Quem são as “Quatro Criaturas Viventes” do Apocalipse?

Joe Heschmeyer

Joe Heschmeyer

A Primeira Leitura de hoje é de Ap 4,1-11, na qual São João apresenta uma visão celestial. Há muitos detalhes estranhos, mas um dos detalhes que tem capturado a imaginação dos cristãos nos últimos dois milênios diz respeito aos “quatro seres viventes”. Aqui está o que João descreve (Ap 4:6-8):

 

E havia diante do trono um como mar de vidro, semelhante ao cristal. E no meio do trono, e ao redor do trono, quatro animais cheios de olhos, por diante e por detrás. E o primeiro animal era semelhante a um leão, e o segundo animal semelhante a um bezerro, e tinha o terceiro animal o rosto como de homem, e o quarto animal era semelhante a uma águia voando. E os quatro animais tinham, cada um de per si, seis asas, e ao redor, e por dentro, estavam cheios de olhos; e não descansam nem de dia nem de noite, dizendo: Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, que era, e que é, e que há de vir.

Apocalipse 4:6-8

 

Mas o que está acontecendo aqui? Temos uma amostra da maneira como muitos protestantes explicam a passagem:

 

Os textos que descrevem essas criaturas não indicam que sejam figurativas – são seres reais e literais. As quatro criaturas viventes (literalmente “seres”) são uma ordem especial e exaltada de seres angelicais ou querubins. Isso fica claro por sua proximidade com o trono de Deus. Ezequiel 1:12-20 sugere que estão em constante movimento ao redor do trono.

 

Esta é uma leitura insatisfatória da passagem e (como veremos) muito diferente da maneira como os primeiros cristãos a entendiam.

 

A conexão de Ezequiel

 

A primeira coisa para qual devemos atentar é para o fato de que Apocalipse não é a primeira vez em que “quatro seres viventes” aparecem na Bíblia. A exegese acima só acerta ao ver uma conexão com o Livro de Ezequiel. No primeiro capítulo desse livro, o profeta Ezequiel descreve ter visto “uma grande nuvem com resplendor ao seu redor, e fogo brilhando continuamente”, e do meio do fogo “saiu a semelhança de quatro seres viventes” (Ezequiel 1:4-5). Cada um deles “tinha a forma de homem, contudo, cada um tinha quatro rostos, e cada um deles tinha quatro asas” (vv. 5-6). Os quatro rostos eram “o rosto de um homem na frente; os quatro tinham rosto de leão do lado direito, os quatro tinham rosto de boi do lado esquerdo, e os quatro tinham rosto de águia nas costas” (v. 10).

Assim, o Livro de Ezequiel e o Apocalipse de João se alinham, com uma exceção: enquanto Ezequiel vê quatro seres angelicais, cada um com quatro faces (homem, leão, boi, águia), João vê quatro seres (um semelhante a um homem, um leão, um boi e um águia). Mas essas descrições são tão semelhantes (e tão diferentes de qualquer outra coisa sobre a qual lemos) que as pessoas conectam os dois corretamente. No entanto, o fato de serem diferentes nesse único aspecto (quatro rostos cada um contra um único rosto cada) sugere que algo diferente também está acontecendo. É aqui que a exegese protestante falha. Devemos entender então que os quatro seres viventes literalmente tinham quatro rostos cada um no tempo de Ezequiel, mas só tinham um rosto cada um no tempo de João?

 

A Conexão Litúrgica

 

Você pode estar se perguntando em que as “quatro criaturas viventes” estão associadas aos querubins, visto que Ezequiel nunca os chama assim, apesar de mencionar querubins em outro lugar; e o fato de que os querubins retratados em Ezequiel têm duas faces, não quatro (cf. Ezequiel 41:18); e o fato de que as quatro criaturas vivas em Apocalipse estão proclamando o “santo, santo, santo” , o que é associado aos serafins (Isaías 6:2-3).

