INTRODUÇÃO
O catolicismo sustenta que o pão e o vinho substancialmente se tornam verdadeiramente o Corpo e o Sangue de Cristo, o que se denomina transubstanciação. Por outro lado, o protestantismo possui basicamente três interpretações clássicas para a Eucaristia: a interpretação luterana, a interpretação calvinista e a interpretação zwingliana. Ou seja, já temos aqui algo bem curioso, pois os três primeiros grandes líderes da “reforma” (Lutero, Calvino, Zwinglio) já discordaram numa questão bem séria. Podemos deduzir, então, que os protestantes não estão separados somente em questões periféricas da fé, como dizem, mas também em questões de suma importância. Ou será que a Eucaristia é algo apenas secundário na doutrina cristã a ponto de podermos dar opiniões completamente diferentes umas das outras? Não é isso que vemos nos escritos dos primeiros cristãos, muito menos nas Sagradas Escrituras. Leia mais sobre isso em A OPINIÃO DE ZWINGLIO, BUCER, OECOLAMPADIUS: “LUTERO E LUTERANOS NÃO SÃO CRISTÃOS”.
LUTERO E SEUS PARTIDÁRIOS
Lutero, reinterpretando a Tradição Cristã não negou que Jesus está presente no sacramento, mas, ainda assim, trouxe uma interpretação diferente daquilo que a Igreja Católica ensina. A Confissão de Augsburgo diz o seguinte sobre a Eucaristia:
Da ceia do Senhor se ensina que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes na ceia sob a espécie do pão e do vinho e são nela distribuídos e recebidos. Por isso também se rejeita a doutrina contrária. [1]
Podemos ver que os luteranos dizem com todas as letras que creem que o Corpo e o Sangue de Cristo estão nos elementos, e que rejeitam opiniões diferentes a esse respeito. Isso é reforçado no Catecismo Menor de Martinho Lutero quando diz que “É o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo a ser comido e bebido por nós, cristãos, sob o pão e o vinho.”[2]. Porém, essa compreensão luterana, apesar de afirmar essa presença real de Cristo, também diz que o pão e o vinho permanecem, pois afirma que Jesus está “sob” o pão e o vinho. Portanto os luteranos rejeitam a transubstanciação, uma vez que não creem que as substâncias de pão vinho se tornam Corpo e Sangue de Cristo, mas que ficam juntas, de alguma forma, as quatro substâncias (pão, vinho, Corpo e Sangue). Muitos utilizam o termo “consubstanciação” para explicar o posicionamento dos luteranos, mas é um termo que não é acatado por todos os luteranos, então não irei me referir a essa perspectiva dessa forma.
ZUINGLIO E SEUS PARTIDÁRIOS
Zwinglio, por sua vez, em oposição ao pensamento católico e também a Lutero, retirou qualquer conceito de sacralidade da Ceia, reduzindo-a a um mero simbolismo, argumentando que trata-se somente de um memorial, não estando Cristo presente nos elementos de forma alguma. Esse posicionamento foi adotado por muitos protestantes, e aqui no Brasil talvez seja a grande maioria atualmente. Tanto os pentecostais quanto neopentecostais, bem como alguns batistas em geral, adotam esse entendimento. Isso faz com que o termo “sacramento” seja rejeitado por esse grupo, que utiliza preferencialmente o termo “ordenança”. Alguns chegam até mesmo a criticar o uso do termo “Santa Ceia”, trocando para simplesmente “Ceia do Senhor”, apesar de haver outros que usam os dois termos sem nenhum problema. É pertinente observamos o que diz a Declaração de Fé das Assembleias de Deus sobre os elementos da Ceia, pois é a principal denominação pentecostal do Brasil, e mostra perfeitamente a perspectiva de Zwinglio:
As palavras de Jesus, “Isto é o meu corpo” (Mt 26.26) e “isto é o meu sangue” (Mt 26.28), mostram os dois elementos da Ceia do Senhor. Tendo Jesus ministrado pessoalmente os dois elementos aos seus discípulos, fica cabalmente demonstrado que as expressões “isto é o meu corpo” e “isto é o meu sangue” não são literais, mas referem-se a uma linguagem metafórica.[3]
De fato, durante a Reforma Protestante, Ulrich Zwinglio parece realmente ter sido o maior adversário da fé católica dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia. Já vimos que ele defendia uma perspectiva simbólica e memorial, e portanto, nessa lógica, a missa não poderia ser um Sacrifício, mas simplesmente um memorial do sacrífico de Cristo na cruz. Isso é claro, pois, se há um sacrifício então há algo real a ser sacrificado, isto é, o próprio Cristo. Então, se Zwinglio rejeitava a presença de Cristo ele consequentemente também rejeitava o caráter sacrificial da Eucaristia:
Que Cristo, havendo se sacrificado uma vez, representa para a eternidade certo e válido sacrifício pelos pecados de todos os fiéis, do que resulta que a missa não é um sacrifício, mas é uma lembrança do sacrifício e garantia da salvação que Cristo nos tem dado.[4]
Que se trata de um memorial todos sabemos, afinal o próprio Cristo nos disse que deveríamos realizar a Eucaristia em memória dEle (Cf. São Lucas 22. 19). Todavia, Zwinglio reduziu tanto o sacramento que eliminou o próprio sacramento. Não há na doutrina de Zwinglio possibilidade de transmissão ou manifestação da Graça de Deus, o que constitui a finalidade do sacramento, afinal a Ceia é realizada com um único intuito: relembrar o sacrifício de Cristo. Não é à toa que as denominações que adotam essa perspectiva rejeitam o uso do termo “sacramento”.
