio desconfiados para alguns melquitas que chamam o Vaticano I de concílio local, ou até mesmo vão estranhar a ausência da filioque quando ouvirem o Credo. O ser bizantino é uma coisa precária. Estar escrevendo de uma posição dessas me deixa com receio de ofender os meus irmãos, ou até de me achar orando como o fariseu – se não vocalmente, em meu interior: “graças te dou, ó Deus, que não sou como os demais homens: ladrões, injustos e adúlteros; nem como o publicano que está ali” (Lucas 18,11). Peço a Deus que afaste de mim um espírito de vanglória. Eu sei que ele vive dentro de mim, mas eu rezo que ele não viva nas palavras que se seguem.

 

O QUE SÃO CATÓLICOS BIZANTINOS?

 

Ainda assim, sinto a necessidade de confessar, de me explicar. Primeiro, eu preciso fazer isso porque eu quero trazer um entendimento melhor sobre o que e quem são os católicos bizantinos. Além disso, eu preciso fazer isso porque eu quero que outras pessoas entendam melhor o que e quem eu sou. Eu quero ter alguma coisa para recorrer quando for indagado, para poder dizer “essa é minha opinião, e aqui está o porquê.” O ser bizantino é uma coisa precária, e o que leva a essa posição é justamente o abraço a essa precariedade. Teologia e comunhão são assuntos complicados, e por isso eu me sinto em casa na Igreja Rutena (uma das Igrejas Católicas Bizantinas). Eu vou começar contando a minha própria história, de como eu cheguei aqui; e depois eu vou responder algumas objeções frequentes. Eu espero deixar claro por que uma comunhão complexa me serve melhor do que algo absolutamente certo – isto é, por que eu sou o que sou e por que eu adoto a precariedade como definição da minha identidade eclesial. Ao longo desse texto, eu farei algumas críticas a coisas que para mim são difíceis no catolicismo latino e na ortodoxia oriental. Eu espero que essas críticas sejam levadas em conta num espírito de caridade – que é o mesmo espírito que profere essas críticas, eu garanto a você.

Papa Francisco ao lado do primaz greco-católico da Ucrânia, S.B. Sviatoslav.
Fonte: Ukrainian Catholic Eparchy of Edmonton

Eu acabei virando bizantino porque eu estava com raiva do Ocidente, especificamente do Tomismo. Essa é a triste verdade. Eu dediquei a minha vida à leitura e ao estudo de místicos e pseudo-místicos, muitos deles ocidentais – Pseudo-Dionísio, Escoto de Erigena, Hadewijch de Brabante, Matilde de Magdeburgo, Marguerite Porete, Mestre Eckhart, Richard Rolle,  Juliana de Norwich, Margery Kempe, Nicolau de Cusa, Søren Kierkegaard, Simone Weil e Adrienne von Speyr. Eu não era um tomista, mesmo que eu pensasse que Tomás de Aquino estava certo. Eu fui batizado como romano, e agora que eu estava voltando para a fé, eu estava ressentido com ataques constantes à minha paixão por esses místicos, especialmente quando gostar deles era considerado anti-tomista, ou até mesmo, anti-ocidental. Eu pensei em virar ortodoxo, mas logo eu descobri que muitas pessoas na Igreja Ortodoxa eram tão anti-ocidentais quanto os latinos que eu conheci eram anti-orientais (ou, ao menos, anti-místicos). Eu fiquei num mato sem cachorro. Quando eu li os Padres da Capadócia, ou ouvia o Metropolita Kallistos Ware, ou até mesmo estudando as obras do David Bentley Hart, o Oriente parecia impecável e mais acolhedor. Mas na prática, eu descobri que as pessoas ainda eram seres humanos, e que o territorialismo abundava em qualquer lugar que eu fosse. Então eu parei e olhei as opções possíveis. Quando eu estudei o Ocidente medieval (juntamente com um estudo mais detalhado sobre a diversidade teológica no Ocidente), eu descobri que as narrativas históricas simplistas eram muito bonitas para serem verdade. O Ocidente tinha um respeito especial pelo Tomismo, isso é fato. Mas o que dizer do Mestre Eckhart, tomista e místico apofático? E se alguém fizer uma leitura de São Tomás enquanto místico? E o que dizer de Escoto de Erigena, que afirma que a filioque não era um problema (e até mesmo que o Oriente bizantino tinha argumentos melhores!) no século IX? E o que dizer de São Gregório Palamas e a Imaculada Conceição? Por acaso não cantamos na liturgia:

 

É verdadeiramente digno bendizê-la, ó Theotokos, sempre bendita [a minha Igreja traduz por “imaculada],  puríssima e Mãe de nosso Deus. Mais honorável que os querubins, e sem par mais gloriosa  do que os serafins, sem profanação destes à luz ao Deus o Verbo. Verdadeira Theotokos, nós te glorificamos!