Em um nível literal, portanto, essas quatro criaturas não parecem querubins. Mas há um detalhe que nos aponta tanto para os querubins quanto para a Liturgia (Ezequiel 1:22-23):

Sobre as cabeças dos seres viventes havia a semelhança de um firmamento, brilhando como cristal, espalhado acima de suas cabeças. E sob o firmamento suas asas foram estendidas diretamente, uma em direção à outra; e cada criatura tinha duas asas cobrindo seu corpo. Esta é outra pequena diferença que consta em Apocalipse de João (duas asas vs. seis), mas está nos apontando para outra coisa… a Arca da Aliança. Aqui está uma descrição da Arca da Aliança de Êxodo 25:20-22:

 

Os querubins estenderão as suas asas por cima, cobrindo com elas o propiciatório; as faces deles uma defronte da outra; as faces dos querubins estarão voltadas para o propiciatório. E porás o propiciatório em cima da arca, depois que houveres posto na arca o testemunho que eu te darei. E ali virei a ti, e falarei contigo de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins (que estão sobre a arca do testemunho), tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel.

Êxodo 25:20-22

 

Quando Hebreus 9:5 fala dos “querubins da glória cobrindo o propiciatório”, é a isso que se refere: o centro litúrgico de adoração no antigo Israel. E Ezequiel torna essa conexão litúrgica mais explícita adiante, descrevendo o Templo místico que viria, e como “em todas as paredes ao redor da sala interna e da nave estavam esculpidas semelhanças de querubins e palmeiras, uma palmeira entre dois querubins” (Ezequiel 41:17-18). O que João está descrevendo não é menos litúrgico. Os “quatro seres viventes” estão “cada um segurando uma harpa e com taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos; e cantaram um novo cântico…” (Ap 5:8-9). Portanto, se quisermos entender a revelação de João, precisamos pensar liturgicamente. Os quatro seres viventes devem evocar para nós a adoração do povo de Deus, tanto no passado (a Arca) quanto no futuro (o Templo descrito por Ezequiel). Mas e quanto ao presente?

 

A Conexão do Evangelho

 

Quando os primeiros cristãos liam o Apocalipse, eles viam nele uma descrição da adoração cristã. Se, como muitos de nós, você tinha uma dos primeiros cristãos como pessoas fundamentalistas (tomando tudo de maneira muito literal e ignorando ou rejeitando qualquer coisa que parecesse simbólica), isso pode ser uma algo surpreendente de se aprender. Mas é a verdade. Tomemos, por exemplo, Santo Irineu, escrevendo por volta de 180 d.C.:

 

Tal, então, como foi o curso seguido pelo Filho de Deus, também foi a forma das criaturas vivas; e tal como era a forma das criaturas vivas, também era o caráter do Evangelho. Pois os seres viventes são quadriformes, e o Evangelho é quadriforme…

 

Irineu lê as quatro criaturas vivas como representando os quatro Evangelhos e, especificamente, as quatro maneiras pelas quais Cristo é representado:

 

Como também Davi diz, ao implorar Sua manifestação: “Tu que estás sentado entre os querubins, resplandece”. Pois os querubins também tinham quatro faces, e suas faces eram imagens da dispensação do Filho de Deus. Pois, [como a Escritura] diz: “A primeira criatura vivente era como um leão,” [Ap. 4:7] simbolizando Sua obra eficaz, Sua liderança e poder real; a segunda [criatura viva] era como um bezerro, significando [Sua] ordem sacrificial e sacerdotal; mas o terceiro tinha, por assim dizer, o rosto de um homem – uma descrição evidente de Seu advento como ser humano; o quarto era como uma águia voando, apontando para o dom do Espírito pairando com Suas asas sobre a Igreja. E, portanto, os Evangelhos estão de acordo com essas coisas, entre as quais Cristo Jesus está assentado. Pois aquilo, de acordo com João, relata Sua geração original, eficaz e gloriosa vindo do Pai, declarando assim: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” [João 1:1]. Além disso, “todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada do que foi feito se fez” [João 1:3].

 

Em outras palavras, as primeiras leituras do Apocalipse não diziam que João estava tentando nos contar detalhes sobre os anjos, mas que ele estava nos contando algo sobre Jesus Cristo e os Quatro Evangelhos por meio dessas descrições.

 

Então, quem as quatro criaturas vivas representam?