CALVINO E SEUS PARTIDÁRIOS
João Calvino não negou totalmente a presença de Cristo no sacramento, mas criou uma ideia de “presença espiritual de Jesus”, como explica o teólogo calvinista Augustus Nicodemus:
João Calvino, por sua vez, apresenta uma posição intermediária. Para ele, Cristo está presente no pão e no vinho, mas espiritualmente e, não, fisicamente. Segundo esse pensamento, no momento em que bebemos o cálice e comemos o pão, nos alimentamos de forma real e verdadeira do Cristo vivo. Como calvinista, concordo com o pensamento de Calvino, que entendo ser o mais apropriado. Portanto, acredito que, no ato da Ceia, o Senhor Jesus se faz presente espiritualmente em nosso meio e nós, pela fé, nos alimentamos dele.[5]
Esse pensamento se tornou bastante influente entre os protestantes, e também entre os anglicanos, que apesar de possuírem algumas opiniões diversas entre si, notavelmente foram influenciados por Calvino. Nos seus 39 Artigos da Religião, percebemos essa característica calvinista no anglicanismo, ao menos nessa questão. Para que essa perspectiva fique ainda mais compreendida, citemos também o Catecismo Maior de Westminster, que nos apresenta uma compreensão bem similar à dos anglicanos, e que tem bastante importância para os protestantes, principalmente os presbiterianos.
A Ceia do Senhor não só é um sinal de mútuo amor que os cristãos devem ter uns para com os outros; mas antes é um Sacramento da nossa Redenção pela morte de Cristo, de sorte que para os que devida e dignamente, e com fé o recebem, o Pão que partimos é uma participação do Corpo de Cristo; e de igual modo o Cálice de Bênção é uma participação do Sangue de Cristo. A Transubstanciação (ou mudança da substância do Pão e Vinho) na Ceia do Senhor, não se pode provar pela Escritura Sagrada; mas antes repugna às palavras terminantes da Escritura, subverte a natureza do Sacramento, e tem dado ocasião a muitas superstições. O Corpo de Cristo é dado, tomado, e comido na Ceia, somente dum modo celeste e espiritual. E o meio pelo qual o Corpo de Cristo é recebido e comido na Ceia é a Fé.[6]
Desde que o corpo e o sangue de Cristo não estão nem corporal, nem carnalmente, presentes no, com ou sob o pão e o vinho na Ceia do Senhor, mas, sim, espiritualmente à fé do comungante, não menos verdadeira e realmente do que estão os mesmos elementos aos seus sentidos exteriores, assim os que dignamente participam do sacramento da Ceia do Senhor se alimentam do corpo e do sangue de Cristo, não de uma maneira corporal e carnal, mas espiritual, contudo verdadeira e realmente, visto que pela fé recebem e aplicam a si mesmos o Cristo crucificado e todos os benefícios de sua morte.[7]
Mais tarde, John Wesley ainda manteve as mesmas palavras do anglicanismo em seus 25 Artigos. Com isso, fomos apresentados às ideias protestantes. As três ideias são aceitas entre eles, mesmo que sejam Bem diferentes, e até contrárias. Porém, se pensarmos logicamente, é impossível que três ideias tão diferentes estejam corretas ao mesmo tempo, pois ou uma delas é a correta, ou as três estão equivocadas. Mesmo assim, os protestantes sempre trataram a compreensão católica como repugnante, inaceitável. Parece que qualquer interpretação é válida, menos a interpretação católica. Todavia, o que os primeiros grandes autores cristãos pensariam dessas ideias protestantes? Será que eles concordariam com alguma delas?
