A linha tênue das indulgências

Joe Heschmeyer

Joe Heschmeyer

Uma manchete do Vatican News declara: “O Vaticano amplia oportunidades para lucrar indulgências aos mortos”, e você tem uma sensação de déjà vu… já não estivemos aqui antes? Afinal, foi toda a questão das indulgências que levou às 95 Teses de Martinho Lutero, a centelha da Reforma Protestante, no Halloween de 1517. Embora muitos de nós nos lembremos de Lutero como sendo “oposto às indulgências”, isso não é correto. Lutero defendeu uma concepção estrita do que uma indulgência fazia: que “as graças das indulgências dizem respeito apenas às penalidades da satisfação sacramental estabelecidas pelo homem”. Em outras palavras, Lutero acreditava que a Igreja poderia afrouxar as suas próprias penas, mas esse atar e afrouxar era só isso. No entanto, ele insistiu: “Quem falar contra a verdade a respeito das indulgências papais seja anátema e amaldiçoado”. Como mencionei antes, esta é a grande ironia das 95 Teses celebradas pelos protestantes: Lutero condena aqueles que negam as indulgências.

 

Foto de Wim van ‘t Einde na Unsplash

 

O problema de Lutero, pelo contrário, era com a venda de indulgências. Se as indulgências realmente conferem um benefício espiritual, é horrível tentar vender tal benefício. Na verdade, constitui o pecado da simonia, assim chamado por causa do Simão mencionado em Atos 8:18-20:

 

Vendo, pois, Simão que o Espírito era dado pela imposição das mãos dos apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro, dizendo: “Dai-me também este poder, para que aquele sobre quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo”. Mas Pedro lhe disse: “Sua prata pereça com você, porque você julgou poder obter o dom de Deus com dinheiro!”

 

Neste ponto, o Concílio de Trento realmente concordou com Lutero. Embora reafirmando que “o poder de conferir Indulgências foi concedido por Cristo à Igreja”, o Concílio lamentou, no entanto, “os abusos que ali se instalaram, e por ocasião dos quais este honroso nome de Indulgências é blasfemado pelos hereges”. Para combater a situação, o Concílio “aboliu totalmente” os “ganhos malignos” obtidos através da venda de indulgências, e ordenou a todos os bispos que estivessem em guarda contra “os outros abusos que procedem da superstição, ignorância, irreverência, ou de qualquer outra fonte”. Dado que tanto os católicos como os protestantes reconhecem que a venda de indulgências foi um mal grave, como pôde tal abuso ter ocorrido em primeiro lugar? É isso que quero explorar hoje, porque penso que nós (católicos e protestantes!) podemos estar mais propensos a este perigo do que imaginamos. O desafio é manter unidas duas ideias cristãs: (1) Deus realmente recompensa a generosidade; e (2) é impossível subornar a Deus e é impossível ao mal tentá-lo.

Este paradoxo é claramente capturado no Eclesiástico 35. Nos versículos 10-12, a bondade de retribuir a Deus é proclamada: “Dê ao Altíssimo conforme te foi dado por ele e dá de bom coração segundo a tua mão encontrou. Pois o Senhor é quem retribui, e ele lhe retribuirá sete vezes mais”. Mas no versículo seguinte, há imediatamente uma advertência contra a espiritualidade transacional: “Não lhe ofereças suborno, pois ele não aceitará; e não confie em um sacrifício injusto; porque o Senhor é o juiz, e com ele não há parcialidade.” Em outras palavras, dê generosamente a Deus, que recompensará sua generosidade, mas não pense que você O subornará ou comprará o Céu. Agora, o Eclesiástico não é encontrado nas Bíblias protestantes, todavia, as ideias que ele expressa de fato são. São Paulo lembra aos Coríntios que devem dar generosamente, pois “Deus ama quem dá com alegria” e “quem semeia pouco também colherá pouco, e quem semeia com abundância também colherá generosamente” (2 Cor 9, 6-7). Ele continua lembrando-os em 2 Cor. 9:10-12:

 

Aquele que dá a semente ao semeador e o pão para alimento suprirá e multiplicará os seus recursos e aumentará a colheita da sua justiça. Sereis enriquecidos em todos os sentidos por uma grande generosidade, que através de nós produzirá ações de graças a Deus; pois a prestação deste serviço não apenas supre as necessidades dos santos, mas também transborda em muitas ações de graças a Deus.

