Pois é a Igreja que dá a luz a todos, seja do seu seio, do seu próprio ventre; ou além dele, da semente de seu noivo – seja dela mesma ou de sua serva. Porém, mesmo que Esaú fosse nascido da esposa por direito, foi separado do povo de Deus por ter entrado em desavença com seu irmão; enquanto Aser, nascido pela autoridade de uma esposa, porém da serva, foi admitido à terra da promessa por causa de sua boa vontade fraterna. Por isso, não foi o ser nascido de uma serva, porém a desavença com seu irmão, que impediu Ismael, causando sua separação do povo de Deus; e ele não recebeu benefício algum do poder da esposa de quem ele, em primeiro lugar ele era filho, visto que foi em virtude de seus direitos conjugais que ele foi concebido e nascido do ventre da serva. Assim como com os donatistas, é pelo direito da Igreja que existe no batismo, que qualquer um nascido recebe o nascimento [do batismo]; mas se eles estão em concórdia com seus irmãos através do vínculo da paz, eles são admitidos à terra da promessa, não para serem expulsos do seio da sua verdadeira mãe, mas para serem reconhecidos na descendência de seu pai. No entanto, se eles perseveram na discórdia, eles serão contados na descendência de Ismael.
(Santo Agostinho, De unico baptismo contra Petilianum, I, XV)
Eu estive pensando sobre Santo Agostinho. Não só por ter lido a recente e excelente dissecação sobre os Jansenistas de hoje e de antes (seja lá o que isso signifique), nem mesmo pela ternura conhecida do velho bispo de Cartago, mas por causa de todo esse papo de cisma. Essa palavra está na boca de todo mundo – liberais, conservadores, tradicionais, modernos, o que seja. [A palavra] “cisma” está em todo lugar, semeando sua discórdia tanto em mentes bem intencionadas quanto em argumentos de má fé. Todo homem pensa estar o fim da história; portanto, todo homem deve lutar pela paz e pelo que é certo – e que se danem as consequências. A maioria dos católicos está ciente de que, após o Sínodo da Amazônia, conversas sobre cisma vão aparecer em todos os lados. E claro, é sempre o outro lado que está causando a divisão – ninguém admite que está dividindo a Igreja. O cisma é sempre culpa do outro.
Só que isso já é muito mais claro na Igreja Ortodoxa contemporânea do que no meio católico. É o caso dos “velhos crentes” (Old Believers). Daí veio a breve desunião que aconteceu com a questão da Estônia no fim dos anos 90. E não dá para esquecer as inumeráveis seitas de ortodoxos “verdadeiros” e “genuínos” que surgiram no século passado – a maioria discorda na questão dos calendários [litúrgicos] (eu não estou brincando, olha no Google e você vai encontrar mais grupos, de tudo quanto é tamanho, que você pode imaginar). O que eu tenho em mente hoje é o cisma entre Constantinopla e Moscou. Causou um certo rebuliço quando começou, mas agora a maioria das pessoas quer esquecer isso. Seria algo normal, se o conflito não tivesse se agravado. Há poucos dias, o Patriarca Cirilo (Kirill) de Moscou deixou de comemorar o Patriarca de Alexandria. Antes disso, a Igreja Russa publicou uma lista de “dioceses indesejáveis de serem visitadas” por leigos que desejam permanecer em situação regular. Depois veio um sínodo que, em parte, censurou a Igreja Ortodoxa da Grécia (que não é a mesma coisa do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla) por reconhecer a autocefalia da Igreja Ortodoxa Ucraniana. Resumindo a história: há um cisma se espalhando na Ortodoxia, que não mostra sinais de que vai parar ou [ao menos] desacelerar.
Eu ainda não vi nenhum dos meus amigos ortodoxos falar disso, e eu não os culpo. Isso é traumático: o chefe da Igreja Ortodoxa mais populosa do mundo rompendo a comunhão com vários bispos, inclusive com dois dos mais importantes da comunhão Ortodoxa. Isso é assustador, e parece ser impossível de resolver. Se batermos de frente com isso, vamos perder as esperanças. O Metropolita Hilário, porta-voz da Igreja Russa, já falou o bastante:
Eu afirmo que a ruptura com Constantinopla não afetou de maneira alguma a vida interna da Igreja Ortodoxa Russa, incluindo a sua parte autônoma – a Igreja Ortodoxa Ucraniana. Nós continuamos vivendo como antes, servindo como antes, celebrando a Páscoa e outras grandes festas como antes. Nós não sentimos nenhum dano causado por esta ruptura.
O Patriarcado de Constantinopla cometeu um grande erro, e continua a insistir nele, exigindo que outras Igrejas Locais reconheçam a chamada “Igreja Ortodoxa da Ucrânia” [em inglês, abreviada OCU]. No entanto, podemos ver que a OCU não teve sucesso como uma Igreja. Desde o início, ela foi formada por dois grupos cismáticos; apenas em alguns meses de existência, ela já teve tempo de se dividir em duas partes, e os fiéis não seguiram este grupo. O Patriarca Bartolomeu acreditava que o episcopado da Igreja canônica da Ucrânia se juntaria a este grupo assim que este recebesse os tomos de autocefalia. O tomos foi recebido, porém o episcopado permaneceu leal a Sua Beatitude, o Metropolita Onúfrio; os hierarcas da Igreja Ucraniana têm afirmado seu desejo de preservar a unidade com a Igreja Ortodoxa Russa e a sua plena satisfação com o atual estado da Igreja. É bem claro que o cisma não foi superado; pelo contrário, há uma divisão crescente. (Departamento para Relações Externas da Igreja Ortodoxa Russa).