IRINEU DE LYON E O PÃO QUE SE TORNA O CORPO DE CRISTO
O que é dito nas denominações protestantes é que a transubstanciação é uma distorção medieval, uma invenção da Igreja Católica que deturpou a verdadeira fé. Entretanto, temos Santo Irineu de Lyon, no século II, em sua obra Contra as Heresias, combatendo os gnósticos e argumentando contra eles justamente com a doutrina de que o pão e o vinho, após a consagração, já não são mais pão e vinho, mas se tornam o Corpo e o Sangue de Cristo:
Quanto a nós, nossa maneira de pensar está de acordo com a Eucaristia e a Eucaristia confirma nossa doutrina. Pois lhe oferecemos o que já é seu, proclamando, como é justo, a comunhão e a unidade da carne e do Espírito. Assim como o pão que vem da terra, ao receber a invocação de Deus, já não é pão comum, mas a Eucaristia, feita de dois elementos, o terreno e o celeste, do mesmo modo os nossos corpos, por receberem a Eucaristia, já não são corruptíveis por terem a esperança da ressurreição.[8]
Ícone de Irineu de Lyon por Χρήστος Ν. Λιόνδας
(Creative Commons Zero, Public Domain Dedication)
Se, portanto, o cálice que foi misturado e o pão que foi produzido recebem a palavra de Deus e se tornam a Eucaristia, isto é, o sangue e o corpo de Cristo, e se por eles cresce e se fortifica a substância da nossa carne, como podem pretender que a carne seja incapaz de receber o dom de Deus, que consiste na vida eterna, quando ela é alimentada pelo sangue e pelo corpo de Cristo, e é membro deste corpo? Como diz o bem-aventurado Apóstolo na carta aos Efésios: “Somos membros de seu corpo, formados pela sua carne e pelos seus ossos”; e não fala de algum homem pneumático e invisível — “porque o espírito não tem ossos nem carne” — mas da estrutura do homem verdadeiro, feito de carne, nervos e ossos, alimentado pelo cálice que é o sangue de Cristo e é fortificado pelo pão que é o seu corpo.[9]
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Irineu não está aqui dizendo que a Ceia é apenas simbólica, nem que Jesus está presente apenas espiritualmente, e também não está dizendo que o pão e o vinho permanecem juntamente com Corpo e Sangue de Cristo, ele está categoricamente afirmando que o pão não permanece sendo pão, e o vinho não permanece sendo vinho, ou seja, ele está descrevendo justamente a doutrina católica. O livro Contra as Heresias foi escrito ainda no século II, e Irineu de Lyon era discípulo de Policarpo de Esmirna, que foi discípulo direto do Apóstolo João! Diante de tão belo testemunho, como alguém ainda pode insistir em dizer que essa doutrina foi inventada na Idade Média?
A BÍBLIA CONFIRMA A DOUTRINA CATÓLICA
Ler essas palavras de um autor tão importante e próximo aos Apóstolos deve ao menos suscitar um desejo por buscar entender mais, principalmente porque logo de cara se percebe a linguagem perfeitamente católica de Santo Irineu. Avaliemos o que diz São Paulo para compreendermos que, de fato, na Bíblia já podemos perceber a fé católica sendo transmitida:
Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim”. Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha. Eis porque todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Por conseguinte, que cada um examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação. Eis porque há entre vós tantos débeis e enfermos e muitos morreram.
