A Imaculada Conceição foi imposta aos católicos em 1854?

Joe Heschmeyer

Joe Heschmeyer

No início deste mês, respondi a uma série de objeções sobre a impecabilidade de Maria levantadas por um leitor não denominacional. O mesmo leitor respondeu, via e-mail. Um de seus argumentos contra a Imaculada Conceição se deu da seguinte maneira:

 

É preocupante que sua declaração tenha sido baseada em um dogma, a Imaculada Conceição, uma doutrina, aliás, rejeitada por Tomás de Aquino e Anselmo, imposta à Igreja Católica em 1854 por Pio IX? Dez anos depois, o mesmo papa impôs seu infame “Syllabus Errorum, que condenava todas as liberdades civis, e foi rejeitado por praticamente todos os católicos. Seis anos depois, ele teve o último dos estados papais arrancado de suas mãos ávidas pelo exército italiano. Pio também deu à Igreja um pronunciamento papal ex-cathedra-infalível e canonizou Pedro de Arbués, um inquisidor do século XV que presidiu o batismo forçado de judeus na Espanha. Se você rejeita o syllabus, e eu ficaria surpreso se não o fizesse, como pode justificar a aceitação da Imaculada Conceição? Isso não faria de você um católico de cafeteria?

 

Esta história é tendenciosa e enganosa no que se refere a Aquino e Anselmo. Há boas razões para acreditar que Aquino morreu crente na Imaculada Conceição. Mas mesmo que Aquino tenha negado a Imaculada Conceição, tanto ele quanto Anselmo estavam radicalmente mais próximos da posição católica do que da posição evangélica. Aqui está  Anselmo falando sobre Maria, por exemplo: me diga você, se ele soa mais como católico ou evangélico. E lembre-se, este é o leitor escolhendo a dedo os cristãos históricos. Se até mesmo aqueles que ele escolhe a dedo soam mais como católicos quando a questão é falar de Maria, será que isso não poderia se dar em decorrência do fato de que são os católicos que possuem a visão histórica de Maria? A falta de críticas a Maria antes da Reforma se dá porque todas as gerações de cristãos ortodoxos antes da Reforma, tal como aquelas nas Igrejas Católica e Ortodoxa, consideravam e chamavam Maria de bendita. (E sim, eu me sinto confortável chamando suas palavras e termos de críticas a Maria: pois em outro lugar em seu e-mail, ele sugere que Maria pode ter sido uma apóstata).

 

 

Em outras palavras, há de fato apenas duas razões para citar Aquino e Anselmo sobre Maria neste contexto. A primeira é que ele realmente se importa com o que Aquino e Anselmo têm a dizer. Mas isso claramente não é verdade, já que o leitor rejeita quase todo o resto daquilo que eles têm a dizer, e nem mesmo se apega à visão que esses dois santos têm de Maria. A segunda razão de usá-los como argumento é mostrar que a Imaculada Conceição não era algo em que os católicos costumavam acreditar. Mas a história real aqui revela exatamente o oposto: a Imaculada Conceição na verdade era aceita, só que os debates sobre a ausência de pecado em Maria tendiam a girar em torno de minúcias relativas ao momento preciso em que ela foi purificada do pecado original. Para esse assunto, vamos deixar os padrões duplos de lado. O argumento evangélico, resumindo, é que, uma vez que havia alguns cristãos que negavam a Imaculada Conceição, ela não deve ser parte da fé histórica e, portanto, não é verdadeira. Mas onde estão os  primeiros cristãos que engolem a Maria defendida pela maioria dos evangélicos comuns hoje em dia? Por essa lógica, os evangélicos estão condenando  suas próprias visões. Os católicos podem apontar para uma grande variedade de primeiros cristãos que acreditavam como nós hoje: mas os evangélicos podem fazer o mesmo?

 

Ataques pessoais ao Beato Papa Pio IX?

Tendo abordado Aquino e Anselmo, o que fazer com o resto? Por acaso, a Imaculada Conceição não seria verdadeira porque o Papa Pio IX perdeu o controle dos estados papais? Essa linha de argumentação, tal como é tomada, me parece logicamente incoerente. Bem, pior do que incoerente, na verdade. Parece ser uma série velada de ataques ad hominem ao Beato Papa Pio IX: de acordo com o leitor, tratava-se de um sujeito mau e, portanto, suponho que devemos concluir, que a Imaculada Conceição não é verdadeira. Seria como se eu dissesse, você vai acreditar nas cartas de Paulo aos Gálatas… mesmo que esse homem tenha costumado matar cristãos no passado?

