Para responder essa pergunta, me utilizarei da obra O cuidado devido com os mortos, de Santo Agostinho. Já foi demonstrado anteriormente que os textos de Levítico 26, 40, Neemias 9, 1-2 , II Macabeus 12, 39-46 e II Timóteo 1, 16-18 demonstram a oração pelos mortos nas Escrituras. Pois bem, o cristianismo cresceu num ambiente onde a oração pelos falecidos eram comum. Desde os primórdios a Igreja preserva essa prática. Agostinho diz:
“Lemos no livro dos Macabeus (2Mc 12,43) ter sido oferecido um sacrifício pelos mortos. Entretanto, ainda que não deparássemos em parte alguma do Antigo Testamento a mínima referência a este respeito, não é de pouco peso a autoridade da Igreja universal, na qual é manifesto esse costume. Assim, nas preces em que o padre dirige suas orações ao Senhor Deus, junto do altar, é reservado espaço especial para a encomendação dos mortos.”[i]
A prática era tão difundida e comum, que Santo Agostinho diz que ainda que não existissem referências nas Escrituras sobre isso, a autoridade da Igreja já bastaria para preservar esse costume. De fato, em todo o mundo, os cristãos rezam pelos falecidos, tanto no Ocidente como no Oriente, sejam católicos ou ortodoxos, e até alguns protestantes dentre os anglicanos e luteranos preservaram a oração pelos fiéis falecidos. Um dos casos mais conhecidos é o do anglicano C. S. Lewis:
“Claro que eu oro pelos mortos. A ação é tão espontânea, quase inevitável, que somente o argumento teológico mais coercivo contra ela me deteria. E sei que o restante de minhas orações mal sobreviveria se as feitas pelos mortos fossem proibidas. Em nossa idade, a maioria das pessoas que amamos está morta. Que tipo de relação com Deus eu poderia ter se o que mais amo não pudesse ser mencionado para Ele?” [ii]
A Igreja, então, nos ensina que podemos auxiliar na purificação daqueles que estão no Purgatório, através das nossas orações, da Santa Missa, das penitências, das boas obras oferecidas por eles. Isso está profundamente ligado à fé na Comunhão dos Santos. A Igreja é una, somos todos membros do corpo de Cristo, e mesmo após a morte não deixamos de fazer parte desse corpo, pois como diz São Paulo “nem a morte pode nos separar do amor de Deus”[iii]. Os santos no Céu rezam por nós aqui na Terra, e nós rezamos por aqueles que estão no Purgatório. Como não sabemos quem está ou não no Purgatório, nós rezamos por todos. Todavia, como ensina Santo Agostinho, essas orações somente serão eficazes para aqueles que em vida fizeram o necessário para se beneficiarem dessas orações:
“Com efeito, a sentença do Apóstolo adverte-nos que é antes da morte que devemos fazer o que poderá ser útil depois dela. Não deverá ser na hora em que cada qual há de receber os frutos do que tiver praticado durante a vida. Eis como se resolve a questão: Enquanto se vive neste corpo mortal, existe certa maneira de viver que permite, uma vez morto, adquirir algum alívio com as obras pias feitas em seu sufrágio. Essa ajuda será proporcional ao bem que cada um tiver cumprido durante sua vida. Existem alguns para quem esses socorros permanecem inteiramente inúteis: são aqueles cuja conduta foi tão má que se tornaram indignos de se aproveitarem deles. E também existem alguns cuja vida foi de tal modo irrepreensível que não possuem nenhuma necessidade de tais socorros. Portanto, é o gênero de vida que cada qual levou durante a existência corpórea, que determina a utilidade ou inutilidade desses auxílios que lhe são tributados piedosamente após a morte. Pois o mérito que os torna proveitosos, se foi nulo no decorrer desta vida, ficará estéril também após esta vida. Disso não decorre que a Igreja e a piedade dos fiéis despendam em vão os cuidados que a religião inspira a serviço dos defuntos. Mas não deixa de ser verdade que cada um receberá conforme o que tenha praticado de bom ou de mau em sua vida, pois o Senhor retribui a cada um conforme suas obras. Portanto, para que o cuidado tomado em relação a um ser querido depois de sua morte lhe sirva de alguma coisa, é preciso que esse alguém haja adquirido a faculdade de o tornar útil no tempo decorrido em companhia de seu corpo.”[iv]
No final do seu livro, Santo Agostinho relembra essa mesma verdade:
“Nas condições acima expostas, eis o que devemos pensar a respeito dos benefícios prestados aos mortos por quem nós desvelamos cuidados: só lhes serão proveitosas as súplicas oferecidas de modo conveniente por eles, no sacrifício do altar, no de nossas orações e esmolas. E ainda, é preciso dizer que não serão proveitosas a todos a quem pretendemos ajudar, mas somente àqueles que, durante a vida, tornaram-se dignos de tal benefício. Como, porém, não podemos discernir quais sejam, convém apresentar súplicas por todos os regenerados [batizados], para não acontecer omitirmos alguém entre aqueles a quem esses benefícios possam servir. Melhor é que haja sobejo dessas boas obras, oferecidas por aqueles a quem não possam ser úteis, a que venham a faltar àqueles que delas podem tirar proveito. É mais natural, entretanto, que sejam oferecidas pelos amigos, a fim de que tais cuidados sejam prestados, mais tarde, também por nós. Tudo o que se realiza quanto ao sepultamento digno dos mortos não é para obter a sua salvação, mas para cumprir um dever de humanidade, em conformidade com o sentimento natural que faz com que ‘ninguém jamais odeie a sua própria carne’ (Ef 5,29).” [v]
Essa prática já era tão comum entre os primeiros cristãos que Agostinho faz menção de uma comemoração geral, onde a Igreja incluía todos os fiéis defuntos nas suas orações. Hoje, conhecemos essa comemoração como sendo o dia de finados:
“A Igreja tomou a si o encargo de orar por todos os que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que sem conhecer-lhes o nome, ela os inclui numa comemoração geral de todos eles. Desse modo, aqueles que não mais possuem pais, filhos ou outros parentes e amigos, para auxiliá-los nesse mister, são amparados pelo sufrágio dessa piedosa mãe comum [a Igreja].” [vi]
Enfim, aqui fica respondida a relação da oração pelos falecidos e o Purgatório, e não só isso, mas também fica provado que essa prática existe desde os primórdios da fé, inclusive desde a época da Antiga Aliança. Além da oração pelos falecidos, também fica aqui o registro de um Santo da Igreja, Agostinho de Hipona, que viveu entre os séculos IV e V, e já conhecia a doutrina do Purgatório, além de testemunhar o costume altamente difundido em sua época de oferecer a Missa pelos falecidos, provando que essa doutrina não foi inventada na Idade Média, como alguns insistem em dizer.
Foto de Mateus Campos Felipe na Unsplash
[i] Santo Agostinho. O cuidado devido com os mortos. 1, 3.
[ii] C. S. Lewis. Cartas a Malcolm. p. 152, Thomas Nelson, 2019.
[iii] Cf. Romanos 8, 38-39.
[iv] Santo Agostinho. O cuidado devido com os mortos. 1, 2.
[v] Idem. 18, 22.
[vi] Idem. 4, 6.