 

Como diria mais tarde Santo Inácio de Loyola: “Deus nunca se cansa de generosidade”. Aqueles que dão generosamente são realmente recompensados. São Paulo parece sugerir que a generosidade será recompensada nesta vida, lembrando aos Coríntios que “Deus é capaz de lhes dar todas as bênçãos em abundância, para que vocês sempre tenham o suficiente de tudo e possam prover em abundância para toda boa obra”. (2 Coríntios 9:8). Mas obviamente que a sua mensagem é mais verdadeira no que diz respeito à próxima vida. Jesus diz ao jovem rico em Mateus 19:21: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuis e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e venha, siga-me. Tobias 12:8-9 (que também não está nas Bíblias protestantes) diz que “a oração é boa quando acompanhada de jejum, esmola e justiça. Um pouco com justiça é melhor do que muito com injustiça. É melhor dar esmola do que acumular ouro. Pois a esmola livra da morte e purificará todo pecado.” Jesus descreve isso como uma espécie de construção de uma fortuna espiritual em Lucas 12:33-34: Vendei o que tendes, e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não se envelheçam; tesouro nos céus que nunca acabe, aonde não chega ladrão e a traça não rói. Pois onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração.” E em Lucas 6:38, “dai, e ser-vos-á dado; uma boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, será colocada em seu regaço. Pois a medida que você der será a medida que você receberá de volta.”

Tudo isso quer dizer que a ideia de que dar generosamente garante riquezas espirituais no céu não é uma corrupção medieval do Evangelho: é o que a Bíblia realmente ensina! E ainda assim temos, junto com esta mensagem, advertências como Eclesiástica 35:12 e Atos 8:18-20. Então, como podemos entender isso? Pode ser útil notar que encontramos um paradoxo semelhante em muitas outras áreas da vida. As pessoas são incentivadas a participar politicamente, inclusive apoiando financeiramente candidatos que considerem que implementarão boas políticas. Mas se você dissesse a um candidato “apoie este plano e eu lhe passarei um cheque”, você cruzaria a linha tênue, mas ainda assim importante, do apoio político para o suborno criminoso. Da mesma forma, há uma linha importante entre cortejar uma mulher com presentes e encontros caros e tentar “comprá-la”.

Em todas estas áreas, fazer uma coisa boa acarreta uma recompensa, mas tentar “comprar” a recompensa, tratando as coisas de uma forma transacional, é a abordagem errada. Essa é uma lição importante para nós. A maioria de nós nunca se sentiu tentado a comprar uma indulgência: é bastante simples, já que ninguém está vendendo. Mas existem muitas outras maneiras pelas quais podemos ser tentados a abordar a vida espiritual “como uma transação”. Algumas delas são bastante óbvias (Oferte a este pregador e Deus te tornará rico!), mas outras são mais sutis (faça esta oração todos os dias e Deus terá que lhe dar o que você deseja!). Pior, podemos facilmente tratar toda a nossa vida de forma transacional: posso me esforçar para fazer o bem e evitar o mal para que Deus me dê o Céu, mas sem que eu realmente o ame. Então, como podemos evitar cair nessa armadilha? A resposta fácil (e também difícil) é amar a Deus por Ele mesmo e antes de todas as coisas. Essas recompensas não são ruins: é bom que Deus abençoe os doadores generosos, que Ele responda às orações e que Ele trate com seriedade a nossa escassa esmola. Mas a vida espiritual nunca foi uma questão de recompensas, e nunca deve ser uma questão de recompensas. As boas dádivas que Deus dá são para nos atrair a Ele e para revelar algo sobre Sua natureza generosa e amorosa, e não para substituí-Lo. Afinal, Deus quer nos dar não apenas alguma recompensa, mas Ele mesmo.

Podemos facilmente olhar para trás e julgar os católicos do século XVI: como poderiam eles pensar que dar uma doação a um vendedor de indulgências agradaria a Deus ou garantiria o seu lugar no Céu? Mas antes de fazermos isso, acho que vale a pena perguntar… somos tão diferentes assim hoje?

 

Foto Principal de Alexander Grey na Unsplash

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Joe Heschmeyer

Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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