Mas é claro que não acreditamos na infalibilidade da definição da Imaculada Conceição por causa da santidade pessoal de Pio, assim como não acreditamos na inspiração de Gálatas por causa da santidade pessoal de Paulo. Em cada caso, estamos confiando na capacidade do Espírito Santo de trabalhar por meio de instrumentos humanos falhos. O argumento da “cafeteria católica” é similarmente fraco. Se a única coisa necessária para desmascarar o catolicismo fosse mostrar que um dos papas era um pecador, a Igreja já teria sido extinta há muito tempo. Por sua própria conta, o primeiro papa, São Pedro, negou Cristo três vezes. Não varremos esse fato para debaixo do tapete. Lemos o relato disso todo Domingo de Ramos. Então não, não há obrigação dos católicos de concordar com literalmente tudo o que o papa diz ou faz, nem a doutrina da infalibilidade papal diz algo remotamente parecido com isso. Já que o leitor faz referência à definição de infalibilidade papal (que consiste em declarações ex cathedra, como o Vaticano I definiu), acho que ele sabe melhor. Espalhar essa caracterização errônea da infalibilidade papal só envenena as águas.

 

A História da Doutrina da Imaculada Conceição

O eixo central desse argumento está na alegação do leitor de que a doutrina da Imaculada Conceição foi “imposta à Igreja Católica em 1854” pelo Papa Pio IX. Na verdade, são duas alegações: (a) que a doutrina da Imaculada Conceição foi imposta, de cima para baixo, à Igreja; e (b) que a doutrina foi imposta em 1854. Ambas as alegações são demonstravelmente falsas. Em 1661, o Papa Alexandre VII declarou:

 

“Quanto à Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus, antiga é de fato aquela devoção dos fiéis baseada na crença de que sua alma, no primeiro instante de sua criação e no primeiro instante da infusão da alma no corpo, foi, por uma graça e privilégio especial de Deus, em vista dos méritos de Jesus Cristo, seu Filho e Redentor da raça humana, preservada livre de toda mancha do pecado original. E neste sentido os fiéis sempre solenizaram e celebraram a Festa da Conceição.”

 

 Agora, ele disse isso em 1661, e mesmo assim, ele é capaz de se referir à crença na Imaculada Conceição como (a) uma devoção dos fiéis, e (b) uma devoção antiga. Se isso não desmascara a noção de que o dogma foi imposto pelo papado em 1854, não sei o que o faria. Essa era a situação em que a doutrina se encontrava por incontáveis ​​séculos: era crida por católicos comuns, celebrada por toda a Igreja como a Festa da Conceição de Maria, periodicamente recebia o aceno do papa, mas não havi sido formalmente definida. Na encíclica que define o dogma, o Papa Pio IX descreve a onda de pressão. E em vez de ser uma pressão de cima para baixo, a pressão vem das bases da Igreja:

 

Assim, desde os tempos antigos, os bispos da Igreja, eclesiásticos, ordens religiosas e até mesmo imperadores e reis, têm fervorosamente solicitado a esta Sé Apostólica que defina um dogma da Fé Católica, a Imaculada Conceição da Santíssima Mãe de Deus. Essas petições foram renovadas nestes nossos próprios tempos; elas foram especialmente levadas à atenção de Gregório XVI, nosso predecessor de feliz memória, e a nós mesmos, não apenas pelos bispos, mas pelo clero secular e ordens religiosas, por governantes soberanos e pelos fiéis.

 

Em resposta a isso, em 2 de fevereiro de 1849, o papa enviou uma Carta Encíclica perguntando aos vários bispos do mundo: (a) qual era a piedade e devoção local de seus fiéis em relação à Imaculada Conceição da Mãe de Deus, e (b) o que os próprios bispos pensavam sobre a definição dessa doutrina e quais eram seus desejos em relação a tornar conhecido com toda a solenidade possível nosso julgamento supremo. Esmagadoramente, os bispos responderam pedindo ao papa que definisse e declarasse solenemente o dogma, o que, após consulta com teólogos e com uma congregação especial, ele fez, em 8 de dezembro de 1854. O papado dificilmente tinha pressa em dogmatizar solenemente essa doutrina, e o fez somente após extensas súplicas de católicos comuns e dos bispos do mundo. Caracterizar isso como uma imposição do poder papal do século XIX é um ato ignorante ou desonesto, e uma história ruim em ambos os casos.
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Joe Heschmeyer

Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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