1 Coríntios 11. 23-30
A Eucaristia não é apenas um ato simbólico, e em hipótese alguma ela poderia ser entendida assim. O pão não simboliza o Corpo de Cristo, ele é o Corpo de Cristo! O vinho não simboliza o Sangue de Cristo, ele é o Sangue de Cristo! Como ter certeza disso? Olhando para o próprio texto já podemos ver que ele não dá margem para interpretação simbólica ou meramente espiritual. Trata-se de um milagre descrito, e que deve ser aceito pela fé. Quando se consagram os elementos, estamos anunciando a morte do Senhor. Isso não seria possível com algo apenas simbólico, já que destruiria o sentido da liturgia ali apresentada. Uma pregação anuncia a morte do Senhor simbologicamente. Que caráter extraordinário haveria naquele rito se pudesse ser substituído por uma pregação comum? Da mesma forma, ninguém poderá ser réu do Corpo e do Sangue de Cristo se o pão e o vinho forem apenas símbolos. Por que eu deveria me preocupar se comer um simples pedaço de pão estando em pecado? Afinal, não é só um pedaço de pão? No fim do texto, o Apóstolo Paulo ainda afirma que devemos discernir o Corpo de Cristo, porém, como eu poderia discernir o Corpo de Cristo se Ele não está presente nos elementos? Isso não faz o mínimo sentido! Só podemos ser réus do Corpo e do Sangue se eles forem reais ali na Ceia, e portanto, somente assim iremos discerni-los. É por essa razão que muitos protestantes têm tanta dificuldade em explicar o que é discernir o Corpo e o Sangue de Cristo segundo São Paulo, pois eles o removeram da celebração eucarística. Removeram Cristo, rejeitaram a fé! Outro texto que deixa essa realidade ainda mais evidente é aquele em que Jesus diz ser o pão vivo que desceu do céu, fazendo, assim, relação com o maná que os hebreus comeram no deserto:
Em verdade, em verdade, vos digo: aquele que crê tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais no deserto comeram o maná e morreram. Este pão é o que desce do céu para que não pereça quem dele comer. Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”. Os judeus discutiam entre si, dizendo: “Como esse homem pode dar-nos a sua carne a comer?”. Então Jesus lhes respondeu: “Em verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e o meu sangue é verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que de mim se alimenta viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu. Ele não é como o que os pais comeram e pereceram; quem come este pão viverá eternamente”.
São João 6. 47-58
Perceba que diante dessas afirmações de Jesus, os judeus se perguntavam como poderia ser assim. Essa era a oportunidade perfeita para Jesus explicar o que disse, mostrar que estava contando mais uma de suas parábolas ou explicar que era um símbolo. Porém, Ele não faz isso! O que lemos é Jesus simplesmente reafirmando aquilo que havia falado antes. Se continuarmos lendo os versículos seguintes vemos que os próprios discípulos de Jesus se assustaram com aquilo:
Muitos de seus discípulos, ouvindo-o, disseram: “Essa palavra é dura! Quem pode escutá-la?” Compreendendo que seus discípulos murmuravam por causa disso, Jesus lhes disse: “Isto vos escandaliza? […] A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele.
João 6. 60-61, 66
Mais uma vez Jesus não explica que aquilo se tratava de simbolismo, mas permanece firme naquilo que falara. Assim, muitos daqueles que o seguiam foram embora. Já podemos concluir que a interpretação de Calvino que diz que a Santa Ceia transmite uma presença apenas espiritual de Jesus está errada, pois não se pode discernir o Corpo apenas de forma espiritual e ainda assim entender as palavras de Paulo sobre responsabilidade e condenação diante daquele evento especial. Pior ainda é a interpretação in memorian de Zwinglio, que rejeitou qualquer tipo de presença de Jesus na Ceia, seja real ou espiritual, ficando apenas com o símbolo memorial, o que infelizmente é a base da maioria das denominações protestantes brasileiras. Isso tem um nome, e se chama gnosticismo, que, aliás, já era combatido pelos apóstolos e por vários autores patrísticos, como já foi mencionado quando citamos Irineu de Lyon. Não sou somente eu, mas outros também afirmam que a interpretação simbólica é puro gnosticismo. Veja o que diz o Pe. Juan Carlos Sack:
Com efeito, a interpretação “simbólica” da celebração eucarística está em perfeita harmonia com a heresia gnóstica… E se essa tivesse sido a fé da Igreja do século II, todo o discurso de Ireneu não teria sentido nenhum. Pelo contrário, seu argumento está baseado na afirmação de duas realidades intimamente unidas: a realidade do corpo do Senhor na Encarnação e a realidade do corpo do Senhor na Eucaristia. Os gnósticos – concluiu Irineu – devem forçosamente negar uma e outra se quiserem ser lógicos.[10]
JUSTINO DE ROMA E A ACUSAÇÃO ROMANA DE OS CRISTÃOS SEREM CANIBAIS
Não só Irineu, mas todos os teólogos, santos e doutores da Igreja nos primeiros séculos já entendiam o pão e o vinho como sendo de fato o Corpo e o Sangue de Cristo. Por isso, observemos também o que escreveu São Justino de Roma, quando defendeu a fé dos cristãos contra as injustiças cometidas pelo Império Romano no século II, visto que uma dessas injustiças era a acusação de antropofagia, ou seja, de que durante a Ceia os cristãos comiam partes do corpo de outros seres humanos. Justino, então, escrevendo ao imperador Adriano tinha uma perfeita oportunidade para acabar com o mal-entendido e mostrar que a questão era apenas simbólica, não? Mas não. De fato, ele deixa claro que os cristãos não se alimentavam de carne humana, no sentido em que entendiam os romanos, porém descreve a doutrina da Eucaristia, isto é, o milagre no qual o pão e o vinho, após a consagração, se tornam o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo.
