Em um outro artigo acerca do tema “Iconografia Cristã”, mencionei como a prostração e a reverência às coisas sagradas eram parte da vida judaica no antigo Israel, como os santuários e todos os objetos sacros presentes neles eram honrados. Também mencionei aquilo que o Cristianismo entende como “a nova economia das imagens” a partir da encarnação do Verbo Divino: Cristo se fez matéria, e, portanto, visível. Aproveite a leitura do primeiro artigo e entenda por que motivo a Igreja manteve os ícones em sua liturgia. Agora, no presente artigo, tratarei de comentar a honra que Deus costuma dar àquilo que Ele escolhe para a obra [tratando os tais como representativos seus].”

Propiciatório. Imagem da enciclopédia bíblica popular do Arquimandrita Nicéforo (1892). Arca é descrita como um baú de madeira coberto de ouro puro com uma tampa elaboradamente projetada chamada Propiciatório.
[Domínio Público]
Está escrito: “Josué rasgou suas vestes e prostrou-se com a face por terra até a tarde, diante da Arca do Senhor, tanto ele como os anciãos de Israel, e cobriram de pó as suas cabeças.” (Josué 7,6) Também está escrito: “Prestai reverência ao meu Santuário” (Levítico 19,30). E mais: “Me prostro voltado para o Teu Sagrado Templo” (Salmo 138[137],2; o qual era repleto de imagens).

James Tissot (1836–1902)
Domínio Público
A NOVA HABITAÇÃO DE DEUS: O HOMEM
Todos esses versículos bíblicos podem soar confusos para pessoas que sempre consideram atos de veneração ou de respeito a objetos visíveis como idolatria. No passado, nesse templo, ao qual Escritura ordena a honrar e prestar a devida reverência, eram purificados os pecados do povo pelo sangue de animais e pelos holocaustos (Hb 9,13) Os sinais e formas de animais sem vida prefiguravam o futuro tabernáculo de Deus, que é o próprio ser humano. E os próprios mártires, que estavam sendo preparados para a morada de Deus, sendo santos, se tornaram o seu Tabernáculo. Os santos padres ensinavam que os homens justos são chamados a participar da natureza divina (Cf. 2 Pd 2,4), sendo seu corpo e sua alma o local de descanso de Deus: isso vale tanto para Santa Mãe de Deus [que foi uma habitação para o Verbo durante os nove meses nos quais se cumpriu o mistério da encarnação] quanto para todos os santos. Estes são os que são feitos à semelhança [isto é, “à imagem” hebraico: bə·ṣal·mōw // בְּצַלְמ֔וֹ] de Deus, tanto quanto possível, por sua livre e espontânea vontade, por meio da habitação de Deus, e por Sua graça permanente.

Ciro Restaura os Vasos do Templo, sendo cada objeto de lá santo.
Gustave Doré (1832–1883) – Domínio Público
É evidente que tal honra é uma graça. Assim como o ferro em brasa é chamado de fogo, não por natureza, mas pela participação na ação do fogo, os santos são chamados assim por participarem da vida divina. Ele diz: “Sedes santos porque eu sou santo” (Lv 19, 2), A primeira coisa é a livre escolha da vontade. Então, no caso de uma boa escolha, Deus ajuda-o e confirma: “Eu vou fazer minha morada neles” (Lv 26, 12). Era a promessa do Tabernáculo no deserto dos dias de Moisés, todavia, ali era apenas uma sombra do futuro cumprimento dessa verdade: “Nós somos o templo de Deus, e o Espírito de Deus habita em nós.” (I Cor 3, 16). Novamente, “deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para os expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e todos os tipos de enfermidades.” (Mt 10, 1) E ainda: “Aquilo que eu faço, vocês farão, e coisas ainda maiores” (Jo 14, 12). Parece surpreendente Deus conceder essa honra aos homens, todavia, assim lhe agrada. Mais uma vez, diz: “Porque o Senhor Deus é nosso sol e nosso escudo, o Senhor dá a graça e a glória. Ele não recusa os seus bens àqueles que caminham com retidão.“ (Sl 84,12). E novamente: “Se sofremos com Ele também, com Ele seremos glorificados.” (Rm 8, 17). Estes homens [isto é, os que venverem] são, portanto, e assim declara a própria Escritura, dignos de louvor:
