A fé cristã ousa afirmar algo que ultrapassa os sonhos religiosos de todas as épocas: o ser humano não foi feito apenas para “ver” o divino, mas para participar da própria vida de Deus, sem perder a sua humanidade. Não se trata de exagerar virtudes humanas até o infinito, mas de acolher um dom que nos eleva acima de nós mesmos — graça agora, glória ao fim.
1) Sonhos humanos e revelação: duas curvas opostas
As mitologias antigas, por mais elevadas que sejam, projetam nos deuses as grandezas e as feridas humanas. Vê-se ciúme e rivalidade (Hera perseguindo Hércules por ser filho de Zeus), capricho e sedução (Zeus transformando-se para raptar Europa), ira guerreira (Ares ferido por Diomedes na Ilíada), intrigas familiares (Cronos devorando os filhos para preservar o próprio poder). Entre os nórdicos, o destino é implacável: os deuses morrem em Ragnarök; Thor cai após enfrentar a serpente do mundo, Odin sucumbe ao lobo. São potências impressionantes, mas finitas, passionais, mutáveis, vulneráveis.
O cristianismo, ao contrário, não nasce de projeções: nasce da revelação. Deus não é um “super-homem”; é o Ser mesmo, supremo, simplicíssimo e perfeito, fonte de todo bem, verdade e beleza. E, admiravelmente, abre aos mortais uma comunhão real consigo: para que sejamos “deuses por participação”, filhos no Filho.
2) Analogia: o ferro no fogo
Essa analogia é uma das mais belas e didáticas dos santos orientais, retomada por Santo Tomás, para explicar a diferença fundamental entre natureza e graça por participação.
A Natureza Divina: O fogo possui o calor e o brilho por sua própria essência. Ele é calor e luz por natureza.
A Participação da Graça: O ferro, por sua natureza, não tem calor nem brilho. No entanto, quando exposto ao fogo, ele participa das propriedades do fogo. Ele se torna quente e brilhante, mas não deixa de ser ferro. Se o fogo for removido, ele volta ao seu estado original.
Da mesma forma, o ser humano não é Deus por natureza. A graça santificante é o “fogo divino” que é comunicado à alma do cristão. Quando o homem está em perfeita união com Deus, ele participa das propriedades divinas, como a imortalidade, a beleza e a sabedoria, sem nunca se tornar Deus em essência. Essa participação é um dom, uma dádiva da graça, que leva a natureza humana à sua máxima perfeição.
3) Cristo ressuscitado: o perfil do corpo glorioso
Para imaginar a nossa glória, a Igreja contempla Cristo ressuscitado. Nele, o corpo já não é refém das limitações que hoje conhecemos; é corpo real, mas plenamente exaltado. A tradição descreve quatro dons:
Impassibilidade (Impassibilitas): O corpo não será mais capaz de sofrer dor, doença, morte ou qualquer tipo de corrupção. O toque de Tomé na chaga de Cristo, sem que Ele sentisse dor, é o exemplo perfeito, mostrando que o corpo glorificado não está sujeito às limitações sensoriais da dor.
Sutileza (Subtilitas): O corpo será totalmente sujeito e penetrado pelo espírito(cf. 1Cor 15,44), sem ser impedido pela matéria. Ele não estará sujeito às leis da física da mesma forma que os corpos terrenos. A passagem de Cristo por portas fechadas é o exemplo clássico dessa liberdade em relação às barreiras naturais, a capacidade de entrar em espaços sem ser fisicamente barrado.
Agilidade (Agilitas): O corpo poderá se mover de um lugar para outro com a velocidade do pensamento, sem o esforço físico ou a lentidão de um corpo terreno. A capacidade de Jesus de aparecer e desaparecer demonstra essa liberdade de locomoção.