Este alimento se chama entre nós Eucaristia, da qual ninguém pode participar, a não ser que creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive conforme o que Cristo nos ensinou. De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira como Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos ensinou que, por virtude da oração ao Verbo que procede de Deus, o alimento sobre o qual foi dita a ação de graças — alimento com o qual, por transformação, se nutrem nosso sangue e nossa carne — é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus encarnado. Foi isso que os Apóstolos nas memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: Fazei isto em memória de mim, este é o meu corpo. E igualmente, tomando o cálice e dando graças, disse: Este é o meu sangue, e só participou isso a eles.[11]

Theophanes Strelitzas via Wikimedia Commons
(Domínio Público)
Necessitamos de uma pequena reflexão aqui: não só Justino defendeu a Igreja da acusação de antropofagia, mas outros também o fizeram. Agora a pergunta: por que razão os cristãos seriam acusados disso se a Ceia do Senhor fosse um ato apenas simbólico? Não faz sentido crer que as autoridades romanas eram tão desprovidas de inteligência ao condenar simbolismos dessa forma. A única opção que nos resta é pensar que havia um mal-entendido, e que as autoridades não entendiam a doutrina católica quanto à natureza do “isto é o meu corpo” e “isto é o meu sangue”.
INÁCIO DE ANTIOQUIA: OS HEREGES NÃO RECONHECEM QUE A EUCARISTIA É O CORPO DE CRISTO
Mas vejamos ainda o que diz o bispo Santo Inácio de Antioquia, que viveu a maior parte de sua vida ainda no século I. Escrevendo aos irmãos da igreja de Esmirna, alertando a respeito de certos grupos heréticos da época, afirma que:
Eles se mantêm distantes da Eucaristia e da oração porque não querem confessar que a Eucaristia é a carne de Nosso Salvador Jesus Cristo, carne que sofreu pelos nossos pecados e foi ressuscitada pela bondade do Pai.[12]

Johann Apakass de Museu Pushkin – Domínio Público
O Pe. Juan Carlos Sack ainda nos traz um pequeno panorama daquilo que acontecia na época de Inácio:
[…] deve-se saber que Inácio precisou enfrentar, entre outras, a heresia chamada “Docetismo”, uma forma de Gnosticismo, segundo a qual Jesus Cristo não veio realmente em carne, mas apenas em aparência. Segundo esta heresia, Seu corpo não era real como o nosso, mas seria uma espécie de ilusão. Diziam, por exemplo, que a expressão “E o Verbo se fez carne” (João 1,14) devia ser entendida de modo simbólico, pois é “o espírito” que “vivifica; a carne para nada serve” (João 6,63).[13]
Mais uma vez vemos aqui o gnosticismo. É verdade que o protestantismo possui diferenças com essa heresia, mas o que estou afirmando é que determinadas vertentes e opiniões teológicas protestantes, tais como essa interpretação simbólica ou a espiritual, estão mais para o gnosticismo do que para a fé dos Apóstolos. A encíclica do Papa Paulo VI, Mysterium Fidei, após falar sobre as formas com que Jesus se faz presente na Igreja e na vida dos cristãos, expressa categoricamente, e em consonância com toda a história do cristianismo, a verdade apostólica defendida pela Igreja Católica:
Estas várias maneiras de presença enchem o espírito de assombro e levam-nos a contemplar o Mistério da Igreja. Outra é, contudo, e verdadeiramente sublime, a presença de Cristo na sua Igreja pelo Sacramento da Eucaristia. Por causa dela, é este Sacramento, comparado com os outros, “mais suave para a devoção, mais belo para a inteligência, mais santo pelo que encerra”; contém, de fato, o próprio Cristo e é “como que a perfeição da vida espiritual e o fim de todos os Sacramentos”. Esta presença chama-se “real”, não por exclusão como se as outras não fossem “reais”, mas por antonomásia porque é substancial, quer dizer, por ela está presente, de fato, Cristo completo, Deus e homem. Erro seria, portanto, explicar esta maneira de presença imaginando uma natureza “pneumática”, como lhe chamam, do corpo de Cristo, natureza esta que estaria presente em toda a parte; ou reduzindo a presença a puro simbolismo, como se tão augusto Sacramento consistisse apenas num sinal eficaz “da presença espiritual de Cristo e da sua íntima união com os féis, membros do Corpo Místico”.[14]