 

Ser católico me dá acesso a uma diversidade de ritos, teologias e tradições em plena porém imperfeita comunhão, uma ideia que possui uma história rica. […] Ser bizantino é estar à margem disso, é ter o potencial de transformação por meio do protesto dentro da comunhão. […] Ser católico e bizantino é ser precário.

 

Divina Liturgia celebrada pelo bispo Teodor Martynyuk, bispo auxiliar da Eparquia de Ternopil-Zboriv, na Ucrânia.
Fonte: InCaminno TV (YouTube) 

Até que um dia, eu encontrei um texto de um querido amigo meu, chamado Nathan Smolin, sobre o cisma de 1054. O trabalho dele usou os documentos originais para mostrar que os dois lados erraram de um jeito ou de outro. As diferenças teológicas desapareceram diante de mim; parecia que tudo era uma questão política, somado ao sentimento de raiva que se acumulou ao longo de séculos. Saber que a história não foi fácil, que a vida não é fácil, foi um alívio para os meus nervos. Com o tempo, eu comecei a ver mais pessoas fazendo alusão ao Massacre dos Latinos ou o saque de Constantinopla na Quarta Cruzada. Tudo aquilo começou a parecer uma justificativa ruim para mim: “vocês fizeram isso e isso de ruim, então é claro que a gente odeia vocês. Aliás, a teologia de vocês está errada!” – por trás de todas as polêmicas, havia uma confusão muito complexa. Perceber isso sempre me pareceu levar de volta à longa e complicada história da comunhão da Igreja antes do Grande Cisma. No fim das contas, a complexidade dela – sinceramente, era libertadora. Eu não precisava saber exatamente quem estava certo. Eu não precisava fingir que o meu lado da história nunca fez nada de errado e que o outro lado praticou todo tipo de injustiças. O pecado original (ou ancestral, se você quiser chamar assim) habita em todos nós. Claro que isso não resolve o problema de “em que lado eu vou ficar’. Eu tinha uma certa dificuldade em aceitar a infalibilidade papal, e eu não gostei do tratamento dado ao Patriarca Melquita no Concílio Vaticano I. O Patriarca Gregório II Youssef deixou bem claro a sua posição (a fonte é a Wikipedia, mas as citações são todas legítimas):

 

A Igreja Oriental atribui ao Papa o mais alto e pleno poder, contudo de uma maneira onde a plenitude e a primazia estão em harmonia com os direitos das sés patriarcais. É por isso que, em virtude do direito antigo fundado nos costumes, os Pontífices Romanos, exceto em casos bem significativos, não exerceram sobre essas sés a jurisdição ordinária e imediata que nos é requerido definir sem qualquer exceção. Essa definição destruiria a constituição de toda a Igreja Grega por completo. É por isso que minha consciência de pastor se recusa a aceitar esta constituição.

 

E qual foi a resposta que ele recebeu?

 

Depois da conclusão do Concílio Vaticano I, um emissário da Cúria Romana foi enviado para assegurar as assinaturas do patriarca e da delegação melquita. Gregório e os bispos melquitas assinaram [a declaração], mas adicionaram a cláusula qualificativa usada no Concílio de Florença: ‘exceto os direitos e privilégios dos patriarcas do Oriente.” Isso atraiu a inimizade do Papa Pio IX; durante a sua visita seguinte ao pontífice antes de deixar Roma, quando Gregório estava se ajoelhando, o Papa colocou o joelho no ombro do patriarca, dizendo-lhe: testa dura! (seu cabeça dura!). Apesar deste acontecimento, Gregório e a Igreja Católica Melquita permaneceram comprometidas à sua união com a Sé de Roma.  As relações com o Vaticano melhoraram após a morte de Pio IX e a subsequente eleição do Papa Leão XIII. Com a sua encíclica Orientalium dignitas em 1894, Leão lidou com os receios da Igrejas Católicas Orientais no tocante à latinização e à centralização de poder em Roma. Leão confirmou que as limitações impostas ao patriarca católico armênio não se aplicariam ao patriarca Gregório, e ele formalmente reconheceu uma expansão da jurisdição de Gregório que incluía todos os melquitas espalhados pelo Império Otomano.