 

Esta conexão entre as quatro criaturas vivas e os quatro Evangelhos foi tão bem estabelecida nos primeiros dias da Igreja que os Pais da Igreja Primitiva tendiam a especular sobre qual Evangelista estava associado a qual criatura. Existem diferenças de opinião, mas a que prevalece (e a que você mais verá retratada na arte da igreja) é a opinião defendida por São Vitorino no século III e popularizada por São Jerônimo e pelo Papa São Gregório, o Grande. Veja como Gregório explica:

 

Por esse motivo, as quatro criaturas vivas aladas designam os quatro santos evangelistas, os ‘inícios’ de cada um dos livros evangélicos testificam. Pois pelo fato de ter começado com a geração humana [de Cristo], Mateus por direito [é indicado] pelo humano. Por causa do choro no deserto, Marcos é designado de maneira justa pelo leão. Porque ele começou com o sacrifício, Lucas é bem representado pelo bezerro. Verdadeiramente, em razão de ele ter começado com a Divindade da Palavra, João foi apropriadamente representado pela águia – aquele que se estendeu [para o alto], dizendo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” [João 1:1] enquanto que… da mesma substância da Divindade; como se fixasse os olhos no Sol do mesmo jeito que uma águia.

 

Vamos arrumar isso um pouco. Na tradição judaica, os livros da Bíblia eram conhecidos por suas aberturas (os nomes hebraicos dos livros bíblicos tendem a ser apenas as primeiras palavras do livro). Então, como você descreveria cada Evangelho, com base em sua abertura?

  • O Evangelho de Mateus começa “o livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mateus 1:1). Ou seja, ele traça das origens humanas de Cristo. Portanto, este Evangelho está associado ao homem.
  • O Evangelho de Marcos começa trazendo à memória a profecia de Isaías sobre “a voz que clama no deserto” (Marcos 1:3), e conectando isso ao ministério profético de João Batista. No Antigo Testamento, um símbolo para a voz profética era o rugido do leão: por exemplo, Amós 3:7-8, diz: “Certamente o Senhor Deus não fará nada sem revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas. Rugiu o leão; quem não temerá? O Senhor Deus falou; quem não profetizará?”
  • O Evangelho de Lucas começa com a história da aparição do anjo Gabriel a Zacarias, que “estava servindo como sacerdote diante de Deus na ordem da sua turma, de acordo com o costume do sacerdócio” quando “coube a ele em sorte entrar no templo do Senhor e queimar incenso” (Lucas 1:8-9). E o sacerdócio do Antigo Testamento foi inaugurado com a matança do bezerro sacrificial e um boi (Lv 9:3-4, 8).
  • O Evangelho de João começa com “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1:1). Isto é, ele não começa na Terra, mas “voando para o céu como uma águia”, para citar Prov. 23:5.

 

O que acho tão bonito nessa interpretação, especialmente na leitura de São Gregório, é o quão profundamente bíblica ela é. Quero dizer, os primeiros cristãos não liam sobre anjos com cara de boi e concluíam que os anjos são estranhos. Afinal, os anjos são seres espirituais – eles literalmente não têm corpos. Então, por que eles estão sendo representados dessa forma a Ezequiel e a João posteriormente? Sendo assim, a Igreja primitiva parece ter feito algumas perguntas muito melhores: a saber, onde vemos cada uma dessas criaturas (homem, leão, boi e águia) no Antigo Testamento e o que Deus poderia estar nos dizendo ao apresentá-las? assim? E foi fazendo essas perguntas melhores (em vez de se contentar com um simples literalismo superficial) que isso lhes permitiu perceber que o Apocalipse é na verdade um livro que tem muito a dizer sobre a Liturgia e que os “quatro seres viventes” são os quatro Evangelhos…

 

Tradução de Kertelen Ribeiro do texto Who are the “Four Living Creatures” of Revelation?

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Joe Heschmeyer

Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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Nativo de Kansas City, Joe Heschmeyer é um apologista da equipe do Catholic Answers. Sendo autor, palestrante, blogueiro e podcaster popular, ele ingressou no apostolado em março de 2021, após três anos como instrutor na Holy Family School of Faith em Overland Park, Kan. Atuou como advogado em Washington, D.C., recebeu seu título de Juris Doctor pela Georgetown University em 2010, depois de se formar em história pela Topeka's Washburn University. Mantém parceria agora como colaborador regular do site Catholic Answers, mas também teve uma atuação ampla na apologética antes disso, com um blog em seu próprio site chamado “Shameless Popery”. Até o momento, ele é autor de quatro livros, incluindo Pope Peter e The Early Church Was the Catholic Church.

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