Fica evidente que a Igreja Católica mantém a mesma doutrina desde a antiguidade, o que acontece é que o desenvolvimento da teologia e da filosofia fizeram com que os eruditos se aprofundassem mais e, assim, conseguissem expor a Verdade da fé de forma mais clara. Porém, a fé da Igreja sempre foi esta: após a consagração, o que temos não é mais apenas pão e vinho, mas o próprio Cristo! Com os avanços teólogico-filósofos, a Igreja criou o termo transubstanciação para explicar tal milagre, de que as aparências do pão e do vinho permanecem, mas a substância é transformada pelo poder das palavras de Cristo ditas pelo sacerdote. E isso permanece sendo exatamente a mesma doutrina de sempre. O desenvolvimento teológico de uma doutrina é absolutamente normal, e isso acontece, inclusive, em todas as principais denominações protestantes. O Pe. Paulo Ricardo, à luz de São Tomás de Aquino, nos explica o conceito da transubstanciação de forma simples:
A substância é a identidade da coisa. O acidente é a aparência da coisa. Tudo o que se vê é acidente. Não existe acesso à substância, em nada, não só na Eucaristia, é uma realidade metafísica. Os acidentes podem mudar, mas a substância permanece sempre a mesma. Mudar a substância significa mudar a identidade.[15]
O que ocorre, portanto, na Eucaristia, é a mudança da substância dos elementos, mantendo-se os acidentes (aparência). Ora, se a substância foi mudada, então o que se tem já não é mais pão e vinho, mas sim Corpo e Sangue. Isso está em perfeita harmonia com a interpretação histórica do cristianismo. Porém, verdade é que durante a busca por se explicar melhor determinadas doutrinas, podem surgir algumas explicações que fogem completamente daquilo que faz parte da crença dos cristãos.
BERENGÁRIO DE TOURS
Ora, se os cristãos sempre creram que pão e vinho deixam de ser simples pão e vinho para se tornarem Corpo e Sangue de Cristo, então as explicações e desenvolvimentos teológicos precisam ter isso como base, para que não se desviem da autêntica fé que foi transmitida por Jesus e pelos apóstolos. Acredita-se que o primeiro teólogo a propor um entendimento eucarístico diferente foi Berengário de Tours, no século XI:
Já no século XI, surge a heresia eucarística de Berengário de Tours. Ele afirmava, em seus ensinamentos na escola da catedral de Tours, que na eucaristia não estava o verdadeiro corpo e sangue de Cristo, mas somente uma imagem ou figura. Como Berengário era muito ativo e hábil, suas idéias atraíram muitos adeptos e logo se difundiram. A doutrina chegou ao Papa Leão IX que condenou a heresia de Berengário. Habilidoso, o herege conseguiu, porém, o apoio de dois bispos e do rei da França, Henrique II. Foi condenado, porém, em 1051 no sínodo em Paris.[16]
Inclusive em 1049, Lanfranco de le Bec triunfou sobre Berengário de Tours (acima), escrevendo a obra De corpore et sanguine Domini contra os erros de Berengário. Em 1050, o concílio de Roma condenou Berengário por seus ensinos sobre a natureza simbólica da Eucaristia. Podemos perceber aqui a proximidade da sua teologia com a dos primeiros líderes do protestantismo, especialmente com a de João Calvino e a de Zwinglio. Podemos, portanto, presumir que muitos protestantes são herdeiros dessa heresia eucarística. Compreendamos, pois, como se fez a ponte que ligou gnosticismo e protestantismo na questão da Eucaristia. Todavia, a maior verdade de todas é que a Igreja sempre lutou para preservar a fé, e por esse motivo alguns concílios da Idade Média trataram bastante a respeito dos mistérios eucarísticos. A Mysterium Fidei de Paulo VI nos dá mais detalhes a respeito da heresia de Berengário, e cita os concílios que combateram os erros nessa questão:
