Um tema recorrente que sempre surge em todo estudo bíblico é o versículo do Eclesiastes que diz: “não há nada de novo debaixo do sol”. Isto é, não importa que tipo de tendências ou problemas aconteçam no mundo, uma ocorrência similar já aconteceu em algum ponto da história. Sejam guerras, genocídio, corrupção ou revolução, os eventos que vemos hoje em dia com frequência têm paralelos no passado. Hoje em dia, a última moda que está deixando as redes sociais furiosas é a cultura do cancelamento.
O que a cultura do cancelamento implica é que quando alguém comete algum tipo de delito (seja um comportamento abusivo ou visões de mundo fanáticas), geralmente eles são expostos publicamente e forçados a abjurar suas crenças e mudar seu comportamento, ou enfrentam a ostracização. Normalmente, a cultura do cancelamento geralmente visa personalidades de alto perfil, como celebridades ou políticos, mas ela já se tornou um hábito proeminente entre leigos. E me dói escrever que eu mesmo também não estou isento de tal comportamento. O que eu acho interessante é que muitas pessoas tendem a olhar para eventos históricos como a Inquisição Espanhola como um exemplo de injustiça que nunca deve ser repetido. Esses eventos são geralmente vistos como uma mancha na história da Igreja, já que houveram casos onde pessoas foram falsamente acusadas de heresia ou feitiçaria — e, como resultado, sofreram torturas e mortes brutais como ser queimado numa fogueira. Vale a pena observar que os números de vítimas que resultaram da Inquisição são frequentemente exagerados pelos polemistas anti-católicos. Independemente do número de mortos, qualquer forma de genocídio é uma injustiça que deve ser lembrada; e exagerar ou distorcer fatos para provar um argumento só reforça que dois erros não fazem um acerto. Mas eu acho que podem ser traçados paralelos entre as injustiças e as caças-às-bruxas que aconteceram durante a Inquisição e o que vemos hoje na cultura moderna de cancelamento.
Imagem de Camilo Jimenez via Unsplash

Uma petição recente tem circulado nas redes sociais católicas para cancelar a ativista pró-vida Abby Johnson de palestrar na Catholic University of America, em Washington D.C. Pelo que eu soube, a universidade que vai sediar a oportunidade da Johnson para palestrar tem regras específicas sobre conceder uma plataforma pública para alguém (por exemplo, eles não podem estar tomando parte em qualquer atividade política que comprometeria os valores da universidade). Até onde eu entendo, a Johnson foi criticada por ter participado da invasão ao Capitólio em janeiro, e por conta de comentários que ela fez no último verão sobre seu filho adotivo potencialmente ser interrogado pela polícia por ser negro. Tenha ela sido sincera nas suas palavras ou tido dificuldades para articular seu argumento, eu não sou particularmente chegado à atitude e ao comportamento da Abby Johnson para com outros católicos. Na verdade, eu acho aquilo uma representação bem pobre e abominável de como deve ser o comportamento cristão caridoso. Porém, independemente do seu comportamento público, eu não questiono a sua ortodoxia como católica. Não estou no lugar de pesar suas qualificações como católica porque esse julgamento está reservado a Deus somente, já que o último juiz dela também é meu último juiz. Como eu e todos os outros católicos imperfeitos lá fora, Abby Johnson é um membro do Corpo de Cristo em virtude de seu batismo, e nada poderia cancelar isso. Pelo que eu entendo, alguns de meus colegas da Patheos acreditam que ela rejeita categoricamente a doutrina social católica em questões como racismo e consistência na ética pró-vida. Eu não vou medir se ela aceita ou rejeita certas doutrinas baseadas em alguns prints de tweets e conversa com contexto limitado. Mas eu acho que, se as pessoas querem expôr publicamente a Abby Johnson com base em como ela lida com questões de racismo ou com o seu envolvimento na invasão do Capitólio, então os católicos devem ser consistentes na sua condenação e incluir o presidente Joe Biden na sua lista de pessoas para cancelar, já que sua postura pró-aborto contrasta fortemente com o ensino da Igreja sobre a santidade da vida. Mas dado esse pensamento, manter tal processo de veto em larga escala desqualificaria a grande maioria na América do Norte de ter qualquer plataforma pública. Até mesmo nas rivalidades entre radtrads e progressistas, católicos e outros cristãos são rápidos em apontar o dedo ao primeiro sinal de não-conformidade às suas dinâmicas de clique. Por mais que eu tente evitar a analogia do efeito cascata, eu penso que esse tipo de mentalidade leva os católicos de todos os lugares a bicarem seus próprios semelhantes.
