Este é um post sobre Jesus, mas também um pouco sobre São Pedro e o papado. Bom, vamos começar com Pedro. Há duas cenas em Mateus 16 que são mencionadas em referência ao papado: (1) a confissão de fé de São Pedro em Mateus 16:13-20, e (2) a repreensão de Jesus a São Pedro (“Para trás de mim, Satanás!”) em Mt. 16:21-23. À primeira vista, a primeira delas parece apoiar a posição católica, enquanto a segunda parece contradizê-la (ou pelo menos complicá-la). Aparentemente, as duas passagens estão dizendo coisas contraditórias sobre o papel de Pedro. O que torna isso ainda mais impressionante é que as duas passagens acontecem uma após a outra. Aqui está o texto completo de Mateus 16:13, até 23:
13 Quando Jesus chegou ao distrito de Cesaréia de Filipe, perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” 14 E eles disseram: “Uns dizem que é João Batista, outros que é Elias, e outros que é Jeremias ou um dos profetas.” 15 Ele lhes disse: “Mas vocês, quem dizem que eu sou?” 16 Simão Pedro respondeu: “ Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. ” 17 E Jesus lhe respondeu: “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas! Porque não foi carne e sangue que te revelaram isso, mas meu Pai, que está nos céus. 18 E eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e os poderes da morte não prevalecerão contra ela. 19 Eu te darei as chaves do reino dos céus; tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.” 20 Então ordenou severamente aos discípulos que a ninguém dissessem que ele era o Cristo.
21 Desde então, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que ele fosse a Jerusalém, e sofresse muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes e dos escribas, e fosse morto, e ressuscitasse ao terceiro dia. 22 E Pedro, tomando-o consigo, começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita, Senhor! Isso nunca te acontecerá.” 23 Mas ele se voltou e disse a Pedro: “Para trás de mim, Satanás! Você é um obstáculo para mim; pois você não está do lado de Deus, mas dos homens.”
Talvez uma das razões pelas quais esses dois relatos pareçam contraditórios é precisamente porque estamos lendo como se fossem dois relatos separados: um em que Pedro fala bem e é elogiado, e outro em que Pedro fala mal e é repreendido. Certamente, essa é a maneira como a maioria das Bíblias modernas o apresenta e a maneira como as pessoas tendem a lê-lo. Por exemplo, a RSV:CE [Revised Standard Version Catholic Edit] tem os versos 13-20 trazidos sob o título “Declaração de Pedro sobre Jesus” e os versos 21-23 sob o título “Jesus Prediz Sua Morte e Ressurreição” (várias outras versões fazem algo equivalente). E muitas outras Bíblias fazem o mesmo. Os comentaristas bíblicos também tendem a tratar esses dois eventos como distintos: Aquino faz isso, assim como Matthew Henry, bem como João Calvino, e os Comentários do Novo Testamento do IVP, etc. Mas e se, em vez de dois relatos separados, os lêssemos como um único relato? Há várias razões para lê-los dessa forma. Primeiro, é assim que eles aparecem nos relatos paralelos. Aqui está Marcos 8:27-33,
E Jesus foi com os seus discípulos para as aldeias de Cesaréia de Filipe; e no caminho perguntou aos seus discípulos: Quem dizem os homens que eu sou? E eles lhe disseram: João Batista; e outros, Elias; e outros, um dos profetas. E ele lhes perguntou: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Pedro respondeu-lhe: Tu és o Cristo. E ordenou-lhes que a ninguém dissessem a respeito dele. E começou a ensinar-lhes que o Filho do homem devia sofrer muitas coisas, e ser rejeitado pelos anciãos, e pelos principais sacerdotes, e pelos escribas, e ser morto, e depois de três dias ressuscitar. E ele disse isso claramente. E Pedro, tomando-o consigo, começou a repreendê-lo. Mas, voltando-se e vendo os seus discípulos, repreendeu a Pedro, e disse: Para trás de mim, Satanás! Porque não estás do lado de Deus, mas dos homens.
Talvez isso ainda possa ser lido como dois relatos separados (na verdade, é dividido em dois relatos na RSV:CE), mas não há como contornar a unidade narrativa do relato do terceiro Evangelho, Lucas 9:18-21.