Mais útil será recordar a firmeza da fé que mostrou a Igreja, ao resistir muito unânime a Berengário. Levado pelas dificuldades que sugere a razão humana, foi ele quem primeiro se atreveu a negar a conversão eucarística; a Igreja condenou-o repetidamente, se não se retratasse. Gregório VII, nosso predecessor, obrigou-o a prestar um juramento nestes termos: “Creio de coração e confesso de palavra que o pão e o vinho, colocados sobre o altar, se convertem substancialmente, pelo mistério da oração sagrada e das palavras do nosso Redentor, na verdadeira, própria e vivificante Carne e no Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo; e que, depois de consagrados, são o verdadeiro Corpo de Cristo, que nascido da Virgem e oferecido pela salvação do mundo, esteve suspendido na Cruz e agora está assentado à direita do Pai; como também o verdadeiro Sangue de Cristo, que saiu do seu peito. Não está Cristo somente como figura e virtude do Sacramento, mas também na propriedade da natureza e na realidade da substância”. Com estas palavras concordam (admirável exemplo da firmeza da fé católica!) os Concílios Ecumênicos de Latrão, de Constança, de Florença e, por fim, de Trento, naquilo que constantemente ensinaram acerca do mistério da conversão eucarística, quer expusessem a doutrina da Igreja quer condenassem erros.[17]
Verdade é que John Wycliffe, famoso teólogo do século XIV e líder do herético movimento dos lolardos, reviveu a heresia de Berengário. Não é à toa que Wycliffe é considerado um pré-reformador protestante, pois pode-se dizer que ele influenciou diretamente nas ideias que iriam surgir no século XVI, não só nas questões referentes à Eucaristia, mas também sobre a autoridade da Igreja e das Sagradas Escrituras, dentre outras coisas.[18] A ideia que sobra é a de Lutero, pois ele manteve a crença na presença real de Cristo no sacramento, porém unido ao pão, o que não se harmoniza com a fé transmitida pela Igreja ao longo dos séculos. Lutero de fato ensina que Jesus se junta ao pão e por isso está presente, mas não foi isso que nosso Senhor ensinou. Jesus disse “Isto é o meu Corpo”. Ele não disse: “Eu estou no pão”, Ele disse que aquele pão na verdade era Ele. Assim, o mais adequado seria dizer, não que Jesus está presente no pão, mas que aquilo já não é mais pão, e sim o próprio Jesus. A doutrina de Lutero é, portanto, mais um desvio, e mais uma heresia. É pela fé que cremos ser Jesus no sacramento. Os judeus viam apenas um simples homem ao olhar para Jesus, porém, era o próprio Deus diante deles. Da mesma forma, com nossos olhos humanos só conseguimos ver um simples pedaço de pão, mas consagrado, é Jesus, Jesus perfeito em seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Só podemos conceber isso pela fé. Podemos explicar teologicamente e filosoficamente, mas se não existir fé de nada adianta. O conhecimento se torna inútil sem a fé.
AMBRÓSIO DE MILÃO DIZ QUE É O PODER DA PALAVRA DE CRISTO QUE TRANSFORMA O PÃO EM SEU CORPO
Para nos auxiliar e fortalecer na fé, Santo Ambrósio nos lembra que as palavras proferidas pelo sacerdote ao consagrar o pão e o vinho são as palavras de Jesus, e é por meio delas que o milagre acontece:
Talvez digas: “Meu pão é comum. Mas este pão é pão antes das palavras sacramentais; depois da consagração, o pão se transforma em carne de Cristo. Demonstremos isso. Como pode ser que o pão pode se tornar corpo de Cristo? Com quais palavras se fez a consagração e com palavras de quem? Do Senhor Jesus. Com efeito, todo o resto que se diz antes, é dito pelo sacerdote: louva-se a Deus, dirige-se-lhe oração, pede-se pelo povo, pelos reis (cf. 2Tm 2,12) e pelos outros. No momento em que se realiza o venerável sacramento, o sacerdote já não usa as suas próprias palavras, mas as palavras de Cristo. Portanto, é a palavra de Cristo que produz o sacramento.[19]

Francisco de Goya via Wikimedia Commons
Licença Creative Commons Zero, Public Domain Dedication
Diante de tudo o que foi exposto, acredito que já ficou suficientemente claro que os cristãos primitivos não viam a Eucaristia como mero simbolismo, mas que essa ideia surgiu de teólogos heréticos, que curiosamente viveram na Idade Média. Portanto, cai por terra a acusação de que a transubstanciação é uma simples inovação medieval, uma invenção do suposto “paganismo católico”. Se alguém trouxe inovações teológicas não foram os católicos, mas os protestantes, que não só reviveram, como sistematizaram e popularizaram heresias que já haviam sido rejeitadas e refutadas séculos antes.