“É isso o que constitui a vossa alegria, apesar das aflições passageiras a vos serem causadas ainda por diversas provações, para que a prova a que é submetida a vossa fé (mais preciosa que o ouro perecível, o qual, entretanto, não deixamos de provar ao fogo) redunde para vosso louvor, para vossa honra e para vossa glória, quando Jesus Cristo se manifestar.” (I Pd 1,7)
“Porquanto estou ciente de vossa boa vontade, que enalteço, para glória vossa, ante os macedônios, dizendo-lhes que a Acaia também está pronta desde o ano passado. O exemplo de vosso zelo tem estimulado a muitos. Eu, porém, vos enviei os nossos irmãos para que o louvor que dissemos a vosso respeito, neste particular, não se tornasse vão e para que, como tenho dito, estejais prevenidos.” (2 Cor 9, 2-3)
“Se me gloriei de vós em presença dele, não fui envergonhado. Pois, assim como tudo o que vos temos dito foi conforme a verdade, assim também o louvor que de vós fizemos a Tito demonstrou-se verdadeiro.” (2 Cor 7,14)
“Por isso, não julgueis antes do tempo; esperai que venha o Senhor. Ele porá às claras o que se acha escondido nas trevas. Ele manifestará as intenções dos corações. Então, cada um receberá de Deus o louvor que merece.” (1 Cor 4,5)
“Para vós, portanto, que tendes crido, cabe a honra. Mas, para os incrédulos, a pedra que os edificadores rejeitaram tornou-se a pedra angular, uma pedra de tropeço, uma pedra de escândalo (Sl 117,22; Is 8,14).” (1 Pd 2,7)
“Amai-vos mutuamente com afeição terna e fraternal. Adiantai-vos em honrar uns aos outros.” (Rm 2,10)
ADORAÇÃO A OUTRO QUE NÃO É DEUS É PECADO, TODAVIA, NÃO DAR A HONRA A QUEM DEUS CONCEDEU HONRA TAMBÉM É
Adorar os santos seria uma impiedade, mas desprezá-los é desprezar o próprio Cristo (Lc 10,16). Quando reconhecemos as virtudes de um Santo e cantamos louvores pelos seus feitos, exaltamos a ação de Deus, que neles produziu tudo isso.
“Aqueles que perversamente e profanamente desejam que eles (os santos) sejam adorados como deuses são condenáveis, e merecem o fogo eterno. E aqueles que no falso orgulho de seu coração desdenham de venerar os servos de Deus são condenados por impiedade para com Deus. As crianças que ridicularizaram e riam para escarnecer Eliseu são testemunhas disto, na medida em que eles foram devorados por ursos. (II Rs 2, 23-24)”
(São João Damasceno)
“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre uma montanha, nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. Assim, brilhe vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus.” (Mt 5, 14-16) Até mesmo por dever de imitação precisamos honrar os santos, porque assim aumentamos a nossa semelhança com Deus. O Senhor declara: “Eu vivo”, diz o Senhor, “e honro aqueles que Me honram” (1 Sm 2,30). Se o próprio Deus os declara dignos de honra, poderíamos nós dizer que eles são indignos ou que não devemos reverenciá-los pelas suas virtudes? O testemunho e a vida dos santos iluminam toda a Igreja, acendem no coração cristão o amor pela virtude e pela união a Deus, não reconhecer e deixar de expor as maravilhas que Deus operou a partir deles seria desprezar a ação divina. Deixar de lado a vida de um homem santo (fruto da graça de Deus) é como desprezar a obra de um pintor, o desprezo não atinge somente a obra, mas o criador da obra. Os cristãos não se prostram diante dos ícones por acreditarem que neles existe alguma divindade oculta, mas em respeito ao que eles representam, porque as imagens (seja de Cristo, de um mártir ou de algum santo cristão) inspiram amor às virtudes e levam à imitação das pessoas santas que nelas são representadas. Por isso, as imagens sagradas são muito úteis. Nada há de idolatria nisto.