Isso me leva a pensar — já que muitos dos meus amigos tradicionalistas às vezes reclamam que a Igreja não excomunga mais as pessoas: será a cultura do cancelamento a Inquisição moderna mas sem a pena de morte? Eu sou levado a pensar que a maioria das pessoas hoje em dia olha para aquelas coisas como algo que nunca deve ser repetido. Mas eu penso que vale a pena refletir na possibilidade de que, enquanto acreditamos que o doxing 1 em massa e o genocídio são errados, é possível que nós nos tornemos a mesma coisa que condenamos — mesmo que nos tornemos uma versão mais branda do mal real e maior.
Isso não significa que o racismo ou outros comportamentos prejudiciais devem ser ignorados. Mesmo eu, como um blogger e criador de conteúdo, tenho colocado limites bloqueando pessoas com as quais sinto que não gostaria de me associar na vida real. Mas quando uma pessoa encara alegações tão fortes, isso deve ser um momento onde eles clarifiquem sua posição de fato (se as alegações são falsas) ou reconheçam suas deficiências e procurem fazer as pazes com seus acusadores. Quando se trata de qualquer tipo de pecado (seja o racismo ou o genocídio), não adianta ficar em silêncio e permitir que ele se prolongue. E nos casos em que uma pessoa não se arrepende, se recusa a mudar seu comportamento ou a promover uma certa ideologia prejudicial, talvez seja justificável chamá-la publicamente? É por isso que ativistas de qualquer causa fazem o que fazem. A coisa mais caridosa que um ativista pró-vida pode fazer para ajudar mulheres e crianças não-nascidas é expor o que o aborto realmente é e oferecer apoio de qualquer modo que eles possam. De modo similar, se o racismo não existisse, não haveria um ativismo anti-racista. A dignidade e o intrínseco valor da pessoa humana independentemente de idade, gênero, raça, etnicidade ou estágio de desenvolvimento dentro ou fora do ventre deve ser defendida — e isso deve incluir a maneira como respondemos àqueles com quem mais temos problemas.
Na Escritura, a Igreja geralmente lida com o pecado primeiro pessoalmente antes que ele chegue ao conhecimento público:
“Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão. Se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas. Se recusa ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja, seja ele para ti como um pagão e um publicano. Em verdade vos digo: tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu. Digo-vos ainda isto: se dois de vós se unirem sobre a terra para pedir, seja o que for, o conseguirão de meu Pai que está nos céus. Porque onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles.” (Mateus 18,15-20)
Uma das coisas que separa o Cristianismo do resto do mundo é a noção radical de ser capaz de perdoar múltiplas ofensas. Mateus 18,21-22 diz: “Então, Pedro se aproximou dele e disse: ‘Senhor, quantas vezes devo perdoar a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?’ Respondeu Jesus: ‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.’” Eu ressalto que ser capaz de perdoar constantemente não significa permitir comportamentos abusivos constantemente, e sim remover o poder que um opressor teria sobre uma vítima. Se nós queremos que a graça de Cristo liberte as pessoas do ciclo de ódio por seus irmãos humanos, então o amor e o perdão são a antítese da cultura do cancelamento.
Eu escrevo esse texto esperando que a Abby Johnson (se ela sequer liga de ler isto) reconsidere o seu comportamento público e esteja mais disposta a ouvir os que a criticam dentro da Igreja. Eu também espero que o presidente Joe Biden (como o católico devoto que ele diz ser) ouça as vozes do movimento pró-vida e considere todos os fatores econômicos e sociais que fariam dos EUA um país muito mais pró-vida e pró-mulher que o mundo pode imitar. Se a cultura do cancelamento originalmente queria responsabilizar as pessoas por suas ações, então esse é um nome totalmente impróprio. Mas se o objetivo é apenas manchar a reputação de uma pessoa ou destruir seu sustento sem esperança de que ela mude ou se arrependa, então essencialmente ela não é nada mais que uma caça-às-bruxas moderna.
Galileu Galilei perante o Santo Ofício – Joseph-Nicolas Robert-Fleury (1847)
NOTAS
[1] Doxing (de dox, do inglês, docs, abreviatura de documents), ou doxxing, é a prática virtual de pesquisar e de transmitir dados privados (especialmente informações pessoalmente identificáveis) sobre um indivíduo ou organização. [Wikipedia]
Título original: Is Cancel Culture The New Inquisition?
Autor: René Albert – Coffee and Crucifix (Patheos)
Tradução: Symon Bezerra – Methodios Project
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