CONCLUSÃO
A Igreja Católica é a mesma Igreja chamada de primitiva, é a Igreja dos apóstolos, logo, ela é a detentora do autêntico Evangelho, a responsável por preservar as divinas mensagens de Cristo. Não é diferente a respeito da Eucaristia. Nosso Senhor disse que quem comer do pão que ele desse teria a vida eterna. É confiando dessa palavra que Santo Inácio, no caminho para o martírio, dizia: “Desejo o pão de Deus, que é a carne de Jesus Cristo, da linhagem de Davi, e por bebida desejo o sangue dele, que é amor incorruptível.”[20] Também diz Inácio que a Eucaristia é “remédio de imortalidade, antídoto para não morrer, mas para viver em Jesus Cristo para sempre.”[21] Que belo testemunho! É nessa fé que permanecemos! Portanto, se na Eucaristia não está Jesus, e se ela não opera mudança em nosso ser de que ela serve? Nada! Mas, Jesus se dá a nós por amor e misericórdia. Verdadeiramente o pão de faz Corpo de Cristo, e o vinho de faz sangue de Cristo. Essa é a fé cristã.
REFERÊNCIAS
[1] A Confissão de Augsburgo, Artigo 10.
[2] Catecismo Menor de Martinho Lutero, parte 6.
[3] Declaração de Fé das Assembleias de Deus. — Casa Publicadora da Assembleia de Deus (CPAD)/2017. pg 132.
[4] 67 Teses de Ulrich Zwinglio. Tese XVIII (Sobre a Missa).
[5] Augustus Nicodemus Lopes. Cristianismo facilitado: respostas simples para questões complexas / Augustus Nicodemus. — 1. ed. — São Paulo: Mundo Cristão, 2019. p. 139.
[6] 39 Artigos da Religião, Artigo XXVIII.
[7] Catecismo Maior de Westminster, 170.
[8] Santo Irineu de Lyon. Contra as Heresias. IV livro, 18. 5.
[9] Ibid. V livro, 2. 5.
[10] Juan Carlos Sack. A Presença Real de Cristo na Eucaristia – Parte 2. Bíblia Católica, 8 de dezembro de 2013. Disponível em: https://tinyurl.com/22ckhy7b . Acesso em: 28 de Novembro de 2021.
[11] São Justino de Roma. I Apologia. 66.1-4..
[12] Santo Inácio de Antioquia. Inácio aos Esmirniotas. 7.1.
[13] Juan Carlos Sack. A Presença Real de Cristo na Eucaristia – Parte 2. Bíblia Católica, 8 de dezembro de 2013. Disponível em: https://tinyurl.com/22ckhy7b . Acesso em: 28 de Novembro de 2021.
[14] São Paulo VI. Mysterium Fidei: Sobre o Culto da Sagrada Eucaristia. Roma, 3 de Setembro de 1965.
[15] Paulo Ricardo de Azevedo. A presença real de Jesus na eucaristia. Christo Nihil Praeponere, 7 de novembro de 2012. Disponível em: https://tinyurl.com/272vsk77 . Acesso em: 20 de janeiro de 2022.
[16]Daniel Pinheiro. [Sermão] História das heresias IV: iconoclastia e heresia de Berengário de Tours. Missa Tridentina em Brasília, 7 de maio de 2017. Disponível em: https://missatridentinaembrasilia.org/2017/05/10/sermao-historia-das-heresias-iv-iconoclastia-e-heresia-de-berengario-de-tours/. Acesso em: 17 de dezembro de 2021.
[17] São Paulo VI. Mysterium Fidei: Sobre o Culto da Sagrada Eucaristia. Roma, 3 de Setembro de 1965.
[18] Daniel Pradera. John Wycliffe e a Heresia Lollard. Summaria, 10 de julho de 2018. Disponível em: https://summaria.wordpress.com/2018/07/10/john-wycliffe-e-a-heresia-lollard/ . Acesso em: 12 de dezembro de 2021.
[19] Santo Ambrósio de Milão. Sobre os Sacramentos. IV Livro, 4. 14.
[20] Santo Inácio de Antioquia. Inácio aos Romanos. 7. 3.
[21] Ibid. Inácio aos Efésios. 20. 2.