E aconteceu que, estando ele a orar a sós, estavam com ele os discípulos; e perguntou-lhes: Quem dizem as multidões que eu sou? E eles responderam: João Batista; mas outros dizem: Elias; e outros: Um dos antigos profetas ressuscitou. E ele lhes disse: Mas vós, quem dizeis que eu sou? E Pedro respondeu: O Cristo de Deus. Mas ele ordenou-lhes que a ninguém dissessem isto, dizendo: É necessário que o Filho do homem padeça muitas coisas, e seja rejeitado pelos anciãos, e pelos principais sacerdotes, e pelos escribas, e seja morto, e ressuscite ao terceiro dia.
Para separar isso em dois relatos, você teria que dividir a última frase ao meio: a primeira metade sobre a declaração de Pedro de Cristo como o Messias, e a segunda sobre a necessidade de o Filho do Homem sofrer. A segunda razão para lê-lo como um único relato é a notável similaridade entre os três Sinóticos. Cada um apresenta os seguintes detalhes na seguinte ordem:
- Jesus pergunta aos discípulos quem os homens dizem que Ele é;
- Os discípulos relatam a compreensão inadequada que as pessoas tinham dele;
- Jesus pergunta aos discípulos quem eles dizem que Ele é;
- Pedro, respondendo em nome dos Doze, proclama Jesus como o Cristo ;
- Jesus ordena que não revelem isso a ninguém ; e
- Jesus então revela que Ele terá que sofrer, morrer e ressuscitar.
O fato de que cada relato enfatiza esses detalhes, e nessa ordem, é notável. Em particular, é impressionante que cada um dos Sinóticos mostre a resposta de Cristo à confissão de fé de Pedro como incluindo (a) uma ordem aos Apóstolos para manterem silêncio sobre isso, e (b) uma profecia de Sua Paixão. Ler isso como dois relatos colocaria essa resposta (ou pelo menos (b)) como separada da confissão de fé de Pedro. O padre John M. Cunningham, OP (Prior de San Clemente e meu professor de Cristologia no Angelicum), ofereceu algumas boas razões para ler a reação de Jesus como sendo uma reação ao proprio título de Cristo: isso indicando que Jesus aceita o título de “Cristo”, mas com certas ressalvas para garantir que ele não seja mal interpretado. Essa leitura faz sentido quanto ao porquê de os itens 1-6 aparecerem nessa ordem: Jesus está ciente de que a ideia que as pessoas fazem dele é falha e esta precisa de correção e purificação, mas também está ciente de que até mesmo a fé dos apóstolos é imperfeita e precisa ser fortalecida.

Leonardo da Vinci [Domío Público]
Esta leitura também coincide com várias outras passagens do Novo Testamento. Há dois momentos marcantes quando Jesus é diretamente questionado se Ele é o Cristo. Em Mateus 26:63-64, o sumo sacerdote disse a Ele: “Eu te conjuro pelo Deus vivo, diga-nos se você é o Cristo, o Filho de Deus. ” Jesus lhe disse: “Você disse isso. Mas eu lhe digo, daqui em diante você verá o Filho do homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens do céu.” Então o sumo sacerdote O chama de Cristo e Filho de Deus, e Ele responde chamando a Si mesmo de Filho do Homem. Isto, a propósito, é exatamente como Ele responde a São Pedro em Mateus 16 (volte e releia se você não entendeu da primeira vez). O segundo como este diz respeito a um momento semelhante que se encontra um capítulo depois, em Mateus 27:11. O governador pergunta a ele: “Você é o Rei dos Judeus? ” Jesus responde: ” Você disse isso. ” Então o que ocorre aqui? Cunningham argumenta (acho que corretamente) que todas as pessoas falando com Jesus estão usando títulos messiânicos que são de fato verdadeiros, mas que eles não os entendem, então Jesus evita dar uma resposta simplista de sim ou não às perguntas. Lembre-se de que “Cristo” significa “Messias” ou “Ungido” e que isso estava intimamente ligado a noções de autoridade política (isso é ainda mais verdadeiro para o título de “Rei dos Judeus”). Então Jesus é o Cristo, e Ele é o Cristo Rei, mas Ele não é Cristo ou Rei da maneira que eles estavam imaginando. Jesus desafia nossas noções de glória ao ligá-las diretamente à Cruz. É por isso que João 12:30-33 declara:
Jesus respondeu: “Esta voz veio por causa de vocês, não por mim. Agora é o julgamento deste mundo, agora o príncipe deste mundo será expulso; e eu, quando for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim.” Ele disse isso para mostrar com que morte ele iria morrer.