Mesmo sabendo da história horrível de como o padre Alexis Toth foi tratado por Dom John Ireland, e mesmo sabendo que a latinização (isto é, modificações na liturgia e na tradição para que se tornem mais latinas) infectou várias das Igrejas Católicas Orientais (e até hoje isso perdura, em algumas delas), eu também sabia que o Concílio Vaticano II fez um apelo pelo fim dessas práticas e deu sinais de uma eclesiologia mais aberta, menos romanocêntrica. Eu admito que muitas posições ultramontanistas de certos latinos são muito extremas, mas eu também conseguia ver que havia uma importância especial em ter um primus inter pares em Roma, um fato reconhecido por alguns importantes teólogos ortodoxos contemporâneos. Eu também reconheço que, como muitos ortodoxos argumentam, as Igrejas Católicas Bizantinas foram parte de uma manobra política. Isso pode parecer trágico, mas aí eu pensei: que ação pode ser totalmente apolítica? São Vladimir não buscou uma religião tanto em nome do prestígio e da unidade quanto em nome da beleza? ([aliás], isso não está implícito em sua decisão de “escolher” uma Igreja?) E mesmo assim, a decisão dele não gerou frutos excelentes? E quanto aos primeiros concílios, eles foram isentos de implicações políticas? Muitos papas e muitos patriarcas ascenderam ao poder por “razões políticas”. No final, esse argumento não foi suficiente para descartar essas Igrejas que, a essa altura, haviam produzido muitos frutos belos.

Mais uma vez eu digo: as coisas se mostraram ser bagunçadas, complicadas e até precárias. E o que era mais precário? Os católicos orientais – no meu caso, mais especificamente, os católicos bizantinos. Já que eu morava perto de uma igreja rutena e por ser um descendente de eslovacos muito americanizado, essa Igreja sui iuris foi o que mais fez sentido para mim. Ser ruteno foi uma maneira de reconhecer a precariedade e a complexidade da minha própria vida, da minha própria história. Assim eu poderia continuar a amar o misticismo e a teologia do Ocidente e do Oriente, vivendo uma uma ambiguidade histórica e eclesial (aliás, com o tempo, eu comecei a gostar muito mais de Tomás de Aquino!).

 

O padre James Siemens expressou essa ideia muito bem:

 

Eu sou um padre ucraniano. Eu sirvo aos ucranianos e a qualquer um que deseja encontrar a fé cristã como foi recebida no Oriente historicamente influenciado por Bizâncio. Eu não sou grego, eu sou um cristão oriental cujas tradições são compartilhadas pelos gregos, árabes e eslavos. Eu não sou um católico romano, e sim um católico cuja prática não se parece muito com a dos seus irmãos latinos, e cuja linguagem e cultura religiosa é tão diferente que pode até ser ininteligível para muitos romanos. Essas características, mesmo entre as pessoas que são menos informadas sobre assuntos eclesiásticos, são associada aos ortodoxos. 

 

Eu afirmo, portanto, que nós da Igreja Greco-Católica Ucraniana devemos reivindicar um termo que foi usado contra nós por muito tempo, e mesmo assim não deveria apresentar uma ofensa. ‘Uniata’ pode ser um termo  que foi usado para nos ridicularizar, mas eu estou feliz de viver a minha Ortodoxia na união, então porque eu deveria me importar? Moscou pode nos enxergar como traidores, mas por quê? Traidores da anti-união com Roma? Traidores do imperialismo moscovita? Eu sou muito feliz de ser ridicularizado por isso. 