Clareza (Claritas): O corpo glorificado irradiará a glória interior da alma. Ele será luminoso e belo, refletindo a santidade e a união perfeita com Deus. A Transfiguração de Cristo no monte Tabor é vista como uma prévia dessa qualidade, onde sua glória interior foi manifestada. Em verdade, o corpo glorioso — permanecendo o mesmo em identidade e substância — pode manifestar-se sob diversas aparências acidentais (cf. Mc 16,12), como ocorre no aparecimento de Cristo aos discípulos de Emaús, sem que isso implique mudança de natureza. No entanto, seu caráter último é o de uma beleza sem par. As aparições marianas testemunham também que, por disposição divina, a mesma Maria pode ser percebida com traços culturais diversos, conforme a necessidade (como na aparição da Virgem de Guadalupe, onde ela apareceu com traços indígenas).
4) Os dons da alma: ver, amar, ordenar-se
A teologia católica também detalha a perfeição que a alma alcançará, complementando a glória do corpo:
– O Dom da Integridade: essa é a perfeita ordem interior. A razão, iluminada pela verdade divina, comanda a vontade. E a vontade, por sua vez, comanda perfeitamente as emoções e os instintos. O homem não terá mais conflitos internos entre o que deve fazer e o que sente vontade de fazer. Tudo estará em harmonia e direcionado a Deus.
– A Inteligência Infusa: O intelecto do santo não precisará mais de um processo de raciocínio, estudo ou aprendizado lento. Ele terá um conhecimento direto e imediato das coisas, conhecimento infundido por Deus. A fonte de todo esse conhecimento é a Visão Beatífica, a visão direta da essência de Deus, que é o objeto da máxima felicidade e o fim último do homem.
– A Graça Santificante: A graça, que já existia na terra, atingirá sua plenitude. Ela não só purifica, mas diviniza a alma, tornando-a cada vez mais semelhante a Deus em seu modo de ser e querer, sem perder sua identidade. A santidade dos santos na eternidade será um reflexo perfeito do amor de Deus, e suas vontades serão uma com a Dele.
Toda a perfeição do corpo e da alma de um santo na eternidade flui de uma única e suprema fonte: a Visão Beatífica. A teologia católica a define como o ato final e mais elevado da alma, onde ela vê a essência de Deus de forma direta, intuitiva e sem véus. Não é uma visão com os olhos físicos: O ato é puramente espiritual e intelectual. A alma, capacitada pela luz da glória, transcende sua natureza finita para contemplar o Infinito. É a fonte de toda a felicidade: A alma humana foi criada com um desejo inato e infinito por Deus, a Verdade e o Bem absolutos. Na Visão Beatífica, esse desejo é totalmente satisfeito. Não há mais dúvidas, anseios ou buscas, apenas a alegria perfeita e ininterrupta que emana da contemplação de Deus. É o fundamento do conhecimento infuso: A inteligência infusa mencionada anteriormente não é uma sabedoria aleatória, mas uma consequência natural dessa visão. Ao ver Deus, que é o princípio de toda a realidade, o santo tem um conhecimento perfeito de todas as coisas em seu devido lugar no plano divino. A Visão Beatífica, portanto, é a realização da teosis (divinização) na teologia ocidental, o ponto em que o ser humano glorificado atinge seu propósito final e se une ao Criador na mais profunda comunhão possível.
5) Por que a glória cristã supera os panteões
Nos panteões greco-romanos, as divindades entram em contenda. Muitas vezes, por motivos pequenos: Afrodite briga com Hera e Atena pelo pomo de ouro, os deuses dividem-se na Guerra de Troia, Poseidon rivaliza, Ares inflama. Há parcialidades, feridas, humilhações. Entre os nórdicos, paira a tragédia: os deuses estão condenados a perecer. São duas glórias: a glória pagã, que é uma mera amplificação de atributos humanos imperfeitos e uma glória cristã, que é uma verdadeira participação na perfeição divina.
IMORTALIDADE
Para os deuses pagãos, não é uma característica garantida. Embora proclamados como imortais, podem ser destruídos. Sua vida não é necessariamente eterna, são seres mutáveis e, muitas vezes, corruptíveis. Já os santos, eles são sempre imortais e impassíveis, pela participação na divindade. Foram libertados da morte, da dor e de toda corrupção para sempre.