“a honra que se lhes tributa se refere aos protótipos por elas representados, de modo que, por meio das imagens que beijamos e diante das quais descobrimos a cabeça e nos curvamos, nós adoramos a Cristo e veneramos os santos, dos quais elas nos apresentam uma semelhança”.
Concílio de Trento: sessão XXV.
Não se entende absolutamente “que nelas haja alguma divindade ou alguma virtude, pela qual devam ser cultuadas, nem que é a elas que se deva pedir alguma coisa, nem que se deva pôr a confiança nas imagens, como acontecia outrora com os gentios que colocavam a esperança em ídolos”.
Concílio de Trento: sessão XXV
Os santos são os filhos de Deus, os filhos do reino, herdeiros de Deus e coerdeiros de Cristo (Rm 8, 17). Por isso honramos os santos e os servos, amigos e coerdeiros de Cristo, servos por natureza, amigos por sua escolha e coerdeiros pela graça divina, como o Senhor disse, ao falar com o Pai (Jo 17).
A REPRESENTAÇÃO SIMBOLÓGICA DAS COISAS
Podemos fazer uma analogia à bandeira nacional: o respeito e a reverência que os brasileiros têm pela bandeira não é por causa da própria bandeira, pois se assim fosse, iríamos ter o mesmo respeito com todo pano e tinta que encontrássemos, o que evidentemente não acontece. Não reverenciamos a bandeira pela própria bandeira em si, mas pelo que ela representa (isto é, a ideia: a pátria). Não fazemos juramentos à bandeira achando que nela há algo de especial, mas pela pátria que devemos defender (a qual é representada pela bandeira). Se alguém queima e cospe na bandeira, não ficamos indignados por terem insultado o pano e a tinta, mas a nação brasileira. Quando, então, você vê um cristão adorando diante da cruz, saiba que a adoração não é dada à madeira, mas ao que foi Crucificado. Nós não podemos adorar a madeira, como Israel adorava a madeira e as árvores, dizendo: “Tu és o meu Deus, e tu me gerastes” (Jr 2,27). Não é assim com a gente. Nós mantemos em igrejas e em nossas casas uma recordação e uma representação dos sofrimentos de Nosso Senhor e de todos aqueles que lutaram por Ele, fazendo tudo por amor ao nosso Deus. Leia as palavras de São João Damasceno, Apologia contra os iconoclastas, Livro II e perceba isso:
“Se a imagem perder a forma, ela é jogada ao fogo, porque não honramos a madeira, mas o que nela é representado. Assim como o homem que recebe as ordens seladas do rei, abraça o selo, olha para o papel e a cera com reverência, naquilo que se refere ao rei, assim também os cristãos, quando olham a santa cruz contemplam e adoram o Salvador”.
“Por conta disso eu retrato Cristo e Seus sofrimentos nas igrejas, casas e locais públicos, imagens, em roupas, lojas, e em todos os lugares disponíveis, de modo que mesmo antes de mim, eu possa lembrá-los por muito tempo, e não ser irresponsável, como você é, com o meu Senhor Deus. Na veneração do livro da lei, você não está venerando o pergaminho ou cor, mas as palavras de Deus nele contidas. Então, eu venero a imagem de Cristo, não a madeira nem a coloração em si. Jacó recebeu o manto de José com muitas cores de seus irmãos que o tinham vendido (Gn 37, 32 ss), e ele acariciou-o com lágrimas enquanto olhava para ele, recordando José. Ele não chorou pelo manto, mas o considerou uma forma de mostrar o seu amor por José e o abraçou.