As coisas só pioram, e o que nós vamos fazer? Como vamos absorver todas essas falações e atitudes obstinadas?
Sobre essas questões, eu gosto de lembrar do ensaio maravilhoso do meu amigo, Nathan Smolin, sobre o Cisma de 1054. Um fato permeia o estudo inteiro: pessoas pecam, e são capazes de encontrar qualquer razão concebível para lutar. Problemas teológicos reais raramente são causa de cisma, apesar de que também podem ser invocados. Mais frequentemente, nós descobrimos que o orgulho é o cerne dessas questões; que quaisquer argumentos podem ser embaralhados para disfarçar a realidade solitária de que os seres humanos têm prazer em usar o seu pouco tempo nesta terra para atacar, denegrir, elogiar e condenar. Eu não quero parecer reducionista. A má fé não é onipresente. Nem todos os homens são mentirosos, mas ainda é fato de que cada um de nós (inclusive eu) carrega seus preconceitos consigo enquanto trilha a estrada da vida. Fazer um auto-exame rigoroso é difícil, e ainda mais difícil é escapar da armadilha da auto-ilusão.E assim, mesmo as melhores intenções tornam-se desculpas para o vitríolo e a maldade. Os melhores planos dos melhores homens muitas vezes dão errado.
Cada um de nós suporta a terrível verdade de que nossa vida é finita, de que a morte nos aguarda, volta e meia aparecendo, pronta para atacar sabe se lá quando. O tempo é curto e a glória parece distante. A vida de trabalho humilde é difícil, ainda mais a vida de humildade em face de grandes forças históricas. E assim, nós tomamos parte e escolhemos um lado. O eschaton é aqui e agora – os certos deve ser provado como certo e o errado deve ser provado como errado. Não existe lugar para contemplações silenciosas e auto-acusações orantes quando se têm guerras eclesiais para vencer.Então, nos deparamos com Agostinho. Seus escritos sobre cismas, como em muitos temas, são impressionantes. O que transparece mais do que tudo é o seu espírito de caridade, o seu desejo sincero de renovação da comunhão. Há ameaças, sim; porém, vemos reconhecimentos de amor e respeito mútuos com mais frequência, um desejo de ver o erro sendo abandonado. Em qualquer coisa que ele escreveu contra os donatistas, ele nunca negou a validade do batismo deles (uma questão que ainda é controversa entre alguns ortodoxos). Mesmo em meio a um cisma terrível, no qual ele foi atacado por suas opiniões sobre o donatismo, Agostinho escreve em defesa da validade do batismo deles:
A isto, respondemos que o batismo da Igreja existe mesmo entre os hereges, apesar deles mesmos não estarem junto à Igreja; assim como as águas do Paraíso foram encontradas na terra do Egito, apesar desta terra não estar no Paraíso. Portanto, nós não admitimos hereges à comunhão sem batismo; e visto que eles vêm com sua teimosia corrigida, não recebemos seus pecados, mas os sacramentos de Cristo. (De unico baptismo contra Petilianum, VII, IV)
Isto foi escrito por um homem que é frequentemente retratado como severo, intransigente – pelo suposto precursor do Calvinismo!
Tenho certeza que alguns verão minhas palavras aqui como uma desculpa para enterrar minha cabeça na areia como um avestruz. Talvez seja esse o caso. Mas quando vemos o cisma envolvendo o mundo, quando se tem tempo e motivos para refletir sobre a própria mortalidade, sobre a finitude desta existência terrena; quando se olha para a história e vê a miríade de pessoas que decidiram morrer nesta ou naquela colina, a tendência é reconsiderar o significado de tais disputas na vida. Os pobres sempre estarão conosco; eles permanecem aqui para ser servidos. A tentação do cisma também permanece sempre. O drama da salvação se desenrola em cada alma. Agostinho, é claro, nos lembra exatamente isso:
Então, o que tenho eu a ver com os homens, para que ouçam minhas confissões, como se fossem curar todas as minhas doenças? Um povo curioso para conhecer a vida dos outros, mas lento para corrigir a sua própria. Por que eles desejam ouvir de mim o que eu sou, e não estão dispostos a ouvir de Ti o que são? E como eles podem saber, quando me ouvem de mim mesmo, se eu falo a verdade, visto que ninguém sabe o que há no homem, exceto o espírito do homem que está nele? (1 Coríntios 2,11) Mas, se eles ouvirem de Ti algo a respeito de si mesmos, não poderão dizer: “o Senhor está mentindo”. Pois o que é ouvir de Ti sobre si mesmos, senão conhecer a si mesmos? E quem é aquele que se conhece e diz: “isto é falso”, a menos que ele mesmo minta? Mas porque a caridade tudo crê (1 Coríntios 13,7) (entre aqueles em todos os eventos que, pela união consigo mesmo, faz um), eu também, ó Senhor, também confesso a Ti para que os homens possam ouvir, a quem não posso provar se eu confesso a verdade, eles acreditam em mim cujos ouvidos a caridade me abre.
(Confissões, X, III)
Imagem: Santo Ambrósio barrando o imperador Teodósio de entrar na Igreja.
Fonte: Olimpíada Todo Dia
Título original: The Temptation of Schism
Autor: Chase Padusniak – Japplers and Janglers (Patheos)
Tradução: Symon Bezerra – Methodios Project
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