Ao dizer isso, Jesus está fazendo duas coisas: Ele está ligando a Crucificação com Sua Ascensão e está apresentando-a como uma espécie de Exaltação (o que literalmente era). Mas tudo que a multidão faz é ficar confusa com isso (João 12:34), respondendo: “Nós ouvimos da lei que o Cristo permanece para sempre. Como vocês podem dizer que o Filho do homem deve ser levantado? Quem é esse Filho do homem?” Tudo isso é levado a uma gradação impressionante na Crucificação. Em um golpe magistral de ironia Divina, Pilatos é finalmente influenciado a executar Cristo quando o povo clama: “Se soltares este, não és amigo de César; todo aquele que se faz rei se opõe a César” (João 19:12). Ou seja, depois de passar três anos mostrando que a visão do povo sobre Jesus como Cristo e Rei era incompleta sem a Cruz, eles respondem rejeitando-O (ainda pensando em Cristo e Rei em termos grosseiramente políticos) e O entregam à Cruz. Mesmo ali, na Cruz, o povo não entende a Sua mensagem, zombando Dele dizendo: “Desça agora da cruz o Cristo, o Rei de Israel, para que vejamos e creiamos” (Marcos 15;32). Então é isso que parece estar acontecendo em Mateus 16: Pedro, guiado pelo Pai, proclamou corretamente Jesus como o Cristo. E Jesus confirma que sim, é verdade. Mas Ele rapidamente os adverte para não espalharem isso (já que levaria, e levou, a mal-entendidos), e então começa a mostrar a eles o que significa dizer que Ele é o Cristo. Pedro, ainda imaginando que Jesus ser o Cristo indicava algo glorioso no sentido mundano, deseja rejeitar a Cruz. Ele quer que Jesus abrace o tipo de glória mundana que o diabo tentou fazer com que Jesus se contentasse em Lucas 4:5-6, e Jesus responde dizendo: “Para trás de mim, Satanás!”

Então, o que tudo isso tem a ver com Pedro e o papado?
Há uma razão final para ler essas duas partes de Mateus 16 como um único relato, e isso se relaciona diretamente à questão de quem é a “Rocha” de Mateus 16. Jesus se refere a São Pedro como um “obstáculo” para Ele mesmo. A palavra grega ali é skandalon (a raiz da nossa palavra “escândalo”), e significa literalmente algo em que você tropeça, como uma “armadilha” ou uma “pedra de tropeço”. Então, há uma espécie de jogo de palavras aqui: Pedro, no seu melhor estado, é uma pedra [rocha]; no seu pior estado, ele é uma pedra na qual podemos tropeçar. Isso mostra as duas dimensões do papado: é um locus importante para a Igreja, mas também pode ser escandaloso. Em uma de suas primeiras obras sobre eclesiologia, o Pe. Joseph Ratzinger (mais tarde, Papa Bento XVI) perguntaria:
“Não foi assim ao longo de toda a história da Igreja, que o papa, o sucessor de Pedro, foi petra e skandalon, rocha de Deus e ao mesmo tempo pedra de tropeço, tudo em um só?”

Em uma reviravolta fascinante, o mesmo Pedro a quem Jesus chama de Petros e tanto de petra quanto de scandalon em Mateus 16, retribuirá o favor. Em 1 Pedro 2:8, Pedro se refere a Jesus tanto como petra quanto como scandalon: “Uma pedra que fará os homens tropeçarem, uma rocha que os fará cair.” Mas aqui, a conotação é diferente. Ele não está repreendendo Cristo. Em vez disso, Jesus é um escândalo por causa do escândalo da Cruz. Ao fazer isso, Pedro ecoa as palavras de Jesus para si mesmo, mas com uma nova dimensão: ele finalmente compreendeu a conexão entre o messianismo de Jesus e o escândalo da Cruz. Finalmente, ele está nos levando a saber que Jesus realmente é Deus. Por quê? Porque 1 Pedro 2:8 também é uma citação de Isaías 8:13-14:
Mas o Senhor dos Exércitos , a ele santificareis; seja ele o vosso temor, e seja ele o vosso terror. E ele se tornará um santuário, e uma pedra de escândalo, e uma rocha de tropeço para ambas as casas de Israel, uma armadilha e um laço para os moradores de Jerusalém.
Então, em Mateus 16, Jesus está claramente se referindo a Pedro como uma rocha e um escândalo, mas ao dizer isso, não estamos negando que Jesus é ele mesmo uma Rocha e um Escândalo (embora de uma maneira muito diferente). (A propósito, se você quiser mais sobre esses temas, escrevi sobre o porquê de Pedro ser a Rocha de Mateus 16, e não apenas sua confissão de fé, e também sobre como muitas pessoas foram repelidas por Jesus.)
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