 

A conclusão dele sobre como devemos ser chamados é ainda mais interessante:

 

Um estudioso amigo meu certa vez sugeriu que o melhor termo para nós é ‘ortodoxo uniata’, e inicialmente eu achei que ele estava brincando. Mas quanto mais eu considerei as implicações da ideia, mais eu percebi que meu amigo não estava apenas falando sério, ele estava certo. É um termo que pode se aplicar igualmente a todas as Igrejas Orientais que voltaram à comunhão com Roma, da  Ucrânia até a Síria, do Egito até a Etiópia e a Índia. É um termo que não nega as latinizações que se enfiaram em algumas de nossas Igrejas, as quais alguns fiéis possuem muito carinho; é um termo que simplesmente as absorve como uma característica do ‘uniatismo’, e permite que elas minguem naturalmente somado a um gentil ensino pastoral. É um termo que não se envergonha das questões de nossas relações com a Santa Sé; na verdade, as afirma com confiança. E, mesmo assim, acima de tudo ele descreve de onde viemos, para onde fomos e para onde devemos voltar – seja neste mundo ou no próximo. Por estes motivos, eu quero começar a usar este termo, e espero que outros se juntem a mim.

 

Ele é um pouco polêmico nisso, mas fundamentalmente, eu concordo com ele. Nós, bizantinos (e outros católicos orientais), somos chamados a desafiar os dois lados nesse debate, a sermos abertos à uma história de marginalização que (graças a Deus) está mudando, mesmo enquanto afirmamos o poder de estar em comunhão com muitas tradições teológicas e litúrgicas profundamente diversas, enquanto unidos por dogmas comuns. Isso nos coloca em uma posição estranha, ou – essa é a última vez, precariedade. Às vezes, é difícil (por exemplo, lidar com ridicularizações de irmãos latinos ultramontanos), e às vezes é fácil (quando lembramos que os católicos permitem que ortodoxos recebam a Comunhão, mas não o contrário). Ser bizantino nunca é fácil, mas é algo que tem um senso de verdade, de honestidade. Ser católico me dá acesso a uma diversidade de ritos, teologias e tradições em plena porém imperfeita comunhão, uma ideia que possui uma história rica. Ser bizantino me permite abraçar a espiritualidade que me atraiu e a qual eu fui chamado. Ser católico é afirmar a necessidade do ecumenismo, da reparação do Cisma, do melhor das propostas do Concílio Vaticano II. Ser bizantino é estar à margem disso, é ter o potencial de transformação por meio do protesto dentro da comunhão. Ser católico é defender a necessidade por algum nível de primazia significativa, mesmo que o meu lado bizantino proteste por uma primazia entendida em colegialidade. Ser católico e bizantino é ser precário. Eu espero e rezo que as minhas palavras não ofendam a ninguém. Eu simplesmente me esforcei para testemunhar minhas próprias falhas, minha própria vida e minha própria história à medida que ela vai entrando e saindo da história das nossas Igrejas. Ninguém é isento de culpa nesses conflitos (e eu sou o principal), e nenhuma enxurrada de acusações vai curar todas as velhas feridas. E mesmo assim, eu devo rezar exclamando:

 

“Não haverá mais bálsamo de Galaad? Nem se poderá encontrar um médico? Por que, então, a ferida da filha de um povo não se há de cicatrizar? Oh! Tivesse eu em minha cabeça um manancial, e em meus olhos uma fonte de lágrimas! Dia e noite eu choraria os mortos da filha de meu povo.” 

Jeremias 8,22-23

 

 

Imagem Principal de Nick Kwan via Unsplash

Título original: Being Byzantine (Catholic)
Autor: Chase Padusniak – Patheos
Tradução: Symon Bezerra – Methodios Project
Todos os direitos reservados.

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Chase Padusniak

Chase Padusniak ingressou no Departamento de Literatura Inglesa de Princeton em 2015. Seus principais interesses de pesquisa incluem literatura mística insular medieval tardia, poesia e poética do inglês médio, hermenêutica, fenomenologia, a ontologia da tecnologia e “objetos” e a relação entre pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade

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Chase Padusniak ingressou no Departamento de Literatura Inglesa de Princeton em 2015. Seus principais interesses de pesquisa incluem literatura mística insular medieval tardia, poesia e poética do inglês médio, hermenêutica, fenomenologia, a ontologia da tecnologia e “objetos” e a relação entre pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade

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