Assim nós, cristãos, abraçamos e beijamos a imagem de Cristo, dos apóstolos, ou dos mártires, enquanto no espírito julgamos que estamos abraçando e beijando o próprio Cristo ou o mártir. Como eu já disse muitas vezes, o fim em vista deve ser sempre considerado em toda a saudação e adoração. Se você me censurar porque eu venero o lenho da cruz, por que não censura Jacó por venerar a ponta do cajado de José? É evidente que não foi a madeira que ele honrou com o seu culto, mas José. Também nós adoramos Cristo através da Cruz. Abraão venerou homens ímpios que lhe venderam uma caverna, e dobrou os joelhos no chão, mas ele não os adorou como deuses. E, novamente, Jacó venerou o ímpio faraó e o idólatra Esaú sete vezes, mas não os adorou. Quantas saudações e venerações tenho posto diante de ti, naturais e bíblicas?”
Os pagãos também NÃO adoram a madeira e a pedra, mas os ídolos que aquela matéria representa:
“Se você antecipar certas práticas, elas não incriminam nossa veneração às imagens, mas a adoração de pagãos que as tornam ídolos. Porque os pagãos agem loucamente, isto não é motivo para contestar a nossa prática piedosa. Se os mesmos magos e feiticeiros usam súplicas, o mesmo acontece com a Igreja, com os catecúmenos, os primeiros invocam os demônios, mas a Igreja apela a Deus contra demônios. Pagãos têm levantado imagens para demônios, a quem eles chamam de deuses. Agora temos as levantado para o Deus encarnado, a Seus servos e amigos, que são à prova contra as hostes diabólicas.
E assim, os santos também são representantes do seu Senhor, de modo que possuem a autoridade divina:
Demônios têm medo dos santos e fugiram de suas sombras (At 5,16). A sombra é uma imagem, e eu faço umas imagens para o terror dos demônios. Agora, o diabo, o inimigo da verdade e da salvação do homem, ao sugerir que as imagens do homem corruptível, aves, animais e répteis, devem ser feitas e adoradas como deuses, muitas vezes engana não só pagãos, mas os filhos de Israel (Rm 1, 23). Nestes dias ele (o diabo) está ansioso para perturbar a paz da Igreja de Cristo através de falsas e mentirosas línguas, usando as palavras divinas em favor do que é mau, e se esforçando para disfarçar sua perversa intenção, e levando os instáveis para longe do verdadeiro e patrístico costume. Alguns se levantaram e disseram que era errado representar e expor publicamente para veneração as chagas salvadoras de Cristo e os combates dos santos contra o demônio. Quem com o conhecimento das coisas divinas e um senso espiritual não percebe nisto um engano do diabo? Ele não quer que sua vergonha seja conhecida e que a glória de Deus e de Seus santos seja divulgada.
Tenho vergonha de você, diabo perverso, por invejar a nossa visão da imagem de nosso Senhor e nossa santificação através dela! Você não pode contemplar como nós os Seus sofrimentos salvíficos, pensar em Sua condescendência, contemplar seus milagres, nem elogiar sua onipotência. Você tem rancor dos santos, da honra que Deus dá a eles. Você não quer que vejamos a sua glória registrada, nem permite que nos tornemos imitadores de sua coragem e fé. Nós não obedecemos suas sugestões, demônio perverso e odioso.
CONCLUSÃO
Espero que esse artigo tenha esclarecido mais as ideias acerca desse tema tão profundo e polêmico. Vemos o assunto se agigantar e assumir um ar de controvérsia em nosso meio através dos ataques protestantes, que retornam a essa discussão corriqueiramente, sobretudo para acusar os católicos de idolatria. Sempre com muita caridade e respeito aos irmãos separados, bem como também dedicação e paciência para responder àqueles que nos questionam acerca da razão da nossa fé, é importante que cada católico tenha uma boa compreensão acerca do tema, em razão de ele ser bastante explorado pelos apelos evangélicos no Brasil. Que Deus nos capacite a empreendermos em favor do Reino uma apologética que edifique e que venha para nos abençoar a todos.
Foto de Christina Victoria Craft via Unsplash
REFERÊNCIAS
LIVRO DE SÃO JOÃO DAMASCENO “CONTRA AQUELES QUE CONDENAM AS IMAGENS SAGRADAS”