CONFLITO
Os deuses pagãos frequentemente competem e guerreiam uns contra os outros por poder, território ou por sentimentos humanos como inveja e orgulho. Os santos estão em perfeita comunhão e harmonia. O egoísmo e a rivalidade não existem, pois sua vontade é uma com a de Deus.
CIÊNCIA
Os deuses têm conhecimento limitado, muitas vezes enganam-se ou são enganados. O conhecimento de cada um é parcial, restrito ao seu domínio. Os santos têm ciência infusa e, mais importante, a Visão Beatífica. Conhecem a Verdade e o Bem absolutos, o que lhes dá um conhecimento perfeito de todo o plano de Deus. Há quem pense que isso seria onisciência, mas a onisciência é o conhecimento que Deus tem de si mesmo, em sua totalidade: Mesmo no céu, a Trindade ainda será um mistério. Aínda que o nosso conhecimento de Deus cresça sempre na eternidade, ele nunca será completo, pois só Deus pode conhecer-se perfeitamente. Ainda que os Santos conhecessem cada átomo do universo criado, o universo é limitado, tal saber ainda seria limitado. Não poderia chamar-se onisciência algo dessa natureza. O conhecimento dos santos é, portanto, sobrehumano, é uma sabedoria divinizada, mas não é idêntica ao conhecimento eterno de Deus sobre si, a onisciência. É um saber quase infinito, mas este “quase” estabelece o abismo entre a criatura glorificada e o Criador.
DOMÍNIO
Os deuses governam apenas sobre partes do todo (céu, mar, submundo, etc.). Muitas vezes, seus domínios se chocam e entram em conflito. Os santos co-governam a totalidade da nova criação, em perfeita submissão a Cristo. Sua autoridade se estende sobre todas as coisas e seu governo é perfeitamente justo e ordenado.
CARÁTER MORAL
Os deuses expressam sentimentos humanos e paixões baixas: inveja, luxúria, orgulho. São muitas vezes a fonte de caos e desordem moral do mundo criado. Os santos possuem o dom da integridade. Sua vontade está perfeitamente ordenada. Eles não sentem inveja, orgulho ou ódio, pois o amor de Deus os preenche por completo.
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A diferença central é que a divindade pagã é, em essência, uma projeção das imperfeições humanas em uma escala cósmica. Os deuses são poderosos, mas imperfeitos, limitados e frequentemente imorais. A glória cristã, por outro lado, é a perfeição da natureza humana através da participação na natureza divina de um Deus que é, por definição, perfeito, imutável e santo. Essa é, sem dúvida, uma das promessas mais profundas e transformadoras do evangelho. A glória do cristão na eternidade é de uma ordem completamente diferente e incomparavelmente superior, pois não é a glória de um deus, mas a glória dos filhos de Deus. Por isso, a glória cristã não é apenas maior que a dos deuses antigos; é outra ordem: não uma olimpíada de poderes, mas a vida de Deus participada por criaturas tornadas filhas.
6) O caminho e o termo: graça agora, glória depois
Tudo começa na graça, presença do Espírito Santo, que nos configura silenciosamente a Cristo. Virtudes e dons vão alinhando inteligência e vontade ao Bem. A glória é esse processo consumado: a caridade chega ao auge, a inteligência recebe o lume que a faz ver, e o corpo, por transbordamento da alma, resplandece.
7) Um vislumbre já dado: Maria e os santos
A Tradição contempla na Virgem Maria um primeiro clarão: Assunta ao céu, ela antecipa em si o destino do corpo e da alma glorificados. Nos santos, entrevemos, como que por frestas, algo da claridade futura: uma caridade que não se explica apenas por esforço; uma paz que não vem do mundo; uma liberdade interior que floresce em misericórdia.
8) Consequências
Crer na glorificação não aliena; ordena.
- Esperança: a morte perde o último argumento.
- Ética: se o futuro é comunhão, o presente pede reconciliação.
- Oração e sacramentos: Encontros onde o fogo começa a aquecer o ferro.
- Missão: quem provou o lume, não o esconde; reparte-o.
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Foto de Oleg Illarionov na Unsplash




